O Brasil pode ser o país do futebol, mas aqui também há espaço para outros esportes e para as diversas maneiras de vivenciá-los. É possível ser um torcedor, um atleta, um treinador, um preparador físico. E – o que muitas pessoas não sabem – um pesquisador. Através da antropologia dos esportes, por exemplo, pode-se investigar diversas dimensões desse universo para entender como nos construímos enquanto sociedade. No país, a especialidade surgiu nos anos 80 por meio do trabalho da professora do Departamento de Antropologia, Simoni Lahud Guedes, contribuindo para tornar a UFF referência na área em esfera nacional. Agora a instituição se destaca em âmbito internacional, ao integrar oficialmente neste ano a Comissão de Antropologia dos Esportes da International Union of Anthropological and Ethnological Sciences (IUAES), coordenada pelo professor do Departamento de Antropologia, Luiz Fernando Rojo. No próximo ano, o objetivo do comitê, integrado por 40 pesquisadores de 17 países, é o lançamento da primeira revista internacional na área.
De acordo com o docente, a ideia do periódico “é ter um espaço que, com a visibilidade da associação internacional, facilite o intercâmbio de conhecimento de pesquisadores isolados, construindo redes de pesquisa e troca de saberes. Seria uma forma de fazer com que a produção dos cientistas apareça e de se estabelecer uma circulação de informações”. Segundo a doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia da UFF Cilene Lima, “uma publicação internacional sobre a temática ampliará a disseminação destes trabalhos e colocará ainda mais peso na importância dos estudos do corpo e esporte enquanto fatos sociais”. Para ela, existe uma relevância nas pesquisas sociais dessa área ainda em formação, que “pensam o esporte como um fenômeno social, com as complexidades inerentes às estruturas da sociedade em que estamos inseridos”. Tal campo, emenda Cilene, “explica muitos eventos, a exemplo das últimas copas do mundo de futebol e suas relações diretas com os momentos políticos que vivemos”. Posteriormente, explica Luiz Rojo, pretende-se sediar a revista na universidade, consolidando a UFF como referência na área.
Acompanhei um caso de uma pessoa com deficiência que nasceu com uma limitação e passou a ser, através da prática esportiva, a que ganhava o maior salário da família”, Luiz Rojo.
Constituída no país há apenas algumas décadas, a Antropologia dos Esportes se estruturou como um campo de estudos a partir de alguns marcos relevantes. Da década de 70, momento em que despontaram os primeiros trabalhos da área no país, até a década de 90, as pesquisas giravam em torno, sobretudo, do futebol, cenário que viria a se modificar depois de 2005, por ocasião dos megaeventos esportivos sediados no Brasil, e posteriormente em 2010, quando se passou a estudar os esportes adaptados. Também foram definidores da estruturação do campo a conquista de uma representação no âmbito da Reunião de Antropologia do Mercosul, em 2000, a construção do primeiro núcleo de pesquisas em Antropologia dos Esportes do Brasil, o Nepess, com sede na UFF, e a constituição nesse ano de uma comissão internacional de Antropologia dos Esportes na IUAES. A estruturação do campo no país acompanha a tendência de expansão da área, na América como um todo, e também no resto do mundo.
Com a emergência das pesquisas sobre os esportes adaptados, que investiga como as práticas esportivas, no caso de pessoas com deficiência, alteram a forma como se veem e são vistas, desenvolveram-se trabalhos como o de Luiz Rojo. Segundo o pesquisador, citando um estudioso da área, Peter Fremlin: “não se trata da ‘deficiência’ de uma pessoa, ou de como essa ‘deficiência’ é construída, mas de desenvolver uma visão para entender corpos e seus movimentos que não se limite à noção de ‘deficiência’”. Em um trabalho desenvolvido por ele com jovens da Associação Niteroiense do Deficiente Físico (Andef), por exemplo, durante a realização das Paralimpíadas Escolares em São Paulo, essa mudança de olhar em relação a si mesmo foi observada em um dos atletas: “acompanhei um caso de uma pessoa com deficiência que nasceu com uma limitação e passou a ser, através da prática esportiva, a que ganhava o maior salário da família”.
E não para por aí: são múltiplos os ramos nos quais a Antropologia dos Esportes se desdobra. Ela possui um viés fortemente cultural no Brasil, acompanhando a tendência de toda a América. Mas, nesse campo de estudos também se pesquisa, para além do futebol e dos esportes adaptados, as narrativas midiáticas em torno do tema, as torcidas, o mercado esportivo, discussões sobre identidade e gênero, novas corporalidades, entre outras questões. Por corporalidade se entende, explica Luiz Rojo, “a busca por desnaturalizar a ideia de que o corpo é produto exclusivamente da natureza, passando a ser entendido também como constituído pela cultura”. Um exemplo é a pesquisa da doutoranda Cilene Lima, que trata da construção de corporalidades em ultramaratonas (provas de corridas acima de 42 km e 195 m). De acordo com ela, o trabalho é uma tentativa de “entender como os atletas fabricam seus corpos não apenas através e por causa das provas, mas nos processos de treinamentos diários, de cuidados corporais, de associações e tratamentos com profissionais como professores de educação física, nutricionistas, fisioterapeutas, médicos fisiologistas etc”. Com foco nas temáticas de dores, sofrimento e limites corporais, a pesquisadora procura “entender como estas categorias são significadas pelos atletas em questão”.
Outro exemplo é a pesquisa desenvolvida também pelo professor Rojo no pós-doutorado, na qual ele realizou um estudo comparativo entre Rio de Janeiro e Montevidéu para entender como as relações de gênero são vivenciadas no hipismo. Na ocasião, o pesquisador estudou duas modalidades de provas, a do salto, vinculada a valores ligados ao masculino, como a coragem e a força, e também a do adestramento, pensada como modalidade feminina, em que imperam a paciência e a delicadeza. Apesar de as provas serem mistas, explica, “as separações se reproduzem através dos valores advindos de como pensamos os gêneros, ou seja, juntam-se os sexos, mas a separação dos gêneros está presente”. Segundo ele, “muitas vezes os valores podem permanecer mesmo quando acreditamos estar vencendo algumas amarras”.
Não se trata de entender, portanto, as especificidades do hipismo, das ultramaratonas, do esporte paralímpico ou mesmo do futebol, mas de pensar, a partir dessas práticas, quem nós somos enquanto sociedade – nossos valores, nossas crenças, nossos tabus. E, em algum horizonte, quem sabe transformá-la.