UFF Responde: Superdotação e Altas Habilidades

Superdotação/Altas Habilidades não é transtorno, deficiência, doença rara, nem se relaciona com o autismo.

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Característica inata da cognição humana pode ser observada desde a primeira infância ou a partir da introdução escolar

Em 10 de agosto celebra-se o Dia Internacional da Pessoa com Altas Habilidades/Superdotação. Conforme explica a cartilha “Saberes e práticas da inclusão” elaborada pela Secretaria Especial do Ministério da Educação (MEC), os alunos superdotados apresentam potencial elevado, isolado ou combinado, nas seguintes áreas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. A Associação Mensa Brasil, entidade que reúne pessoas com altas capacidades intelectuais, estima que 3.500 brasileiros, incluindo 1.000 crianças e adolescentes, enquadram-se nessa categoria. Esse número pode ser ainda maior, considerando a falta de diagnósticos que resulta em subnotificação da quantidade real.

Neste UFF Responde, convidamos as docentes Cristina Delou, criadora do Programa de Atendimento a Alunos com Altas Habilidades/Superdotação da Universidade Federal Fluminense (PAAAH/SD-UFF), e Fernanda Serpa, vice-coordenadora do Programa De Apoio a Alunos com Comportamento Superdotado (PRAACS!), criado pelo grupo Desenvolvimento e Inovação em Ensino de Ciências (DIECI-UFF), que promove, entre outras atividades, o Curso de Férias para Alunos Superdotados. As pesquisadoras falam mais sobre as características dessas condições, os desafios enfrentados no ambiente escolar e social e a importância da orientação psicológica e pedagógica para lidar com essas capacidades:

Superdotação e altas habilidades são a mesma coisa? Quais são suas principais características?

Cristina Delou: Legalmente, ambos os termos (superdotação e altas habilidades) são utilizados no Brasil. A superdotação é caracterizada por alta performance inata, enquanto as altas habilidades se manifestam após a aprendizagem. Ambas resultam em desempenho elevado, mas diferem na origem da criatividade: a superdotação traz uma criatividade natural, enquanto as altas habilidades podem desenvolver criatividade aprendida. Superdotação não é transtorno, deficiência ou doença rara. É uma característica da cognição humana acima da média, com valores cognitivos altos.

Como identificar uma pessoa superdotada? Há diferenças para reconhecer a condição em adultos e crianças?

Cristina Delou: Crianças superdotadas fazem tudo mais cedo que as outras. Elas adoram ler, calcular e têm alta performance antes da idade esperada. Frequentemente, isso causa preocupação na escola, pois se antecipam aos professores e ao currículo. Já crianças com altas habilidades mostram seu desempenho elevado após aprenderem sistematicamente. Um exemplo que posso dar é o de uma criança de 8 anos que soube explicar em aula que bananas não têm sementes, enquanto a professora afirmava o contrário. A mãe confirmou a informação trazida pela criança, e a professora pediu desculpas à aluna no dia seguinte. Outra forma de identificar é através do desempenho acadêmico, interesses e motivação. Por exemplo, um aluno de 12 anos da UFF, que dominava quatro idiomas e se destacou em Cálculo I na universidade, mesmo não sendo um estudante formal de matemática. São casos mais raros os de pessoas que são identificadas como superdotadas ou com altas habilidades apenas na vida adulta (embora não sejam impossíveis), já que as características dessa condição ficam mais discrepantes no começo da vida escolar.

Fernanda Serpa: É importante saber que não há um padrão e que os superdotados não são gênios, portanto, não devemos esperar o menino branco, bem-comportado e com o caderno em dia nas salas de aula. De modo geral, eles têm um perfil desafiador. Não porque querem afrontar, mas sim porque seu cérebro funciona de maneira a formular perguntas e buscar respostas que, muitas vezes, ele acredita não estar sendo oferecida da forma mais coerente. A Justiça Social também é muito forte neles, o que faz com que não só se sintam injustiçados, mas percebam a violência que o outro está sofrendo e isso o levará a questionar regras que não foram bem estabelecidas. Por terem um processamento cerebral diferente, as atividades oferecidas nas escolas de forma muito tradicional, que não apresentam desafios, não são interessantes para eles, e isso faz com que muitas vezes sejam confundidos, por exemplo, com pessoas que têm déficit de atenção ou hiperatividade.

A superdotação é uma característica genética?

