Paixão em campo: estudos avaliam o fanatismo entre torcedores de futebol a partir da neurociência

Crédito da fotografia: 
Paula Reis (Flamengo)
Pesquisas do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) analisam a relação entre os níveis de fanatismo de torcedores de futebol e de agressividade nos estádios

No Brasil, o futebol faz parte da cultura nacional. Terra de Pelé, Garrincha, Marta, Formiga e outros grandes nomes do esporte. A admiração pelo futebol começa, muitas vezes, na infância, por influência dos familiares, e ultrapassa as barreiras da recriação para se tornar uma paixão. O problema é que, em algumas situações, o envolvimento emocional com o time do coração pode levar a episódios de extrema agressividade, como nos casos de violência durante partidas noticiadas pela mídia. Em 2022, a CNN relembrou uma série de episódios de violência que marcaram o futebol latino-americano, que vão desde brigas entre as torcidas, que geram até mesmo assassinatos, a ataques diretos contra os jogadores. Um exemplo foi em 26 de fevereiro daquele ano, quando torcedores do Paraná Clube invadiram o campo para agredir os jogadores do time no estádio Vila Capanema, em Curitiba, minutos antes do final da partida que decretou a derrota do clube por 3 a 1 para o União Rondonópolis e o rebaixamento para a Segunda Divisão do Campeonato Paranaense.

Em diálogo com essas situações, o projeto “Avaliação dos efeitos emocionais desencadeados por imagens relacionadas ao futebol: um estudo sobre fanatismo e agressividade em torcedores”, com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), dedicou-se a investigar a relação entre o fanatismo por times de futebol e a reação violenta de alguns torcedores nas arquibancadas. O professor Erick Francisco Quintas Conde, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), responsável pela pesquisa, explica que o projeto utilizou de estímulos visuais e medidas psicométricas para estudar como os indivíduos reagem a determinadas figuras. Nesse caso, imagens relacionadas ao futebol, do time favorito e do principal time rival.

A investigação, na realidade, resulta de uma sucessão de pesquisas anteriores promovidas pelo docente, começando no período de doutorado. Conde explica que “para estímulos neutros”, como quadrados e círculos, por exemplo, as pessoas são mais rápidas com a resposta manual realizada do mesmo lado em que aparece o estímulo, em comparação às respostas do lado oposto, caracterizando “um efeito de compatibilidade espacial estímulo-resposta”. O grande achado da pesquisa foi verificar que esse padrão se inverte quando a pessoa responde a imagens do seu time rival. Com a descoberta, o pesquisador propôs que “sistemas motivacionais básicos responsáveis por comportamentos primitivos de aproximação e afastamento acabam influenciando as respostas motoras”, resultado do estudo “Stimulus affective valence reverses spatial compatibility effect”, publicado na revista científica Psychology & Neuroscience.

Como várias questões ainda permaneceram em aberto, como a relação entre fanatismo e agressividade, o grupo resolveu dar continuidade ao assunto estudando como pessoas com diferentes níveis de fanatismo são impactadas emocionalmente por imagens do clube amado e do oponente. Em um estudo subsequente, que investigou funcionalidades entre pessoas fanáticas e não fanáticas por futebol, foi possível afirmar que os torcedores fanáticos apresentam alterações neurofuncionais reveladas por diferenças significativas nos indicadores de congruência entre hemisfério cerebral e resposta motora, quando comparados com as pessoas menos fanáticas. 


Questionário de Agressividade / Créditos: Erick Conde

Dando continuidade a essa linha de pesquisa, o estudo “Fanatismo e agressividade em torcedores de futebol”, publicado na Revista Brasileira de Psicologia do Esporte, utilizou escalas psicométricas desenvolvidas para medir os níveis desses dois construtos (ideia ou conceito resultado da soma de ideias mais simples): a Escala de Fanatismo em Torcedores de Futebol (EFTF) e o Questionário de Agressividade de Buss-Perry (AQ). “Fizemos medidas do fanatismo através dessa escala (EFTF), correlacionando as pontuações obtidas  com as medidas de agressividade (AQ). Com isso, vimos que existem correlações praticamente perfeitas, permitindo a verificação de que quanto maior o nível de fanatismo, maior a expressão da agressividade em diferentes dimensões ou fatores da escala”, explica o docente.

