Os muçulmanos vistos para além dos véus: núcleo de estudos sobre Oriente Médio da UFF propõe quebra de estereótipos para enxergar cultura afegã

Crédito da fotografia: 
Eduardo Kobra

Desde que se anunciou publicamente a retirada das tropas americanas do Afeganistão, em agosto desse ano, multiplicaram-se notícias, em diversos espectros das mídias, sobre o retorno ao poder do grupo fundamentalista islâmico Talibã e, com ele, muitos dos retrocessos moralistas e ideológicos com base religiosa associados às suas práticas. O debate envolvendo os direitos das mulheres, por exemplo, comoveu um imensurável público feminino por todo o mundo e segue ecoando dia após dia. Muito pouco se fala, no entanto, sobre as origens das violências perpetradas por esses grupos religiosos, já que elas possuem uma história e foram produzidas por uma conjuntura de forças, muitas das quais mantêm-se omissa e estrategicamente em silêncio. Muito pouco se fala, tampouco, dos usos políticos e econômicos que se faz da propagação de certos discursos que propõem um “salvamento” dessas mulheres muçulmanas, colaborando para a criação e reprodução de imagens estereotipadas desses povos, que tendemos a ver, muitas vezes, como verdadeiras “bestas” humanas.

Buscando ampliar e aprofundar o debate acerca dos últimos acontecimentos que envolveram a retirada das tropas americanas do Afeganistão, propusemos uma troca de ideias com os coordenadores do Núcleo de Estudos do Oriente Médio da UFF, o NEOM, vinculado ao Departamento e ao Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA) da universidade. Coordenado pelo professor do PPGA Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, e tendo como vice-coordenadora a professora do PPGA Gisele Fonseca Chagas, o núcleo é composto por estudantes de graduação e pós-graduação da área, que desenvolvem pesquisas relacionadas a diversas temáticas (religião, etnicidade, nacionalismo, gênero, fluxos migratórios etc.) ligadas à região e suas diásporas em diferentes contextos nacionais. O grupo também conta com pesquisadores associados vinculados a outras instituições nacionais e internacionais de pesquisa.

Fundado em 2003 pelo professor Paulo Gabriel Hilu e pelo professor Paul Amar, da Universidade da Califórnia, nos EUA, o núcleo foi criado no intuito de produzir uma estrutura acadêmica que pudesse atender à crescente demanda de informação e análises empiricamente embasadas sobre temas ligados ao Oriente Médio e às comunidades diaspóricas. De acordo com Gisele Chagas, “além da importância política e social do tema, a criação de uma massa crítica de saberes etnográficos sobre a região e suas diásporas trouxe outros horizontes comparativos e novas áreas de diálogo teórico para as ciências sociais no Brasil”.

Jornalismo UFF: Vocês poderiam falar um pouco sobre o momento atual no Afeganistão, com a volta ao poder do Talibã, e com o universo de repressões que acompanham esse movimento? E, juntamente com isso, explicar o interesse estratégico dos EUA na região, que fez com que ele se mantivesse no país com suas tropas por todo esse tempo?

Paulo Gabriel Hilu (PGH): O Afeganistão possui uma importância geopolítica em razão da sua localização, na Ásia Central, que é o espaço que conecta a Rússia, a China, a Índia, o sul da Ásia e parte do Oriente Médio. O envolvimento dos Estados Unidos da América na região, de maneira mais direta, começou após a invasão soviética, em 1978, quando os EUA vão, juntamente com a Arábia Saudita e o Paquistão, tentar transformar a resistência tribal às tropas soviéticas em uma guerrilha bem armada, treinada e biologicamente motivada para expulsar os soviéticos. A ideia era a de dar para a URSS um Vietnã. Efetivamente, vai existir o recrutamento de guerrilheiros que lutavam em nome do islã no Oriente médio: eles vão para o Afeganistão e serão treinados pelos americanos e pelo serviço secreto paquistanês, sendo financiados também pelos americanos e sauditas. A Arábia Saudita vai dar o escopo ideológico e uma visão militarizada do islã. E, obviamente, no final de dez anos, os soviéticos são derrotados.

