A presença estrangeira na construção do mito da democracia racial no Brasil

Crédito da fotografia: 
Acervo do Arquivo Nacional do Brasil.
Estudo da UFF analisa viajantes estrangeiros para entender o conceito de “brasilidade mestiça”

O mito da democracia racial refere-se a um estado de plena igualdade entre os cidadãos, sem distinção de raça, sexo ou etnia. A origem do conceito está ligada a uma narrativa que ganhou força na década de 1930, de que o Brasil encontrava uma solução para o racismo na miscigenação. Com o intuito de entender a elaboração desse imaginário sobre a identidade brasileira, nasceu um estudo de pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF), com foco no circuito transnacional do conceito de “brasilidade mestiça” nas décadas de 1920 a 1940. Nesse contexto, a pesquisa investiga viajantes estrangeiros e suas interações com intelectuais e políticos brasileiros que promoveram a “brasilidade mestiça”, retratando o Brasil como uma nação onde as raças convivem harmoniosamente.

O estudo, que faz parte do programa FAPERJ nota 10, foi apresentado no 32º Simpósio Nacional de História, realizado em 2023, e compõe um capítulo do livro “Circuitos Culturais: Histórias”, publicado em 2022. Quanto à brasilidade mestiça, a pós-doutoranda Lorenna Ribeiro explica que, no contexto da época que compreende o estudo, esse conceito era visto por um viés positivo: “No início do século XX, o Brasil relutou muito em se reconhecer como população mestiça, por conta do racismo científico da época. Havia esse discurso de que o país tinha uma população formada por várias raças e que essa mistura ocasionava uma degeneração racial, o que inviabilizaria o desenvolvimento e o progresso brasileiro. As décadas de 1920 e 1940, abarcadas na pesquisa, são períodos importantes para pensar essa inversão. Embora o racismo continuasse presente nos discursos intelectuais, há uma construção de brasilidade num sentido que envolve a mestiçagem positivamente. Isso começa a ser colocado como um cartão de visita, uma forma de apresentar o país ao exterior enquanto nação mestiça”.

Para chegar a essas conclusões, Lorenna selecionou pensadores estrangeiros e intelectuais brasileiros, cujas ideias circularam em livros, entrevistas, artigos e resenhas em periódicos da época. “Escolhi viajantes que considerei emblemáticos, não só pela recepção que tiveram no Brasil e como foram lidos, mas porque apontam para circuitos intelectuais distintos. José Vasconcelos teve uma grande rede de sociabilidade nos países hispano-americanos e seu olhar sobre o Brasil foi muito influenciado por sua experiência com processo revolucionário mexicano; Stefan Zweig era um dos escritores mais traduzidos no mundo quando veio ao Brasil pela primeira vez, em um contexto de agravamento dos conflitos raciais na Europa e já vivendo o exílio em Londres, fugindo da perseguição nazista aos judeus às vésperas da Segunda Guerra Mundial; Waldo Frank, que tinha uma visão crítica da sociedade norte-americana e atuou como mediador das relações culturais entre os Estados Unidos e o Brasil. São perspectivas que participaram da elaboração do imaginário de uma nação com relações raciais harmônicas, que circulou nacional e internacionalmente”, explica.

 

Linha do tempo das transformações conceituais sobre a percepção da identidade brasileira. Arte: Ana Carolina Ferreira

 

A coletânea “Pequena Viagem ao Brasil”, de Stefan Zweig, publicada em 1936, retrata bem esse imaginário: “O Brasil ainda não inventou a questão de raça, tendo resolvido o problema do jeito mais simples e mais feliz, ao desconhecer inteiramente (...) diferenças de raças, pigmentos, nações ou princípios religiosos. Neste crisol enorme, mesclam-se desde tempos imemoriais, brancos, índios, negros, portugueses, alemães, italianos, eslavos, japoneses, cristãos, judeus, budistas e pagãos, sem que se estabeleçam distinções e sem que se suscite conflito; aqui não se levanta como nos Estados Unidos uma barreira de preconceito de cor”, escreveu. O trecho fez parte de uma série de artigos lançados em jornais europeus, com o objetivo de divulgar o país para o público estrangeiro, e também foi traduzido por um funcionário do Ministério das Relações Exteriores, para circular em português para o público brasileiro.

Segundo a pesquisadora, o governo da época investiu na circulação das análises dos viajantes, a fim de divulgar essa ideia. “As impressões dos viajantes sobre o Brasil produziram eco entre as elites intelectuais brasileiras. Nos anos 1930 e 1940, durante o governo do presidente Getúlio Vargas, a ideia de mestiçagem ganhou um sentido positivo e se tornou discurso oficial sobre o Brasil. Ao receber visitantes estrangeiros como José Vasconcelos, Stefan Zweig e tantos outros, o Ministério das Relações Exteriores e órgãos como o Departamento de Imprensa e Propaganda buscaram difundir esse imaginário aos visitantes, com a perspectiva de que eles o replicassem em seus países de origem”, explica.

