Propor metodologias de ensino que vão além do tradicional é um desafio. Pensando nisso, pesquisadores do curso de cinema da Universidade Federal Fluminense criaram, em 2013, o projeto “Inventar com a diferença – cinema, educação e direitos humanos”. Reunido no espaço do Laboratório Kumã, o grupo propõe outras metodologias de ensino por meio de processos artísticos e direitos humanos que possam ser aplicadas pelos espaços educacionais sem que seja necessário o conhecimento das técnicas cinematográficas e da linguagem audiovisual.
O foco central do projeto é na formação continuada de professores, buscando compartilhar saberes e práticas que unam o cinema à educação. Atualmente, o trabalho conta com, pelo menos, 16 integrantes, entre docentes, pós-graduandos, alunos bolsistas e ex-alunos e já foi aplicado em todos os estados brasileiros. Ao todo, mais de 4 mil alunos de escolas públicas já participaram das propostas do grupo.
O coordenador do Laboratório Kumã e do Inventar com a Diferença, Cezar Migliorin, afirma que trabalhou por muitos anos em uma escola de cinema em Nova Iguaçu, a Escola Livre de Cinema e, em 2013, a Secretaria de Direitos Humanos do Ministério de Justiça e Cidadania entrou em contato com a equipe do projeto para propor uma parceria. Além disso, em 2016, um grupo de ex-alunos de licenciatura venceu um edital nacional e está montando uma escola de cinema no Colégio Universitário Geraldo Reis (Coluni-UFF). “Temos um engajamento com educação há muito tempo, bem antes da licenciatura, a relação com temas educacionais sempre foi muito forte”, declara.
Cezar reforça que os professores não precisam ter uma formação profissional em cinema para trabalhar com essas metodologias. “Não trabalhamos com montagem, fotografia, roteiro e outras técnicas do cinema profissional, mas com jogos expositivos, com uma forma muito lúdica de lidar com o cinema na escola, pautado por uma experiência que parte do trabalho da pesquisa há muito tempo, que é ligado ao cinema documental. A metodologia que desenvolvemos envolve uma organização de trabalhos, possibilidades, dispositivos e formas de acompanhamento para que os professores possam trabalhar com cinema e direitos humanos”, descreve.
De acordo com o pesquisador, o engajamento do curso de licenciatura em cinema com o Inventar com a Diferença proporcionou o contato com a secretaria de direitos humanos e foi proposto um projeto nacional de cinema e direitos humanos vinculado às escolas. “Em 2013 propusemos esse trabalho, que acontecia em pelo menos uma cidade de cada estado. Chegamos a ter 40 bolsistas da UFF e mais de 50 pessoas contratadas pelo projeto. Hoje em dia trabalhamos com o Inventar com a Diferença em 23 estados e 13 universidades”.
O professor afirma que o objetivo do projeto atualmente é ensinar de maneira prática e partindo da experiência da imagem, diferente das oficinas mais tradicionais, em que os processos são feitos em etapas – primeiro é feito um roteiro, depois a escolha dos planos de filmagem, montagem e, por fim, a filmagem em si. “Desde o princípio queríamos que os professores e alunos pudessem ter uma experiência direta com a imagem, entrando em contato com pessoas, com comunidades e com o entorno das escolas”, justifica.
Em 2014, o projeto Inventar com a Diferença ofereceu formação e acompanhamento a 459 educadores e 3859 estudantes de 257 escolas públicas do Brasil. Nesse contexto, foi produzido por uma equipe de quatro estudantes universitários de Cinema e Audiovisual o documentário “Pelas Janelas”, resultado do acompanhamento de parte dos processos e experiências em sete cidades ao longo de três meses.
Oficina na Bolívia
Em maio de 2017, Cezar Migliorin e o doutorando Isaac Pipano, também idealizador do Inventar com a Diferença, estiveram na Bolívia representando o projeto da UFF. Ambos ministraram um curso de cinema, educação e direitos humanos. A oficina foi oferecida em parceria com o Ministério da Educação da Bolívia, através da equipe de Formação Artística de Direção Geral de Educação Superior Técnica, Tecnológica, Linguística e Artística, em cooperação com a Embaixada Brasileira.
Segundo Cezar, essa oportunidade surgiu quando alguns colegas bolivianos, chilenos e argentinos começaram a demonstrar interesse pela metodologia brasileira. A palestra foi direcionada a alunos e professores de ensino superior, já a oficina foi organizada nos moldes em que é feita no Brasil, de formação de docentes. “Na oficina da Bolívia, metade do público era de educadores da rede pública, de diversas áreas de ensino, e metade era de estudantes de licenciatura interessados na formação em cinema”, explica.