A Al-Qaeda sai desse universo de guerrilheiros islâmicos que lutavam contra os soviéticos. De certa maneira, a arma se voltou contra o seu próprio criador. Os americanos vão ser atacados pela Al-Qaeda, por conta da sua aliança com a Arábia Saudita. O próprio Osama bin Laden tinha planos de derrubar o governo saudita e instalar o governo que, para eles, seria verdadeiramente islâmico. Os ataques contra os EUA terão início porque, desde 1940, eles mantêm um pacto com a Casa Real Saudita, a qual garante aos americanos o petróleo, e os americanos garantem que a Casa Real Saudita permaneça no poder. É por essa razão que acontecem os ataques de 11 setembro, que são uma escalada desse confronto. É após esse momento que ocorrem as invasões americanas, cujo objetivo inicial era desbaratar a Al-Qaeda. Mas além desse objetivo diretamente ligado ao atentado, existia um objetivo maior, que era reformular e reconfigurar o mundo islâmico à imagem da geopolítica americana. De acordo com os neoconservadores na época no poder, como o presidente George W. Bush, a ideia era a de que as sociedades do Oriente Médio se tornassem pró-americanas, caso os ditadores fossem removidos, e se promovesse um jogo político democrático. Objetivava-se que esse jogo político fosse maleável aos interesses geopolíticos dos EUA. É nesse contexto, por exemplo, que ocorrem as invasões ao Afeganistão, em 2002, e ao Iraque, em 2003, que fracassaram.

Embora se tenha criado estruturas políticas com aparência democrática, ao final se tinha como objetivo garantir a geopolítica americana, avançar seus interesses na região, o que obviamente é contraditório, uma vez que implica um direcionamento da vontade das populações, o que não faz sentido no jogo democrático. O Afeganistão era visto pelos americanos como um campo de ação militar contra os militantes islâmicos e isso implicava bombardeio, deslocamento de tropas e ataques de drones, que geravam enormes baixas na população civil. O número de casualidades entre os civis nos Afeganistão era altíssimo, principalmente porque os drones atacavam indiscriminadamente.

A divulgação de como os ataques eram feitos e organizados e como a população civil era usada de maneira completamente insensível ocorreu pelo WikiLeaks (organização transnacional sem fins lucrativos, sediada na Suécia, que publica, em sua página, postagens de fontes anônimas), pelo Snowden (Edward Joseph Snowden é um analista de sistemas, ex-administrador de sistemas da CIA e ex-contratado da NSA que tornou públicos detalhes de vários programas que constituem o sistema de vigilância global da NSA americana), entre outros. Todo o escândalo WikiLeaks e os Whistle-blowers (aqueles que fazem revelações às autoridades sobre acontecimentos ilegais) que vão aparecer e ser depois punidos e perseguidos pelos EUA estavam ligados a violações de direitos humanos que aconteciam rotineiramente no Afeganistão e no Iraque.

O fracasso disso é que, para as populações afegãs, o Estado e a estrutura política criada após a invasão americana nada mais era do que uma estrutura política colonial que atendia aos interesses dos EUA e não aos da população local. Por conta da própria fragilidade desse Estado, os americanos vão permanecer no Afeganistão praticamente 20 anos. Todo esse tempo de ocupação foi uma tentativa de criar alguma estabilidade política, mas obviamente isso era impossível, dada a contradição na própria motivação dos americanos em financiar ou organizar esse Estado afegão pós-talibã. Existiam enormes recursos para o exército e as forças de segurança, enquanto a população passava dificuldades básicas, a pobreza era enorme, fora a destruição criada pelas ações militares americanas.

Gisele Chagas (GC): A partir da década de 1970, a sociedade afegã foi arrastada para um longo período de conflitos violentos, com envolvimento de diversos atores políticos internos e externos, o que produziu uma enorme crise humanitária, gerando milhares de mortos e de refugiados, além da pobreza e destruição do país. Deste modo, o que se passa hoje no Afeganistão tem a ver com esses processos políticos internos e com o histórico de ocupações estrangeiras (soviética e norte-americana), e às diferentes consequências que isso trouxe para os distintos setores da população afegã. É neste contexto de sucessivas guerras e disputas internas no Afeganistão que o surgimento do Talibã deve ser entendido, assim como sua ascensão ao poder em 1996.

A ideia central do apoio ao Talibã naquela época era a bandeira contra a corrupção – prática localmente percebida como atreladas às elites políticas do país, das quais o grupo era um outsider – e a oferta de uma possível estabilidade numa sociedade devastada por décadas de violência. Contudo, a visão política e social do Talibã centrada numa interpretação restrita dos preceitos islâmicos e a sua consequente imposição para toda a sociedade afegã, que é historicamente marcada por uma diversidade étnica e religiosa, aprofundou as violações de direitos humanos no país, sobretudo para as mulheres afegãs, que foram excluídas do espaço público e do acesso à educação e ao mercado de trabalho, levando a situações mais violentas e de bastante ameaça. Pelo histórico de violência e de violações de direitos associados ao Talibã, o temor e a insegurança dos afegãos demonstrados pelo retorno do grupo ao poder são reais.

