UFF Responde: O crescimento de alergias alimentares

No Brasil, as alergias alimentares em crianças aumentaram 50% entre 1997 e 2011 segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças

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Diagnósticos de reações imunológicas crescem com as mudanças nos padrões de alimentação

As alergias alimentares são um tipo de reação adversa a determinados alimentos, resultante de uma resposta imunológica exacerbada específica a um antígeno — substâncias que provocam a resposta imune do organismo — e que se reproduz a cada contato com aquele mesmo alimento. Segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, entre 1997 e 2011, as alergias alimentares em crianças aumentaram 50%. No Brasil, dados da iniciativa Alergia Alimentar Brasil revelam que cerca de 6% das crianças e 3,5% dos adultos brasileiros possuem essas alergias. Com isso, o Consenso Brasileiro sobre Alergia Alimentar de 2018 reviu os métodos diagnósticos e esquemas de tratamento para pacientes com alergias alimentar, objetivando uma melhor abordagem terapêutica.

Embora qualquer alimento possa causar uma reação alérgica, castanhas, amendoim, leite, ovos, soja, peixes, crustáceos e mariscos são os principais causadores de alergia. A intensidade da resposta imune varia de organismo para organismo, podendo até mesmo causar a morte. Com isso, em 2022, novas normas de rotulagem nutricional entraram em vigor, fruto, sobretudo, de mobilizações da campanha “Põe no Rótulo”, que reuniu mais de 700 famílias, para tornar obrigatória a descrição dos alimentos utilizados nos produtos de forma explícita nas embalagens. Ainda, em 2023, foi sancionada a Lei 14.731, que institui a Semana de Conscientização sobre Alergia Alimentar, em maio.

Neste UFF Responde, a professora do Departamento de Nutrição e Dietética da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ana Lúcia Pires Augusto, explica sobre as alergias alimentares e o que tem levado ao aumento delas entre crianças e adultos.

Primeiro, qual a diferença entre alergia e intolerância alimentar?

Ana Lúcia Pires Augusto: A alergia alimentar é uma reação alimentar adversa de caráter imunológico, já a intolerância alimentar é, principalmente, de caráter digestivo; não há envolvimento de elementos do sistema imune. Ela ocorre em decorrência da ausência ou diminuição da produção de enzimas digestivas como, por exemplo, a lactase, responsável pela digestão da lactose.

A intolerância à lactose ocorre frequentemente após quadros prolongados de lesões na mucosa intestinal, nos quais a porção intestinal, que produz a enzima lactase, é danificada. De forma muito rara, ela também pode ocorrer por erro genético, quando não há a produção da enzima — mamíferos tendem a ter a produção de lactase diminuída após os dois anos, já os seres humanos, por continuarem a ingerir leite de vaca e derivados, continuam a produzi-la.

O que causa as alergias?

Ana Lúcia: Em termos técnicos, a alergia é representada pela hipersensibilidade alimentar do tipo I, mediada pela Imunoglobulina E — uma das principais intermediárias das alergias —, mas, informalmente, todos os tipos são considerados alergias. Essas proteínas funcionam como substâncias estranhas, ou seja, como antígenos que serão reconhecidos pelas imunoglobulinas e células imunitárias que respondem com mecanismos que caracterizam o quadro alérgico, representados pela liberação de substâncias de algumas células de defesa, no intuito de combater o antígeno, que causam os sintomas conhecidos como prurido (coceira) e inflamações (que podem levar a diarreia quando ocorrem na mucosa do intestino), bronquites e dermatites, entre outras condições.