Cristina: A ciência ainda não pode afirmar categoricamente que essa é uma condição herdada geneticamente. Contudo, acredito que existam sim fatores genéticos em relação à superdotação, já que as sinapses cerebrais podem ir se aperfeiçoando de geração em geração.  Independente da origem, o fundamental é manter um trabalho contínuo com ética e valores junto às pessoas com altas habilidades, para que utilizem a inteligência em benefício de si mesmos, da sociedade e do todo. Que a inteligência seja utilizada a favor da sociedade e não para criar algo capaz de destruir o mundo e a humanidade.

Como é feito o diagnóstico de uma pessoa superdotada? Existe algum método além do teste de QI?

Cristina: Existem outros métodos além do clássico teste de QI para identificar altas habilidades. Por exemplo, algumas universidades em São Paulo, como USP e Unesp, têm sistemas específicos para entrada de medalhistas da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (Obmep), e outras olimpíadas de conhecimento, reconhecendo-os como alunos com altas habilidades ou superdotação.

Fernanda: Apenas o teste de QI é muito perigoso, porque os testes de QI são baseados em conhecimentos científicos/escolares e nem todas as crianças e adolescentes têm igual acesso a esses conhecimentos. Existem listas de indicadores de comportamento superdotado, desenvolvidas por pesquisadores da área, que podem ser utilizadas por professores e/ou psicopedagogos. As listas permitem observar características que “destacam” esses indivíduos quando comparados aos seus pares. É importante ressaltar que não existe apenas o aluno inteligente em matemática e ciências, mas que, conforme Howard Gardner, cada pessoa possui diferentes tipos de inteligências, os quais precisam ser observados e valorizados com a mesma dimensão e nem todos são contemplados nos testes de QI tradicionais.

Qual a importância do diagnóstico de superdotação na vida de quem possui essa condição, considerando suas dificuldades mais comuns?

Cristina: Em relação ao diagnóstico, a maior importância é o autoconhecimento. Ninguém se aprofunda em um autoconhecimento pleno e integral sem saber que é capaz de criar soluções e dar respostas criativas de alto nível. Como são poucas as pessoas capazes desse tipo de desempenho, há sempre um estranhamento em relação a esse indivíduo, taxando-o frequentemente de esquisito, diferente ou estranho. Além disso, se as crianças superdotadas não são adequadamente desafiadas, elas se desinteressam, entediam e podem até deprimir, pois não aprendem nada de novo. Geralmente, é através de um momento de sofrimento psíquico da criança que a família costuma procurar um profissional como o neuropsicólogo. Sempre há uma queixa, seja por comportamento inadequado na escola, depressão, ou mesmo um momento em que a criança não quer mais ir à escola. No atendimento a esses alunos é necessário entender a origem do sofrimento para dar a orientação adequada, mas, em geral, fora de um quadro de queixa a maior parte dessa população não é identificada. Portanto, acredito que as pessoas com altas habilidades precisam ser valorizadas pelo meio que valoriza esse tipo de desempenho.

Qual a importância do convívio com outras pessoas superdotadas ou com altas habilidades para a socialização e desenvolvimento dessas capacidades?

Fernanda: A importância do convívio com outros superdotados é, em primeiro lugar, para que ele encontre os seus pares intelectuais e de interesses. É muito comum o superdotado se achar o “estranho” na escola e em um local especializado em atendê-lo, ele se sente mais confortável. Um outro ponto que precisa ser levado em consideração em programas de atendimento aos superdotados é a possibilidade do desenvolvimento das inteligências intra e interpessoais, normalmente as mais difíceis de serem aprimoradas nos seres humanos e que não é diferente nos superdotados. Por isso, as atividades do DIECI UFF buscam sempre a colaboração entre os pares, de forma que eles não se vejam como opositores e valorizem os diversos tipos de inteligência em que os outros alunos possuem potenciais acima da média (que podem ser diferentes do seu). Nesses processos, esperamos que essas crianças e adolescentes também percebam que todas as pessoas são diferentes umas das outras, sejam superdotadas ou não.

Cristina: Penso que, ao invés do ambiente educacional (seja da educação básica até o ensino superior), achar que esses alunos são opositores, desafiadores, inconvenientes, deveriam incentivá-los a explorar suas habilidades. Falando especificamente no ambiente acadêmico universitário, nós, enquanto pesquisadores e cientistas não podemos ver nossos alunos como competidores ou desafiadores, mas como aqueles que vão ser formados para dar continuidade aos nossos estudos e serão novos parceiros na produção do conhecimento e da produção científica. O trabalho é coletivo, então os professores precisam dos alunos e vice-versa. Então, é preciso fazer uma conscientização para que a ciência avance no seu mais alto nível e que pessoas com altas habilidades ou superdotadas possam um dia dar continuidade ao trabalho que nós começamos.

