Conferência internacional discute pobreza e justiça social no cenário pós-Covid

Fronteira entre Paraisópolis e Morumbi

Crédito da fotografia: 
Tuca Vieira
Docente da UFF apresenta resultados de pesquisa sobre padrão de vida digno no Brasil

Em evento realizado pelo Bristol Poverty Institute, entidade ligada à Universidade de Bristol, na Inglaterra, pesquisadores do mundo todo se reuniram para explorar os impactos da pandemia na sociedade e discutir ações para mitigar as consequências negativas. Os painéis agruparam um público multissetorial para complementar as abordagens com conhecimentos variados sob uma perspectiva global.

Com foco no cenário do continente americano, a professora do Departamento de Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF), Flávia Uchôa de Oliveira, apresentou os resultados das pesquisas desenvolvidas nas regiões sudeste e nordeste do Brasil. O estudo, conduzido desde 2019 por pesquisadores da UFF, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de Cardiff, investiga os fatores que os brasileiros consideram necessários para que se tenha um padrão de vida digno para a compreensão e mensuração da pobreza em suas várias formas.

Os dados fazem parte do projeto interinstitucional “Pobreza Multidimensional no Brasil”, que analisa as múltiplas dimensões da pobreza, partindo da compreensão sobre o que as sociedades compreendem como dignidade e sobre o que consideram são necessidades básicas para uma vida digna, com base na Abordagem do Consenso. Essa metodologia reúne grupos focais e aplicação de questionários para estabelecer consenso a respeito dos itens que são considerados imprescindíveis para a dignidade.

“A Abordagem Consensual supera as linhas monetárias da pobreza ao abrir o debate e questionar a sociedade sobre o que é necessário para que se tenha dignidade, considerando o tempo e o lugar em que se vive. Em nossa pesquisa, promovemos a discussão coletiva sobre o acesso a direitos e garantias constitucionais. Discutimos, por exemplo, como nos dias de hoje o trabalho não é garantia de saída da pobreza e de proteção social e como devemos, por isso, pensar em uma Renda Básica Universal e na ampliação do acesso à saúde e à educação. Propor caminhos que sejam construídos pela sociedade brasileira é crucial para podermos ultrapassar uma visão de austeridade que em nome de uma dita “responsabilidade fiscal” para a economia”, explica Uchôa.


Mapa de calor do consenso entre o total de participantes sobre os itens necessários para um padrão de vida digno nas comunidades da Brasilândia, de Paraisópolis e da Vila Vietnã na capital paulistana

Em São Paulo, por exemplo, onde os questionários foram aplicados nas comunidades da Brasilândia, de Paraisópolis e da Vila Vietnã, 90% dos participantes apontaram comida, higiene, saúde, educação, vestimenta, moradia, transporte público e renda como fatores básicos para uma vida digna. Para a docente da UFF, o trabalho auxilia as decisões do poder público. “Essa compreensão colabora para orientar a formulação de políticas públicas que atendam efetivamente aos anseios da população e para erradicar todas as formas de pobreza, primeiro dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU)”.

O debate incluiu as diferenças entre o que é percebido como necessidade para gerações distintas, questões sobre a situação de trabalho, de renda e de condições de vida. A pesquisa evidencia que as necessidades extrapolam o conceito material. Para 80% dos entrevistados, um padrão de vida aceitável deveria abarcar o acesso a serviços básicos e a atividades e costumes sociais, reforçando a importância da inclusão dos indivíduos nos espaços de interação social. Momentos de lazer, viagens de férias, celebração de aniversários e datas comemorativas são vistas como atividades sociais que fazem parte do que é um padrão de vida digno no país. Outros fatores como ter condições de celebrar aniversários e de frequentar cinema e teatro, por exemplo, também são vistos como uma condição de dignidade por mais de 60% dos entrevistados na cidade de São Paulo.

Precarização do trabalho como fator de pobreza

A pesquisa também analisa como a situação de emprego e de renda influencia para atingir um padrão de vida digno. Com base nas análises dos grupos focais, o artigo “Trabalho decente para uma vida digna: um estudo piloto a partir da abordagem consensual na cidade de Campinas” aponta para a compreensão do trabalho como um regulador de acesso a direitos sociais.

“O conceito de trabalho decente acrescenta as noções de direito, proteção e participação social. A Organização Internacional do Trabalho inclui neste conceito aqueles que estão nas margens do mercado formal, como os trabalhadores informais, autônomos, que trabalham por conta própria, subcontratados, terceirizados, que trabalham em domicílios, no trabalho de cuidado e no trabalho reprodutivo”, esclarece a docente.

Essa relação entre pobreza e trabalho reforça a importância de uma condição de trabalho justa como elemento essencial para a erradicação da pobreza. Para parte dos entrevistados, o desgaste no trabalho, a sobrecarga e a intensidade do ritmo de trabalho não remetem à maior renda ou melhores condições de vida. De acordo com os participantes de grupos focais na cidade de Campinas, não há necessariamente uma correlação   positiva   entre   trabalho   e   saída   da   pobreza.

A falta de perspectiva é observada diretamente nas relações precarizadas de trabalho, como no caso dos trabalhadores por aplicativo, para os quais a fragilização das condições laborais surge como uma tendência geral do mercado. Esse fenômeno se mostrou mais presente entre homens negros jovens e periféricos. 

Entenda mais sobre esse fenômeno no UFF Responde

Perspectivas futuras

Atualmente, o grupo de pesquisadores está trabalhando nos resultados alcançados no município de Botuporã, na Bahia, e na região metropolitana de Campinas. Em expansão nacional e internacional, a investigação sobre Pobreza Multidimensional deve ser conduzida em municípios das outras regiões do país, com o objetivo de estabelecer uma linha da pobreza multidimensional cientificamente válida no Brasil e que seja comparável com as de outros países.

A participação na Conferência em Bristol teve o objetivo de ampliar o processo de internacionalização do projeto. Uchôa revela que também “existe a possibilidade de pesquisas comparativas com estudos produzidos na Argentina e no México, na África do Sul e na Índia”. Também como fruto da participação no evento, a UFF recebe, em agosto deste ano, a visita do professor da Universidade de Cardiff, Shailen Nandy, com o objetivo de estabelecer novas parcerias ao nível de graduação e de pós-graduação.

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Flavia Manuella Uchoa de Oliveira é professora adjunta do Departamento de Administração e no Programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense. Subcoordenadora do curso de MBA em Gestão de Recursos Humanos da UFF. Doutora em Psicologia Social do Trabalho pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu estudos pós-doutorais pela Universidade de Cardiff. É Editora Adjunta dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho; coordenadora no Núcleo de Estudos em Psicologia Social do Trabalho (NUPST); pesquisadora colaboradora do Laboratório de Estudos em Ação Clínica e Saúde da Universidade de Pernambuco (LACS-UPE); integrante do Laboratório de Estudos do Trabalho, Movimentos Sociais e Políticas Sociais (TraMPos) do Instituto de Psicologia da USP.

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