Não podemos dizer que existe uma única causa para as alergias. Aquelas classificadas como primárias parecem ser mais ligadas a fatores genéticos e hereditários, uma vez que alguns indivíduos apresentam maior número de receptores celulares para a Imunoglobulina E. Fatores como a exposição precoce a antígenos alimentares contribuem muito para a instalação de alergias alimentares, como alguns fatores precipitantes, principalmente naquelas de mecanismo secundário, que acontecem após lesões com inflamação prolongada da mucosa intestinal, gerada por gastroenterites que podem se agravar por fatores como desmame precoce seguido da introdução de alimentos mais alergênicos, como o leite de vaca, e derivados, como as fórmulas infantis. Outros fatores predisponentes são a desnutrição energético-proteica, infecções gastrointestinais de repetição, prematuridade, entre outros.

Algumas pesquisas mostram que as alergias alimentares estão aumentando ao longo dos anos. O que explica esse crescimento?

Ana Lúcia: Houve, de fato, um crescimento na prevalência de Alergia Alimentar segundo a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI), mas também houve um aumento dos diagnósticos legítimos que há décadas passavam despercebidos, além de falsos diagnósticos, uma vez que os modismos e crenças inverídicas relacionados à alimentação e à alergia se tornaram frequentes.

Nas últimas décadas, acredita-se que a mudança nos padrões alimentares que acompanharam a transição nutricional com aumento da industrialização de alimentos deram margem ao consumo aumentado de antígenos e partículas antigênicas estranhas às proteínas corporais que podem aumentar a resposta de hipersensibilidade. Nos primeiros meses de vida isso é particularmente mais frequente, pois lactentes devem mamar exclusivamente no seio até os seis meses, justamente para evitar que entrem em contato com partículas estranhas ao corpo, visto que ainda há muita imaturidade imunológica.

Por que as alergias alimentares são mais comuns em crianças?

Ana Lúcia: Pelo imaturo desenvolvimento do sistema imunológico, principalmente em lactentes menores de seis meses. Quando entram em contato de forma errônea com proteínas diferentes daquelas do leite materno que vão funcionar como substâncias estranhas, ou seja, vão funcionar como antígenos que serão reconhecidos pelas imunoglobulinas e células imunitárias que responderão com mecanismos que caracterizam o quadro alérgico

É possível que uma alergia alimentar desapareça ou se desenvolva na fase adulta?

Ana Lúcia: Alergias típicas da infância, como a alergia à proteína do leite de vaca (APLV), normalmente têm seus sintomas diminuídos a partir do primeiro ano e meio de vida e essas crianças tendem a desenvolver resposta de tolerância após os dois anos. Algumas alergias múltiplas como a do leite de vaca, juntamente com carne, ovo, soja, banana, kiwi, podem durar um pouco mais. Outras alergias, como aquelas aos crustáceos (camarão), tendem a se estender pela vida adulta. Não raramente algumas outras alergias podem se desenvolver na vida adulta, a exemplo de alimentos picantes, ácidos ou mesmo alguns tipos de peixes e crustáceos.

O aumento do consumo de alimentos ultraprocessados também pode ter relação com o crescimento das alergias alimentares?

Ana Lúcia: Sim. Sabe-se que, no processamento de alimentos, aditivos químicos, como corantes e conservantes podem ser responsáveis pela resposta exacerbada do sistema imunológico, precipitando quadros alérgicos.

Quais consequências à saúde uma alergia alimentar pode desencadear?

Ana Lúcia: Os sintomas mais comuns são as diarreias, bronquites, asma, dermatites, esofagites e proctocolites. Sintomas mais graves estão relacionados à anafilaxia (forma mais grave da reação alérgica). As alergias alimentares também podem levar ao adoecimento frequente de crianças, principalmente aquelas com sintomas gastrointestinais, como diarreias crônicas que limitam a absorção de nutrientes, levando a um quadro carencial também crônico. Outros sintomas bastante limitantes estão relacionados aos quadros respiratórios, que comprometem a respiração das crianças, inclusive podendo levar à hospitalização.

Quais são os tratamentos para a alergia alimentar? Existe cura definitiva ou o tratamento é contínuo?

