Queijo coalho na praia, churrasquinho no espeto, uma parada para saborear tapioca na calçada do centro da cidade, fechar a semana dançando forró se deliciando com as iguarias na Feira de São Cristóvão. Tudo isso, e muito mais, já faz parte da cultura do carioca e tem a mesma origem: o nordeste do Brasil. Essa influência incontestável da cultura nordestina no dia a dia do Rio é tema do livro “Nordestinos no Rio de Janeiro: alteridades e legados culturais” (Eduff, 2021), do antropólogo e Fernando Cordeiro.
Na obra, o autor aborda as relações estabelecidas pelos nordestinos em diversas esferas do mundo social: trabalho, lazer, relação de vizinhança, constituição familiar, enfim, na conformação desses migrantes como integrantes da cidade em que passaram a viver.
Em entrevista concedida à equipe da Eduff, Fernando Cordeiro, que é filho de nordestinos, fala sobre a motivação do seu trabalho e o legado cultural dos nordestinos para o Rio de Janeiro.
Confira, a seguir, a entrevista completa com Fernando Cordeiro.
Eduff – Não raro, os estudos sobre a migração nordestina focam no fenômeno migratório como do ponto de vista de um problema social. A sua pesquisa, ao contrário, destaca os legados produzidos pelos imigrantes na capital fluminense. A que se deve essa escolha?
Fernando Cordeiro – O intenso fluxo migratório ocorrido na sociedade brasileira entre 1950 e 1980 incentivou, naquele período, que inúmeros pesquisadores se dedicassem à temática da migração como um problema social. Os estudiosos visavam compreender esse fenômeno em suas causas, motivações e consequências, abarcando questões estruturais, de ordem social e econômica, bem como aspectos relacionados à socialização e à vida cotidiana daqueles que migraram. Todavia, o interesse sobre essa temática, especialmente nas ciências sociais, foi perdendo força à medida que o ritmo intenso desse fenômeno foi diminuindo. Ao me filiar aos estudos migratórios, considerei que esse fenômeno deveria continuar a ser investigado, pois percebi que o processo social e histórico da migração de nordestinos para o Rio de Janeiro não tivera no meio acadêmico a atenção merecida, apesar de sua importância tanto de ordem quantitativa, devido ao seu caráter massivo, como qualitativa, em razão das reconfigurações das relações sociais e do redimensionamento das formas de significação de existência e modos de vida. No livro, não deixo de reconhecer a questão da migração como problema social. Não à toa, analiso questões como estigmas, preconceitos sociais, moradia precarizada e relações de trabalho subordinadas. Entretanto, ao procurar perceber os investimentos em produção de saberes, aprendizagens e formas de interlocução de visões de mundo, busquei destacar a construção de legados e, assim, dar visibilidade ao que, até então, não tinha sido devidamente valorizado, por ser considerado como não manifesto, invisível ou inexistente. Abarcar tal perspectiva analítica é ir além da interpretação do fenômeno migratório como problema social, contudo sem deixar de reconhecer que tal questão é emblemática, porém não a única, pois há outras formas de investimento teórico, outras formas de compreensão e abordagem a se considerar. Nesse sentido, o objetivo do estudo foi colaborar com o debate e possibilitar a compreensão, de outra forma, desse fenômeno social.
Eduff – A presença nordestina no Rio de Janeiro é visível em diferentes esferas sociais. Da música à culinária, a influência da cultura do nordeste tem mais destaque em que elementos do cotidiano?