Em um desdobramento do estudo, o pesquisador se questionou se os possíveis eventos desencadeadores das reações emocionais e comportamentais nos torcedores estariam ligadas à simples percepção de estímulos representados pela dualidade favorito e rival. Assim, em estudos subsequentes, utilizaram escalas que avaliam duas dimensões emocionais a partir da visualização de imagens diversas em alusão aos times de futebol. A primeira medida é a valência, que indica o quão positiva ou negativa é uma figura, variando de zero a sete. A segunda é o nível de ativação, que demonstra o quanto uma figura excita emocionalmente um indivíduo, medida que também vai de zero a sete. Nesse estudo, além das imagens de futebol, também foram utilizadas imagens do sistema internacional de figuras afetivas, que serviram como referências para entender melhor como as imagens experimentais, compostas por figuras do time do peito e oponente, situam-se frente às categorias de imagens emocionais já pesquisadas.

Assim, foi concluído que as imagens do time favorito e do time rival equivalem, respectivamente, a imagens positivas e negativas em termos de valência, especificamente. No entanto, em termos de ativação, foi encontrada uma diferença entre os níveis de fanatismo: “Basicamente, as pessoas mais fanáticas demonstraram maior excitação com diferentes tipos de imagem, tanto do time favorito quanto do time rival, e até mesmo de imagens neutras do sistema de figuras afetivas”, explica o professor.

A partir da investigação, percebeu-se também que existe uma relação direta entre o nível de fanatismo e de agressividade, sendo que quanto mais fanática for a pessoa, maior a tendência a comportamentos violentos. Em paralelo, quanto mais fanáticos, maior a chance das imagens do clube amado e do oponente provocarem respostas emocionais mais intensas nos torcedores. Contudo, o professor esclarece que ainda não foi investigada uma relação entre essa segunda observação e o aumento da agressividade. “Temos alguns indicadores preliminares, mas esse estudo não demonstrou uma correlação entre as respostas para as imagens dos times e a agressividade. Nele, estudamos apenas como as pessoas reagem a estímulos visuais do seu time favorito e do time rival principal”, ressalta Conde.

Segundo o professor, a equivalência entre os níveis de ativação ou de excitação das imagens do time amado e do oponente é um dado interessante, pois pode ser um fator fundamental na compreensão da manifestação de violências observadas nos grandes eventos esportivos. Como resultados da série de investigações, Conde afirma que as pesquisas trazem como reflexão que não são suficientes apenas medidas paliativas, como aumentar a presença de policiais nos estádios, por exemplo, o que pode até mesmo agravar a situação de insegurança dentro e fora das arquibancadas. Para ele, “o fanatismo precisa ser encarado como um fenômeno psicossocial que precisa ser alvo de políticas públicas e medidas socioeducativas”.

Com relação ao comportamento de torcedores fanáticos, o docente conclui que a pesquisa pode estimular outras abordagens que busquem tentar mudar padrões culturalmente aceitos, estabelecidos há muito tempo em uma sociedade violenta com relação ao futebol. “Tentamos mostrar que existem possibilidades de conscientização, de psicoeducação e até mesmo de prevenção à violência. Nós não encontramos necessariamente uma solução para o fanatismo, mas trazemos algumas reflexões principalmente para que as pessoas com algum poder de decisão sobre as medidas convencionais implementadas possam, também, considerar outras opções para além da punição policial, que pode potencializar a violência ao redor dos estádios”.

Erick Francisco Quintas Conde é professor Associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF-Campos), possui graduação em Psicologia (PUC-Rio), mestrado em Neuroimunologia (UFF) e doutorado em Neurociências (UFF). Na UFF, coordena as ações do Núcleo de Estudo e Aplicação em Psicologia (NEAPsi-UFF), onde tem desenvolvido pesquisas sobre memória, aprendizagem, alterações cognitivas e emocionais, desencadeadas por estimulação, treinamento ou em função das fases de desenvolvimento humano. Também tem se dedicado a pesquisas aplicadas para verificar efeitos de intervenções psicológicas nos estados de humor, ansiedade e depressão. No âmbito da extensão, vem desenvolvendo ações multidisciplinares com a finalidade de ampliar capacidades de autorregulação emocional, cognitiva e comportamental, através de ações psicossociais que conjuguem a psicologia com práticas integrativas e complementares em saúde (PICS), protocolos de imersão em ambientes naturais e/ou com prática de yoga, de esportes e de atividade física.

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