Ana Lúcia: A melhor forma de prevenir a alergia alimentar é garantir o aleitamento materno ao seio exclusivamente até o sexto mês de vida e, a partir daí, a introdução alimentar com alimentos in natura ou minimamente processados. O retardo excessivo da introdução de alguns alimentos que historicamente foram considerados como de caráter mais alergênico (frutas cítricas, ovo, crustáceos) também pode facilitar a instalação e perpetuação de quadros alérgicos e prejudicar a resposta de tolerância a esses alimentos.

O tratamento é representado pela exclusão total do alimento por um período, a princípio de seis meses a um ano no caso de crianças pequenas e, em alguns casos, para toda a vida. É necessário também o acompanhamento de um nutricionista, que pode indicar de que forma a exclusão não trará prejuízos nutricionais, como na exclusão do leite de vaca, fonte substancial de cálcio e proteínas. No caso de lactentes que não são amamentados por opção da mãe ou por outros motivos, fórmulas infantis especiais à base de hidrolisados proteicos e mesmo fórmulas caseiras, como a fórmula de frango, são indicadas sempre com acompanhamento de nutricionista e gastroenterologista pediátrico. Mesmo para a introdução alimentar, o acompanhamento por um nutricionista pediátrico é fundamental.

Que importância a descrição da composição dos alimentos nos rótulos e nos cardápios de restaurantes tem para as pessoas alérgicas?

Ana Lúcia: Tem total importância. Quando o indivíduo portador da alergia alimentar ou seu principal cuidador, normalmente as mães e os pais, têm conhecimento das restrições alimentares que necessitam ser feitas, eles vão buscar a composição dos alimentos que deve estar adequadamente registrada nos rótulos dos produtos industrializados ou produtos comercializados. Os produtos consumidos devem, portanto, ser de fontes seguras.

Quais iniciativas podem contribuir para uma maior qualidade de vida para quem convive com essa desordem imunológica?

Ana Lúcia: A mortalidade por alergia alimentar é rara, mas as restrições a que o indivíduo, principalmente crianças, é submetido podem interferir substancialmente na rotina da sua vida, em seus prazeres e naquilo que estabeleceu afetivamente como sinal de conforto e segurança emocional, trazendo impactos difíceis de lidar para ele e seus familiares. Assim, é fundamental que se sintam apoiados pelos profissionais que os atendem, que devem disponibilizar canais de comunicação direta e permanente, além das consultas, para que orientações sejam realizadas e dúvidas sanadas.

Também é muito importante que os rótulos dos produtos sejam absolutamente assertivos na composição dos constituintes alimentares e de aditivos químicos, além de indicar a presença de alimentos que podem ser alergênicos como o leite de vaca e o glúten. Os indivíduos ou seus cuidadores devem ser desencorajados a seguirem redes sociais com aconselhamento alimentar e nutricional por parte de pessoas leigas, a menos que tenham sido indicados pelos profissionais que os assistem. Devido aos impactos, inclusive psicossociais, que esses indivíduos e seus familiares recebem, a assistência psicológica junto à equipe multiprofissional é igualmente importante. A participação em grupos assistidos por profissionais, de portadores de alergias e intolerâncias também pode ser uma boa ideia, uma vez que representa um cenário de troca de experiências nutridoras.

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Ana Lúcia Pires Augusto é professora do Departamento de Nutrição e Dietética da Faculdade de Nutrição e coordenadora do Ambulatório de Atendimento Nutricional de Crianças e Adolescentes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduada em Nutrição pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Psicossomática Contemporânea pela Universidade Gama Filho, mestrado em Biologia Humana e Experimental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorado em Ciências Nutricionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pela UFRJ, é também pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos em Segurança Alimentar e Nutricional (GISAN-UFRJ), desenvolvendo estudos de Nutrição Clínica Infantil e Neonatal, como desnutrição, diarreia crônica, alergia alimentar e Transtornos do Espectro Autista (TEA).

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