(PGH): A opressão às mulheres no Afeganistão antecede a situação de restrição feminina ao espaço privado, algo que é tradicional na sociedade afegã. Antes de os Talibãs aparecerem, algumas mulheres nas grandes cidades como Cabul, trabalhavam, e não usavam o véu, a burca e nem nada do gênero. Mas isso era limitado a uma classe média e a uma elite. A maioria delas no Afeganistão vivia sob regras sociais tradicionais, em que o espaço da mulher era o espaço privado. O que acontece é que os Talibãs impõem essa visão a toda a sociedade e criam restrições ainda maiores a elas. Então a situação social feminina no Afeganistão sob os Talibãs era terrível: elas não tinham direito à educação, tinham limitado acesso à saúde, eram excluídas do espaço público e do mercado de trabalho. Os Talibãs têm uma visão extremamente homogeneizadora e autoritária da sociedade. Para eles, tudo aquilo que desvia do que consideram como sendo a norma é brutalmente reprimido. Isso inclui minorias religiosas, como os xiitas, os homossexuais etc. Com o domínio Talibã, houve um retrocesso enorme não só nos direitos das mulheres, mas nos direitos individuais em geral.

Jornalismo UFF: Vocês diriam que existe um olhar estigmatizado com que o mundo ocidental, através do “filtro” midiático dos EUA, enxerga e se debruça sobre esse universo? Como entender essa cultura estando atento aos olhares preconceituosos com que nos voltamos para ela?

(PGH): Sem dúvida, o olhar midiático para a região é distorcido por toda uma série de pressupostos e preconceitos que existem contra as sociedades muçulmanas, em particular na Ásia Central e no Oriente Médio. A mídia, em vez de analisar os processos que estão produzindo a violência, toma como um dado que a violência aparece naturalmente nessas sociedades ou deriva da religião muçulmana e por aí vai. Isso é um desserviço à informação, uma vez que existem processos políticos, econômicos, culturais e religiosos que explicam a situação, e que são apagados em nome de generalizações sobre essas sociedades.

(GC): Existe sim um olhar estigmatizado quando se retrata ou discute as sociedades não ocidentais em geral e as sociedades majoritariamente muçulmanas de modo particular. Normalmente, suas diversidades culturais e as dinâmicas históricas e sociológicas são desprezadas e encapsuladas em narrativas que as reduzem a quase caricaturas, o que pode ser evidenciado também em produções culturais como filmes e seriados de TV. Isso se reflete, sobretudo, em relação às muçulmanas e aos estereótipos que lhes são associados, principalmente pelo uso do véu (hijab). O Alcorão fala sobre as mulheres cobrirem seus corpos, mas a interpretação sobre isso é bastante variada – há uma enorme diversidade nas interpretações teológicas e na forma como elas usam seus véus como parte de suas identidades religiosas. Não se pode interpretar o uso do hijab (véu) como falta de agência ou sinal de opressão, como é comumente retratado na mídia ou por determinadas interpretações feministas.

Com os atentados de 11 de setembro, nos EUA, e a reação do governo George W. Bush via invasão do Afeganistão, na então batizada “Guerra ao Terror”, a questão das mulheres afegãs passou a fazer parte do que a antropóloga Lila Abu-Lughod chamou de "retórica da salvação". Por meio de percepções estereotipadas a respeito do islã e dos muçulmanos, forneceu-se uma justificativa de que essa batalha era, ao mesmo tempo, uma questão moral que implicava "salvar" e "libertar" as afegãs, sobretudo de suas tradições religiosas. Vinte anos depois, de certo modo, este mesmo discurso de “salvar as muçulmanas do islã” tem retornado ao debate público sobre os recentes eventos no país, diluído em questões sobre os retrocessos para as afegãs com o retorno do Talibã.

É preciso não confundir o que se passa no Afeganistão com os muçulmanos e afegãos em geral e não tomar o uso do véu como parte do mesmo cenário. Para evitar estereótipos, é preciso que os processos políticos e históricos que engendram tais situações sociais sejam considerados na análise, impedindo generalizações e o risco de se gerar mais preconceitos em relação ao islã e às sociedades muçulmanas. Cabe ressaltar que guerras e ocupações militares, tais como as ocorridas naquele país, produzem violência e situações de insegurança de várias ordens, gerando exclusões e situações de pobreza e desigualdades sociais para as mulheres que estão muito além da questão de sua vestimenta.

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