Fernando Cordeiro – Diversas manifestações culturais do Nordeste estão presentes no cenário carioca. Há bailes de forró que ocorrem em clubes ou no ambiente familiar. Festejos juninos também fazem parte do calendário da cidade, sendo a Feira de São Cristóvão bastante visitada nesse período. O queijo coalho na brasa é iguaria comum nas famosas praias da Zona Sul ou nos churrasquinhos de espeto nas calçadas na Zona Norte e nos subúrbios da cidade. Nos centros comerciais de bairros e nas feiras livres é praticamente certo encontrar barracas de tapioca. Ouvidos mais atentos podem perceber nas ruas, nos bares e construções sotaques e expressões regionais. É notório que há no Rio de Janeiro uma expressiva presença da cultura nordestina, entretanto, é necessário enfatizar que ela se manifesta de forma múltipla, variada, até porque na Região Nordeste há diferenças de distintas ordens: espacial, ecológica, política, econômica, social e cultural. As influências mais marcantes dos migrantes nordestinos, contudo, talvez não sejam as mais perceptíveis, mas aquelas que estão presentes no cotidiano das relações sociais. No processo migratório há todo um procedimento de negociação e de permutabilidade entre experiências resultantes das interações vivenciadas, onde acontece a possibilidade de encontros, sociabilidades e o compartilhar de diferentes estilos de ser e distintas formas de estar no mundo.
Eduff – Os legados da migração nordestina são tão presentes no Rio que seria possível dizer que muito do jeito carioca de ser, hoje, incorpora elementos originalmente do Nordeste?
Fernando Cordeiro – Trabalho com o suposto que um tipo social só tem sentido de existência em relação a outros. Na relação existente entre migrantes nordestinos e cariocas há uma troca que possibilita a reconstrução e a redefinição de estilos e jeito de ser de cada um, havendo influências de um no outro. Nessa interação, estereótipos são criados ou reforçados, conforme os sistemas de pensamento socialmente existentes. Os estereótipos, dessa forma, atuam como um dispositivo de categorização genérica, que possibilita, pelo exercício imaginativo, a sistematização das percepções e o reconhecimento de si a partir da relação distintiva com o outro. O legado construído pelos migrantes nordestinos no Rio de Janeiro faz parte de um conjunto de saberes, valores, formas de expressão e manifestações culturais que estiveram presentes no percurso social vivenciado. O patrimônio transmitido, consequentemente, é o de um modo de ser peculiar, de um jeito de ser que se estabelece ideologicamente por princípios de alteridade, dados pelo contato, pela troca e pelo reconhecimento de diferentes formas de significação de existência e modos de vida. Eles assim, à sua maneira, contribuem para o tão decantado modo de vida na cidade do Rio de Janeiro, sendo o legado desses migrantes de grande importância para o modo de vida social carioca.
Eduff – Ponto de encontro e identificação de muitos imigrantes, a Feira de São Cristóvão se tornou o principal bem simbólico dos nordestinos na cidade. A criação e permanência de um espaço como esse podem ser apontados como um local de resistência e memória da cultura nordestina?
Fernando Cordeiro – A Feira de São Cristóvão é um lugar que se estabelece como ponto de encontro de pessoas valorizadas sob a condição de conterrâneos, em contraposição a uma suposta impessoalidade vivenciada em outras situações e lugares. Nesse ambiente, os migrantes nordestinos teatralizam relações de familiaridade, pela constituição de um estado de ser que é dado na exaltação e na vontade de se estar juntos. Ela reúne em si diversas manifestações, produtos e símbolos típicos do local de origem desses migrantes. Todavia, a experiência compartilhada na feira não é meramente a expressão de uma experiência vivida no mundo de origem, mas de um percurso social que é constituído a partir da interconexão entre universos sociais. É uma feira onde se pode dançar forró, ouvir repente e saborear carne de sol, mas nela também é possível escutar pagode, comprar roupas e adquirir ferramentas de trabalho. Na feira há o encontro com o que é considerado típico, regional e tradicional, mas também com o que é tido como moderno e urbano. Ela é, nesse sentido, múltipla, heterogênea, sendo um espaço que traduz a experiência vivida pelos migrantes nordestinos.
Eduff – No livro, você analisa a aplicação do termo “paraíba” para designar genericamente o imigrante nordestino. O que a criação e utilização desse termo revelam sobre a interação social entre cariocas e nordestinos?
