Muito além da bola em campo: entenda a relação do Caio Martins com Niterói

Crédito da fotografia: 
Zambrone/ Wikipedia
Estudo da UFF visa entender a história da cidade a partir do papel sociocultural do estádio

A cidade de Niterói, também apelidada de “Nikiti” e “Cidade Sorriso”, completa 450 anos no dia 22 de novembro. As comemorações já acontecem e vão de shows a peças de teatro, além de outros eventos e atividades para celebrar o aniversário. No entanto, neste período, é importante relembrar e compreender a trajetória da cidade na história, sob uma perspectiva diferente de reconstrução. Essa é a proposta da pesquisa “O estádio Caio Martins e a cidade de Niterói (1941-1964)”, em desenvolvimento na Universidade Federal Fluminense (UFF), que busca entender a influência do complexo esportivo para a cidade além de seus usos no futebol.

O estudo, ainda em andamento, prevê a realização do evento “De paixões e traumas: os estádios de futebol como lugares de memória” em outubro de 2024, para rememorar a história da cidade através do estádio Caio Martins. O projeto foi contemplado por edital do Programa de Apoio à Organização de Eventos Científicos, Tecnológicos e de Inovação no Estado do RJ, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). “Essa iniciativa parte do pressuposto de que os estádios desempenharam um papel crucial na difusão do futebol no país e, por isso, sua importância transcende a materialidade arquitetônica, configurando-se como fenômeno socioespacial. Com a organização desse encontro pretendemos apresentar alguns resultados e contribuições de pesquisas, além de fortalecer diálogos com especialistas do tema”, acrescenta Lívia Magalhães, responsável pelos projetos.

A docente explica o papel do estádio para o contexto histórico: “a importância desse espaço transcende as estruturas de concreto, expandindo-se pelas vias de acesso, interagindo com os atores sociais que por ali se movem, não apenas em dias de jogos, e, por fim, desencadeando práticas socioculturais. Parte-se do pressuposto de que, através da ressignificação da memória, da história e das narrativas sobre a cidade, tendo o estádio como fio condutor, será possível lançar novos olhares sobre Niterói, contribuindo para uma maior compreensão do seu processo histórico e geográfico.”

Há 50 anos, durante a Ditadura Militar, o Estádio Caio Martins foi transformado em prisão de inimigos políticos, onde mais de mil pessoas foram detidas e submetidas a agressões, torturas e abusos, segundo o relatório da Comissão da Verdade de Niterói. O gramado, onde anteriormente jogadores marcavam gols, era usado para os prisioneiros tomarem sol. O ginásio e os vestiários, onde a ansiedade pré-partida pairava entre os times, deu lugar à sensação de incerteza e medo perante episódios de violência física e psicológica.

Segundo a coordenadora da pesquisa, o ponto de partida para escolha do Caio Martins foi o apagamento sofrido nesse período. “A capital de um dos maiores estados da república tinha uma prisão política, o primeiro estádio-prisão das Américas, e isso foi apagado da memória não só da cidade, mas nacional”, explica. Ela ainda comenta o desconhecimento internacional sobre o passado do local durante a ditadura: “Fizemos uma apresentação, em março deste ano, sobre o Caio Martins, no Fórum de Direitos Humanos da UNESCO na Argentina, e foi um espaço muito importante para dialogar com outros pesquisadores internacionais a respeito do local enquanto prisão na memória, que ninguém sabia. Todo mundo sabe do Estádio Nacional do Chile, e ninguém sabe que no Brasil tivemos isso nove anos antes”. Mas, antes de seu uso em 64, vale ressaltar que o estádio foi construído em 1941, em meio à ditadura do Estado Novo. “Ele foi criado num período ditatorial e reutilizado em outro. Esse é um diálogo que nós também queremos trazer, sobre a permanência desses espaços dentro desse perfil autoritário da república brasileira”, diz.


Faixa estendida no portão do estádio, em protesto realizado em 2012. Foto: Reprodução da internet

Em busca de expandir ainda mais a premissa de estudar a história através dos estádios, foi criado um projeto universal com uma equipe de professores da UFF, UERJ, FGV e Unicamp, além de pós-graduandos e bolsistas. Dessa vez, o foco está nas cidades de Niterói, Rio de Janeiro e São Paulo entre 1937 e 1950, e a inserção de mais estádios, respectivamente Caio Martins, Maracanã e Pacaembu, permite uma análise mais geral de grandes símbolos da identidade nacional brasileira na história do futebol e uma comparação entre eles. “Hoje, nos contextos da discussão pela privatização do Pacaembu, do já privatizado Maracanã e das disputas entre o governo estadual e municipal pelo Caio Martins, esperamos que o estudo possa contribuir na demonstração da importância dos estádios como patrimônio cultural material e imaterial para a cidadania”, informa Lívia.

Dentre os novos olhares sobre o estádio e seus usos para além do futebol, vale lembrar que, em março de 2020, há um novo contexto para o uso dos estádios. Durante a pandemia, a paralisação geral de atividades em função da Covid-19 gerou nova importância para estádios, públicos e privados, que foram adaptados e tornaram-se hospitais de campanha. Foi o que aconteceu com o Maracanã, onde Lívia, inclusive, foi tomar vacinas: “o Maracanã tem total relação com o bairro, é impressionante como a minha vida no Rio de Janeiro é pensada em função do estádio. Se é dia de jogo, eu tenho que me organizar para conseguir chegar em casa. Lá fiz atividade física, fiz teste de Covid, tomei vacinas, o Maracanã é uma referência social para mim. São os clubes e estádios moldando os bairros e desenhando as cidades.”

Além disso, é possível citar a tragédia do Gran Circus Norte Americano, um incêndio criminoso ocorrido em um circo, em 1961. Nesse contexto, o Caio Martins foi usado como local para reconhecimento dos corpos e transformado numa oficina provisória para a construção rápida de caixões, pois foram 503 pessoas mortas e mais de 800 feridos. Livia aponta que a associação desses espaços a eventos como futebol e shows se deve à falta de reconhecimento local do que de fato aconteceu naquele espaço. “Essa é uma discussão que a gente quer fazer com a cidade de Niterói para recuperar essa memória. Hoje, quem vai ao Estádio Nacional do Chile tem exposição com informações sobre quantas pessoas foram assassinadas e mantidas em cárcere, fotos da época, e muitos outros recursos de memória que dão um impacto muito maior no público, porque o espaço continua sendo palco de futebol, mas a população tem acesso a essa memória. É essa recuperação que queremos no Caio Martins”, finaliza.

_____

Lívia Gonçalves Magalhães é Professora Adjunta de História do Brasil República do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui graduação e licenciatura em História pela Universidade Federal Fluminense (2005). Mestre em Estudios Latinoamericanos pelo Centro de Estudios Latinoamericanos da Universidad Nacional de San Martín, Argentina (2008). Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (2013). Pós-Doutora em História na Unimontes/MG (Bolsista Capes 2014-2016) e na Universidade de Paris-Est Marne-la-Vallée (Bolsista Capes dezembro 2017- março 2018).

Compartilhe