Quais orientações você daria aos responsáveis que suspeitam que seu filho é superdotado? Algumas famílias relatam que as escolas têm dificuldade em lidar corretamente com uma pessoa superdotada.

Cristina: A orientação para os responsáveis seria buscar ajuda neuropsicológica e escolas que sejam aptas a lidar com essa condição. Porém, o problema é que a família vai escolher a escola que acha mais adequada para o filho, mas, nem sempre, essa escola é acolhedora em relação a essas características de alto desempenho durante a educação básica. Muitas dessas escolas visam o destaque do aluno no final do Ensino Médio, mas não o consideram durante a educação fundamental nem dão a atenção necessária às crianças e aos pais na orientação pedagógica. Existem famílias que buscam através da avaliação da criança um reconhecimento social para si mesmos. Como não há herança genética definida cientificamente, a família não pode concluir que são superdotados também. Este também é um equívoco comum hoje. Mais grave ainda é achar que superdotação e autismo andam juntos. Não andam. Superdotação é uma coisa, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é outra. Embora alguns autistas possam ser superdotados, temos que ter clareza de que as altas habilidades ou superdotação não incluem o autismo.

Quais são as melhores estratégias para lidar com pessoas superdotadas no ambiente escolar?

Fernanda: A primeira coisa que a escola deve fazer é reconhecer a presença desses alunos em suas salas de aula. Estudos realizados desde a década de 1970, aceitos pela OMS, indicam que de 3 a 5% da população mundial é superdotada, o que significa que sim, as escolas brasileiras possuem alunos superdotados. A negação da superdotação é prejudicial não só para o aluno, mas para toda a escola. Uma vez reconhecido, o aluno tem direito, garantido pela Lei de Diretrizes e Bases, de ser atendido em suas particularidades pelo que é conhecido como suplementação. Dar a suplementação significa proporcionar atividades que vão além do que é visto na sala de aula regular. Essa suplementação pode ser ofertada pelo próprio docente, como também nas salas de recursos multifuncionais. O aluno também pode ser acelerado em disciplinas nas quais está além da turma em termos de conhecimento, como também de séries.

Cristina: A escola deveria fornecer orientação pedagógica, mas quando isso não ocorre, a família deve buscar orientação neuropsicológica para atender o filho. A pessoa superdotada que não é estimulada não perde a potencialidade, no entanto, quem é estimulado pode ter performances mais elevadas, pois está tendo acesso a um nível de ensino ou de estimulação criativa mais amplo. Como professora e conhecendo o assunto de altas habilidades e superdotação, posso dizer que, muitas vezes, encontramos alunos que são nossos espelhos, pessoas como nós fomos na infância e juventude. Seria muito bom ajudarmos esses alunos a crescerem, em vez de segurá-los para que não nos superem.

Como tornar os espaços mais inclusivos para pessoas superdotadas?

Fernanda: Todas as medidas devem ser acompanhadas pela família e os profissionais de apoio (psicólogos, psicopedagogos etc.), caso o aluno tenha algum que o atenda, para que seja decidido o que é melhor para aquele indivíduo. No entanto, urge que nossos governos façam com que a legislação seja cumprida, para proporcionar o pleno desenvolvimento dessas crianças e, inclusive, impedir a fuga de cérebros de nosso país.

Cristina: O fundamental é que os professores e as escolas deixem de ser barreiras atitudinais, que são comportamentos que dificultam ou impedem o desenvolvimento dessas crianças pela dificuldade em lidar com a condição de superdotação ou altas habilidades nesses ambientes. Só assim esses alunos serão visíveis e terão acesso aos direitos garantidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). O parecer 51/2023 do Conselho Nacional de Educação (CNE) faz exatamente isso: traz os direitos que a LDB garante para pessoas com altas habilidades/superdotação e como a escola pode implementar esses direitos. O parecer é um guia para a escola se tornar mais inclusiva nesse aspecto. A Comissão considerou fundamental reunir um grupo qualificado para melhor compreensão da extensão das necessidades, seus impedimentos, suas limitações, suas potencialidades, bem como o conhecimento dos cenários dos sistemas de ensino educacionais, buscando subsídios para a elaboração de um parecer que situa-se como orientador do atendimento aos estudantes de altas habilidades ou superdotação e foi elaborado com a participação voluntária e dedicada de profissionais da mais alta qualificação e especializados na área. No entanto, é preciso essa mudança de comportamento no ambiente escolar que, por si só, deve ser integrativo e inclusivo, considerando as diferenças entre os alunos, mas que, para os superdotados, quando bem observados, pode ser um lugar de autodescoberta e motivação.