Os viajantes não são os únicos responsáveis pelo surgimento da ideia de brasilidade mestiça, berço da justificativa para a tal “democracia racial”. O contexto político também criou um ambiente favorável para que essas percepções surgissem. Afinal, como não buscar respostas no Brasil, enquanto, nos Estados Unidos, as Leis Jim Crow institucionalizaram políticas de segregação da população negra e, na Europa, se assistia o agravamento de conflitos étnico-raciais, com o assassinato de milhares de judeus e outras minorias nos campos de concentração? Enquanto mundo afora as democracias colapsavam, no Brasil vendia-se a impressão de pacificidade e cordialidade. O estudo considera que o impulso desse imaginário nos anos 20 e 40 se deve à Semana de Arte Moderna de 1922, às políticas culturais do governo de Getúlio Vargas (1930–1945) e à repercussão da obra Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, publicada em 1933. O contexto, segundo Lorenna, é inclusive irônico, já que a democracia estava em crise também internamente: “o Brasil estava vivendo a ditadura do Estado Novo (1937-1945), então essa ideia de democracia racial se disseminar nesse período de entrada do país na Segunda Guerra é contraditório. Foi uma ditadura lutando contra a outra e, ao mesmo tempo, se reafirmando enquanto racialmente democrática”.

Essa idealização, inclusive, tornou o Brasil objeto de pesquisas realizadas pela UNESCO no pós-guerra. O intuito da organização era buscar soluções de outras sociedades e evitar que o horror nazista se repetisse. Conforme aponta a supervisora da pesquisa, a professora Giselle Martins, “o Brasil chega no final da Segunda Guerra como um modelo de democracia racial. A ponto de o famoso historiador francês Lucien Febvre escrever o prefácio da edição Casa-Grande e Senzala, publicado na França em 1952, dizendo que o livro não era sobre a história do país, mas sobre o encontro de três raças convivendo harmonicamente. Porém, quando a UNESCO financia uma pesquisa sobre as questões raciais no Brasil, a ideia é completamente frustrada, já que a mesma comprovou o contrário do que se pregava como ‘democracia racial’. A partir daí, há uma grande crítica aos trabalhos que reforçaram essa percepção errônea acerca das relações entre raças no Brasil.”

Tendo assumido sentidos diversos ao longo da história brasileira no último século, o mito da democracia racial associado à ideia de um povo mestiço acabou conformando um pensamento que ainda hoje dificulta o enfrentamento do racismo no Brasil. Com isso, é possível ver a importância de estudos como o de Lorenna para a reflexão de discursos do passado que perduram na atualidade. Quanto ao estado atual da pesquisa e perspectivas futuras, ela explica: “Até aqui, o estudo se debruçou em como os textos de viajantes estrangeiros e suas impressões positivas sobre a mestiçagem e as relações raciais foram recebidas e apropriadas por atores políticos e intelectuais, forjando, de maneira gradual, o mito da democracia racial. Além de estudar os diálogos entre estrangeiros e brasileiros que conformaram esse imaginário, um dos desafios da investigação agora tem sido mapear a circulação dos relatos de viagem no exterior. Esse é um trabalho de pesquisa mais complexo, pois exige a pesquisa em acervos documentais fora do país. A expectativa é, com o avanço da pesquisa, poder identificar mais atores, reconstituir as redes intelectuais e os circuitos transnacionais desse imaginário sobre o Brasil em meados do século XX”, finaliza.

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Lorenna Ribeiro Zem El-Dine é doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS), da Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro (2017), mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas (PPGHIS) da Universidade Federal do Espírito do Santo (2010), bacharel e licenciada em História pela Universidade Federal de Viçosa (2007).

Giselle Martins Venancio é professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense. Coordenadora da área de História e Arqueologia da FAPERJ. Titular da Cátedra Unesco/UFF sobre Desigualdades Globais. Bolsista de produtividade do CNPq (desde 2014) e Cientista do Nosso Estado/FAPERJ (desde 2016); além de pesquisadora do projeto coletivo Capes/PrInt Desigualdades globais e sociais em perspectiva temporal e espacial (2018-2024). É pesquisadora do ESCRITHAS (Estudos críticos, teóricos e historiográficos sobre as Américas) e associada ao CEO (Centro de Estudos do Oitocentos) e ao projeto Brasiliana (UFMG). Foi vice-presidente da ANPUH Rio (2014/2016).

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