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Pesquisadora da UFF desconstrói crenças sobre analfabetismo

Monteiro Lobato, reconhecido internacionalmente como precursor da literatura infantil do Brasil, é o autor da célebre frase “um país é feito de homens e livros”. A declaração demonstra o “inconformismo crônico” do escritor com o analfabetismo, que, ao seu ver, limitava a capacidade das pessoas em transformar o mundo. No entanto, na visão da autora do livro “Analfabeto, problema social e desonra pessoal”, Tatiana Arnaud Coutinho Cipiniuk, o mundo possui uma dimensão social que vai muito além do letramento e, por isso, não se pode considerar somente a perspectiva daqueles que sabem ler e escrever.

A pesquisadora traz, em sua obra, uma análise do analfabetismo no Brasil como problema social e reúne depoimentos sobre a questão de honra e vergonha do analfabeto. Ela também discute as condições sociais do exercício do trabalho de campo, a construção de itinerários sociais pelos estudantes, atributos sociais dos alunos e do trabalhador que alcança a condição de estudante, abordando as formas de iniciar o processo de alfabetização.

De acordo com a pós-doutoranda, antes de se declarar que ler e escrever são ferramentas fundamentais, é necessário compreender o que significa a noção de “transformar o mundo” defendida por Lobato. Ela acredita que, para o autor – que viveu no período de 1982 à 1948 – a ideia estava associada às concepções de “progresso”, “avanço” e “modernidade” daquele momento histórico”, explica.

Tatiana defende que esses três conceitos – progresso, avanço e modernidade – conferem uma ótica de expansão, melhoramento e até, como considera o antropólogo e filósofo francês Bruno Latour, “de um combate no qual há vencedores e vencidos”. “Neste caso específico, os vencedores – aqueles que podem “transformar o mundo” – são os que dominam as práticas da escrita e leitura e os perdedores são aqueles que não tiveram esse acesso. A transformação a partir desse domínio é apenas um caminho entre tantos outros”, destaca.

Com graduações em Administração e Produção Cultural, a autora se interessou pela temática antropológica numa disciplina que abordava a questão do consumo. Então, ao término de sua segunda graduação, ingressou no mestrado na área e em seguida no doutorado. Tatiana, que atualmente cursa pós-doutorado no programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF, explica que “existem muitos povos ágrafos – que não utilizam a escrita – ou mesmo etnias que dominam muito pouco ou quase nada das práticas da escrita e leitura. Essas culturas também contribuíram, em maior ou menor proporção, para os avanços da humanidade”.

Na entrevista a seguir, Tatiana Arnaud fala mais sobre a temática:

Por que o analfabetismo como tema?
O segmento social daqueles que não possuem o domínio das práticas da escrita e leitura entre estudantes da EJA/Peja foi muito pouco pesquisado no Brasil e realizar isso no ambiente escolar não é simples. Os dois livros, o “Analfabeto, problema social e desonra pessoal”, resultado da minha dissertação de mestrado, e o “Analfabetos num Mundo Letrado”, pesquisa resultante de minha tese de doutorado, acabam interessando não só a leitores das mais diferentes áreas de conhecimento como pedagogia, psicologia, sociologia, como também a leitores que não são acadêmicos, já que muitos dos sujeitos pesquisados são funcionários de edifícios e empregadas domésticas. Essas pessoas fazem parte do nosso convívio diário.

Qual é a importância das práticas de escrita e leitura?
No mundo letrado, como o nosso, acredito que ler e escrever ultrapasse a função de uma simples ferramenta. Elas são uma imposição de padrão de construção social idealizadora de humanidades. Saber ler e escrever para “nós” é mandatório. É a primeira coisa que aprendemos na escola. Mas ainda assim, isso não quer dizer que só quem possui o domínio dessas práticas, mesmo no nosso mundo letrado, é capaz de transformar o mundo.

Então, como o analfabeto constrói uma relação com a questão da honra, desonra e vergonha?
As circunstâncias que levam um indivíduo a desempenhar o papel de aluno em processo de alfabetização se fundamenta com base em valores morais. São esses valores que condicionam e orientam socialmente sua resolução de alcançar (ou pelo menos tentar alcançar) uma autonomia para viver numa sociedade letrada. O indivíduo que não se alfabetizou na idade considerada adequada tenta “se encaixar” ao padrão letrado por meio da tentativa da aprendizagem da prática da escrita e leitura e o único antídoto é pelo processo de escolarização formal. Ser considerado analfabeto é fazer parte de uma posição de exclusão social onde são atribuídos juízos de valor, os quais desencadeiam conceitos de aviltamento e sentimentos de desonra. Os mais presentes na minha pesquisa estão associados às categorias sociais como “burro” e “ignorante”. Por outro lado, quem não possui o domínio das práticas da escrita e da leitura não só tem capacidade para mudar o mundo como também o de transformá-lo em um espaço onde as diferenças podem ser consideradas possíveis. E é exatamente isso que mostro nos dois livros que escrevi.