O Curso de Férias para Alunos Superdotados da UFF - DIECI está em atividade? Se sim, quais atividades são realizadas nesse curso? Elas observam as especificidades de cada aluno?

Fernanda: Sim, o Curso de Verão está ativo. Em janeiro de 2024 a equipe realizou sua 12ª edição. Além dele, através do nosso Programa de Apoio a Alunos com Comportamento Superdotado (PRAACS!), também realizamos na UFF duas edições anuais do “DIECI UFF Convida - um dia de Ciências”, a 10ª ocorrerá no próximo dia 16 de agosto.  Tanto no Curso de Verão quanto no DIECI UFF Convida são ofertadas Oficinas Interativas, uma metodologia desenvolvida pelo DIECI UFF para ser aplicada na escola regular, que foi adaptada para atender as demandas dos superdotados. O curso é aberto para alunos de escolas públicas e privadas da educação básica - fundamental I e II e médio. Tem que entrar em contato com agendadieci@gmail.com e solicitar uma vaga na fila de espera. Elas são baseadas nas teorias de Renzulli (pesquisador na área da superdotação) e na problematização de Paulo Freire. Os alunos do curso de verão são sempre desafiados a pensar em problemas do Mundo não só numa perspectiva científica, mas também em questões de cunho social e que englobam a dignidade humana. Ao ter contato com sua área de interesse, mas também a oportunidade de conhecer e desenvolver outras áreas do conhecimento para além daquela que é a sua prioridade, esses alunos se formam como indivíduos plenos a quem Renzulli denomina de Capital Social.
Há uma lista de espera para o atendimento e os responsáveis interessados devem encaminhar e-mail para agendadieci@gmail.com .
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Cristina Maria Carvalho Delou é psicóloga, Licenciada em Psicologia na PUC-RJ (1981), Especialista (1981) e Mestre em Educação na área de concentração Educação de Superdotados na UERJ (1987), e Doutora em Educação, pelo PPG em Educação: História, Política, Sociedade, na PUC-SP (2001); Professora Aposentada da Faculdade de Educação e Docente em cursos de Pós-Graduação stricto-sensu, mestrado e doutorado, nas áreas da Diversidade, Ciências, Tecnologia, Biotecnologia, Biociências, Saúde e Inclusão na Universidade Federal Fluminense (UFF) e no Instituto Oswaldo Cruz. Criadora do Programa de Atendimento a Alunos com Altas Habilidades/Superdotação (PAAAH/SD-UFF). Bolsista Produtividade em Pesquisa Nível 2 do CNPq de 2016 a 2023; Líder do Grupo de Pesquisa Talento e Capacidade Humana na Sociedade e na Educação, vinculado ao CNPq; Presidente Eleita do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD) no biênio 2011-2012 e 2023-2024. Recebeu o Prêmio Jabuti 2015, na categoria Educação e Pedagogia; Medalha do Mérito Carioca como Personalidade Educacional 2019, oferecida pelo Conselho Municipal de Educação, Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. No ano de 2020, foi Coordenadora-Geral de Políticas, Regulação e Formação de Profissionais de Educação Especial, na Diretoria de Educação Especial, da Secretaria de Modalidades Especializadas do Ministério da Educação.

Fernanda Serpa Cardoso é doutora em Ciências e Biotecnologia pela Universidade Federal Fluminense. Possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas - Faculdades de Barra Mansa (1992) , especialização em Microbiologia (1994), especialização em Mediação Pedagógica em EAD (2010) e mestrado em Ciências (Pós graduação em Ensino em Biociências e Saúde - FIOCRUZ -2007. Atualmente é docente do Departamento de Biologia Celular e Molecular e do Curso de Mestrado Profissional em Diversidade e Inclusão (CMPDI) da Universidade Federal Fluminense. Atua como coordenadora do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas. Coordenadora da Escola de Inclusão - UFF e Vice-coordenadora do grupo DIECI UFF. É ainda coordenadora do Curso de Férias para Alunos Superdotados da UFF- DIECI, em parceria com o CMPDI e a Escola de Inclusão. Membro do grupo DIECI - Desenvolvimento e Inovação no Ensino de Ciências, atuando e orientando projetos e trabalhos de conclusão de curso principalmente nos seguintes temas: altas habilidades ou superdotação; interdisciplinaridade; ensino de Ciências/Biologia; Divulgação Científica; ensino de Biologia em Direitos Humanos.

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