O professor destaca a relevância de se produzir tecnologias e propor metodologias que unam cinema e educação em uma universidade brasileira. Ele avalia que para a UFF é muito interessante que outros países latino-americanos demonstrem interesse por uma iniciativa desse tipo realizada em um laboratório da instituição. “É um projeto que há alguns anos tem o apoio do Governo Federal, já ganhou editais da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), já trabalhou com dezenas de alunos da graduação e bolsistas. Precisamos romper barreiras, o que UFF faz deve ser levado a outros setores da sociedade”, esclarece.
O próximo país da América Latina a receber o projeto é a Argentina, a partir de agosto. Além disso, segundo Cezar, o projeto voltará à Bolívia pela terceira vez até o final do ano. “Já existe um grupo de educadores bolivianos aplicando de forma independente a metodologia do nosso projeto, pois conheceram o trabalho através de uma ação que fizemos no Acre e reconheceram seu valor”, acrescenta.
O professor defende o papel fundamental do Brasil na América Latina, pois somos vistos como uma grande referência no campo dos estudos de cinema, por exemplo, e o curso da UFF tem grande responsabilidade nesse contexto. “Sou presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), que é formada por quase mil pesquisadores. A Bolívia é um país muito pequeno da América Latina, talvez seja um dos mais pobres, e lá não há nenhuma graduação em cinema. A Argentina é maior, mas, mesmo assim, ainda tem um campo pequeno se comparado ao Brasil”, argumenta.
Migiorin afirma que historicamente o Brasil não se envolve tão diretamente nas questões da América Latina, diferente do olhar dos outros países latinos em relação ao nosso país. “Eles sabem exatamente o que está acontecendo aqui e sabem a importância que temos na área da educação e das artes. Não é à toa que se interessaram e nos convidaram a estreitar os laços, levando nosso projeto até eles”, defende.
Direitos Humanos na Educação
Para o pesquisador, no tema dos direitos humanitários, o princípio da igualdade é um dos principais pilares. “Nossa relação com os direitos humanos não é temática, segmentada e verticalizada. Nós não chegamos na escola definindo os tópicos sobre os quais vamos tratar, pois é fundamental reconhecer a importância dos saberes de alunos e professores igualmente”, esclarece.
Migliorin acredita que, depois de um tempo nesse projeto, os educadores, escolas e estudantes que passam por ele saem mobilizados. A relação entre cinema, educação e direitos humanos promove o engajamento dos participantes com o entorno, com a comunidade. “Em agosto, estaremos encerrando as atividades em muitos estados e estamos dando grande ênfase ao trabalho em centros socioeducativos, em que os jovens estão privados de liberdade. Estamos trabalhando em seis unidades socioeducativas, em Recife, Belo Horizonte e Vitória, que vão até o final do ano”, observa.
No trabalho com os centros socioeducativos de reabilitação de jovens, o cinema e o audiovisual permitem novas experiências na relação com o espaço, com os direitos e com a construção da identidade dessa população. O exercício do cinema permite uma reconfiguração dos sentidos, já que a violência é colocada como algo dado antes mesmo da experiência do mundo por esses adolescentes. No caso dos jovens privados de liberdade, há também uma restrição à reprodução de suas imagens, pois seus rostos não podem aparecer enquanto estiverem cumprindo sua penalidade. Desta forma, os exercícios proporcionam outra vivência da liberdade.
Para ele, a centralidade da escrita e da matemática na escola carece de um terceiro pilar, que seria a ampliação da relação com o sensorial e estético através da imagem. “Eu diria que o projeto atingiu o sucesso no que ele se propõe. Porém, precisamos ir além, somente o engajamento de professores e alunos, com a aproximação da dimensão estética das imagens, pode transformar a educação mundial”, reconhece.
Cezar avalia a experiência como incrível, apesar das dificuldades encontradas. O que os motiva a continuar são relatos de sucesso. “Hoje, a função da UFF é dar suporte às pessoas, grupos, ONGs, universidades e escolas que têm interesse em aplicar a metodologia. O que fazemos é dar um suporte, ajudando nas oficinas de formação de professores, mandando alunos para auxiliar em uma questão mais técnica. Fizemos uma publicação, o Cadernos de Inventar, que contém sugestões de atividades para as oficinas a serem ministradas nas escolas. Ela é distribuída gratuitamente em português e espanhol para todos os espaços que têm interesse”, finaliza.