E como o analfabeto se vê num mundo letrado?
Pela pesquisa, foi possível verificar que os desabonos morais associados aos sentimentos de ofensa e menosprezo se exprimem por meio da relação com seus empregadores ou por indivíduos que detém certo poder e autoridade e que avaliam a estranheza de viver sob a ignorância das práticas da escrita e leitura. Várias são as narrativas que exprimem (no livro) experiências de constrangimentos que dificultam ações e reações sociais, coibindo os indivíduos que, tolhidos, reconhecem-se pertencendo a posições desvalorizadas, implicando reconhecimento da vergonha. Quando o “analfabeto” interage com o mundo letrado, orientado pelo valor moral da vergonha, é levado a perceber que suas expectativas são submetidas às regras dominantes, assim se conformando aos atributos estigmatizantes. Geralmente se sentem comedidos e inadequados.

E quais são os obstáculos que eles têm que superar?
O analfabeto supera muitos obstáculos sociais, morais e emocionais. Não são poucos! Estamos falando de uma parte considerável da população brasileira. A maioria dos alunos que fizeram parte da pesquisa, que resultou neste livro, estavam na faixa etária entre 40 e 50 anos de idade. Todos trabalham. São faxineiros, porteiros, auxiliares de serviços diversos, empregadas domésticas e também camelôs. Indivíduos que são provedores de famílias nucleares. Muitos deles não conseguem se alfabetizar, mesmo após passarem, em média, mais de dois anos matriculados em uma instituição de ensino. Apesar de não dominarem as práticas da escrita e leitura muito dos alunos em processo de alfabetização identificam letras e números e vivem a experiência letrada de forma dissimulada. E depois, alfabetizados ou não, alcançam o tão almejado certificado.

Para não ficar desempregado, uma pessoa pode fingir saber ler e escrever?
Sim! É uma questão de sobrevivência. Algumas narrativas contadas no livro demonstram como eles forjam estratégias que simulam o domínio das práticas da escrita e leitura e assim tentam conviver com a alteridade cultural. Algumas narrativas são incríveis como a de um senhor que trabalhava com a contabilidade de um estoque que detinha enorme quantidade de produtos e seu patrão não sabia que ele era analfabeto. Muitos desses “analfabetos” vivem e convivem com o mundo letrado e movimentam parte importante da nossa economia. Possuem domínios diferentes de sentido e diferentes modos de utilização dos mesmos, como a memória, por exemplo. Além disso, esse esforço contínuo em dissimular o domínio da escrita e da leitura e de aprender a dominar tais práticas os posicionam socialmente como um estranho, como um ser da parcialidade, como um inacabado ou, nos rigores do etnocentrismo, um ser fora da cultura. Isso significa dizer que, na prática, a utilização da escrita é vivenciada como uma ordem regular da relação do homem com a linguagem.

De que forma os dados levantados e a experiência adquirida ao abordar e analisar a EJA, foram determinantes na produção do livro?
A EJA e Peja foram parte do objeto da pesquisa. A relação que construí com os sujeitos da pesquisa (alunos e agentes de educação), essa sim, parte fundamental do trabalho, foi determinante. Essa experiência realizada por meio da pesquisa de campo, a qual chamo de imersão, foi relatada em um dos capítulos deste livro e também foi apresentada na outra publicação citada anteriormente. Aliás, é na construção da relação da pesquisa de campo que se constitui a base de qualquer possibilidade de pesquisa para o antropólogo.

Há dados recentes sobre o assunto, como número de analfabetos no Brasil, etc?
Sim, existem alguns dados sobre o índice de analfabetismo no Brasil calculados e divulgados pelo IBGE e também pela agência pública de notícias. A problemática da construção desses índices é, aliás, uma questão muito cara a mim na medida em que considero um tanto irreais os números divulgados. A maioria dos alunos que estudei concluem o Peja/Eja sem condição de ler uma palavra, muito menos uma frase. E mal escrevem seus nomes. A forma como os dados dos estudantes é construída e repassada pelas escolas ao censo escolar, principal instrumento de coleta de informações da educação básica, precisa ser analisada e compreendida a partir de um levantamento sistemático. Este procedimento particularmente me interessa, já que muitos quando terminam a modalidade de ensino de jovens e adultos saem como alfabetizados, mas na verdade não o são. É de fato um assunto polêmico e interessante do ponto de vista antropológico, mas para estudá-lo é necessário investimento para pesquisa.

Na sua opinião, qual a importância desse livro e do seu trabalho para a UFF e para a sociedade?
Em primeiro lugar, todo tema que abarca educação deveria importar a sociedade, sobretudo, às instituições que compõem o Estado. Em segundo lugar a produção desta temática pela perspectiva antropológica tem uma grande relevância visto que há muito pouca produção acadêmica no Brasil abrangendo o tema. Geralmente a escola aparece nas pesquisas antropológicas de forma muito pulverizada e a questão do analfabeto em si nunca foi tratada. Nesse sentido, creio que esse livro contribui de forma criativa para se pensar não somente a construção do fenômeno social analfabetismo e seus efeitos morais, mas também na produção do que é diferente, distinto, em relação à imposição dos padrões do universo letrado. Minha expectativa é que mais pesquisadores antropólogos se interessem pelo assunto porque acredito que a antropologia pode contribuir de forma contundente na temática que abarca a educação.

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