Fernando Cordeiro – No processo migratório, quem chega precisa compreender costumes e descobrir códigos sociais. Quem recebe, por sua vez, necessita criar mecanismos de convivência e de passagem selecionada de informação. Nessa dinâmica de socialização e sociabilidade, são marcadas distinções, classificações e nomeações como formas de se manter relacionamentos. Uma condição de reconhecimento social, resultante dessa relação, é a segmentação dos migrantes nordestinos pela categoria paraíba. Essa pressuposta condição social corresponde a uma série de características idealizadas e preconceituosas, que terminam por favorecer a construção de estereótipo. Estereotipagem que, ao passo que cria distinção e alimenta rivalidades, preconceitos e gozações, evidencia e reforça as percepções coletivas e simplificadoras que uns têm de outros. A condição de paraíba está associada a uma categorização genérica, por secundarizar as distinções entre os migrantes segundo o estado de origem, e é situacional, por ressaltar a condição contextual de quem está desenraizado, devendo então socialmente se assentar ou criar raízes, mas a partir de atributos de posição relativa. O tipo paraíba é, nesse aspecto, uma invenção carioca. Invenção que termina também contribuindo na recriação do próprio inventor, além de o tipo paraíba ser também uma recriação daqueles nordestinos migrantes que investiram na conversão de atributos negativos em positividades sociais, ou seja, no exercício do reconhecimento e da autorreafirmação a partir da experiência dada pela alteridade. Os migrantes nordestinos não são, portanto, apenas agentes receptores e adaptadores de novos estilos de vida e de manifestações sociais. Há nesse processo de afiliação social uma interlocução negociada de ideias e valores.
Eduff – No livro, você também trata da presença da migração nordestina no mercado de trabalho, principalmente em ocupações consideradas socialmente subalternas. Em “Trabalho e residência – Estudo das ocupações de empregada doméstica e empregado de edifício a partir de migrantes ‘nordestinos’”, publicado pela Eduff em 2000, você já tratava da ocupação de nordestinos como empregadas domésticas e empregados de edifícios. De que forma essa se dá essa tendência de emprego em funções específicas na cidade?
Fernando Cordeiro – Os motivos que levam os trabalhadores migrantes a aderirem a determinadas ocupações correspondem a diferentes fatores, interesses e valores, não podendo ser entendidos apenas pelo efeito direto da relação entre oferta e procura. Contribuem para essa forma de afiliação social o pouco conhecimento dos mecanismos de funcionamento do mercado de trabalho, o nível de escolarização, a qualificação profissional e certas similitudes com o espaço social de origem, como a personalização da relação de trabalho e a simbolização do ritmo funcional, bem como as estratégias adotadas para a implementação dos projetos vislumbrados. A ação comunitária entre os migrantes é bastante utilizada para possibilitar a afiliação ao mercado de trabalho, sendo as relações sociais estabelecidas um recurso recorrente para se obter emprego. Trata-se de um capital social que propicia uma rede de contatos e informações sobre as vagas disponíveis, bem como de recomendações para onde, quando e como se obter trabalho.
Eduff – Em que se diferenciam os imigrantes que chegaram ao Rio de Janeiro nas décadas de 1950 e 1960 da geração atual que chega à cidade?
Fernando Cordeiro – É preciso diferenciar a dinâmica social e histórica vivenciada pelas distintas gerações de migrantes. A migração massiva ocorrida nas décadas de 1950 e 1960 na sociedade brasileira foi decorrente de um processo de mudança social que reconfigurou profundamente o sistema produtivo e as relações sociais. Atualmente, além de o fluxo migratório ter diminuído, houve uma série de transformações e inovações tecnológicas que contribuíram para que diferentes universos sociais ficassem mais interconectados, flexibilizando as fronteiras do aqui, do ali e do acolá, bem como emaranhando e confundindo o que é local e o que é global. Nos deslocamentos espaciais, que também são sociais, estranhamentos continuam a existir, todavia com articulações e mediações que encurtam as distâncias, aproximam o que é diferente e facilitam as familiaridades. Além disso, a própria experiência da primeira geração de migrantes, que atuaram como desbravadores que abriram passagens e criaram alicerces, tornou-se um ancoradouro que possibilita uma inserção e adaptação menos traumática para as novas gerações de migrantes, embora cada tempo tenha seus próprios desafios.
*foto de Monica Miranda
O livro “Nordestinos no Rio de Janeiro – alteridades e legados culturais” pode ser adquirido no site da Eduff, em www.eduff.uff.br.