Há quem tenha olhos para ver o que quase ninguém vê. Para reconhecer a existência de pessoas mesmo quando, há muito, a sociedade lhes destituiu do direito de serem vistas. Assim é Margareth Martins, professora da UFF de Pedagogia Social, idealizadora do projeto de extensão “PIPAS”, que há 18 anos forma educadores de crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social. Uma criança nessa circunstância, segundo ela, “é atravessada por várias necessidades, atingida por muitos vetores de exclusão. Então, falamos em vulnerabilidades: a financeira, a material, a afetiva etc”. É nesse lugar sem lugar que a pedagogia social trabalha, explica a professora, lá mesmo onde nem a escola, nem a família e nem a sociedade reconhecem.
Margareth iniciou sua trajetória de trabalho com crianças e jovens em situação de vulnerabilidade já nos primeiros anos de formada: “costumo dizer que Pedagogia Social me encontrou”. Foi nesse momento que se deparou com uma dificuldade de aplicar o conhecimento aprendido ao longo de sua graduação à realidade que se apresentava para ela: “Tudo o que tinha estudado até então não me possibilitava compreender como eu ensinava aqueles meninos, que não tinham casa, não tinham sequer espaço sanitário para ser utilizado. Comecei a entender que alguma coisa precisava chegar antes do processo educacional formal para trabalhar com essas crianças”, explica.
Esse descompasso entre o conteúdo aprendido e a vida real foi uma das motivações para criar, alguns anos depois, o “PIPAS”. Os alunos na universidade, esclarece ela, “têm uma formação para lidar com uma criança que só existe na teoria. A criança real é outra”. O objetivo do projeto, portanto, é o de formar educadores sociais que possam trafegar por diferentes espaços de sofrimento onde essa criança se encontra: “muitas pessoas dizem que toda pedagogia é social. Ela deveria ser, mas não é. A pedagogia social é a pedagogia da humanidade. Se a gente não percebe isso, vai limitar nossa ação a fechar o diário, dar a matéria, fazer a prova e dar nota, e não é só isso. O sistema capitalista no qual estamos envoltos tem feito com que as pessoas não queiram conviver”.
Ex-aluna do projeto “PIPAS” e atual integrante do grupo de pesquisa coordenado por Margareth, a professora aposentada e teóloga Conceição Maria acumulou experiências com crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. Um dos projetos onde atuou como educadora social, com foco na erradicação do trabalho infantil, envolveu a comunidade do Morro do Céu: “comecei esse projeto numa salinha pequena, que depois cresceu muito. Chegou uma hora que tinha quase 300 crianças. Elas tinham uma capacidade tão grande! Por que viver só de catar lixo? Elas cantavam!”.
Conceição explica que esse trabalho abrangia não somente acompanhamento escolar, mas o oferecimento de cursos de informática, esportes e lazer. Com isso, segundo ela, “foi sendo criada outra forma de organização na vida deles, de disciplina e respeito um pelo outro, que fez com que muitos deles virassem irmãos. Se você subir aquele morro hoje e fizer uma pesquisa, posso afirmar que não perdemos dez para o crime”.
Nascida em bairro pobre, Conceição teve a experiência de viver na própria pele situações de exclusão, que foram determinantes na sua escolha profissional e nos trabalhos que desenvolveu na área. Com uma sensibilidade aguçada para entender o que é está em um lugar de vulnerabilidade socialmente, ela lança perguntas provocadoras: “Parece que a favela é um lugar violento, onde se faz o que não se deve, mas quem vai lá comprar coisas irregulares? Vejo crianças comercializando essas coisas e quem tem poder consumindo. Então quem é mais violento? Eles que vendem? Ou quem compra? Na verdade, essas crianças são praticamente escravas de uma situação que pessoas cultas colaboram para existir”.
De forma simples e profunda, Conceição explica as razões que a fizerem escolher estar ali, junto dessas crianças, num lugar tão invisível quanto hostil: “as pessoas não entendem e dizem que esse trabalho é pesado e triste. Mas para mim isso é caminhar junto”. E emenda: “não adianta só pesquisar se você não age. Para que você quer dados se não vai mudar nada?”.
Com questionamentos semelhantes, e também provocadores, Margareth faz ecoar a voz da sua companheira de pesquisa e também de vida: “ouço as pessoas dizerem: ‘como você trabalha com isso? Não dá nenhum tipo de pontuação no Lattes’ e respondo falando que é isso o que traz sentido para a minha vida: não trabalho na linha da reprodução, mas da transformação. E um trabalho como esse, que alia teoria e prática, é revolucionário. Tem hora que a gente senta e chora muito. Depois a gente lava o rosto e continua, porque sabe que o trabalho precisa ser feito. Hoje, no ‘PIPAS’, são 375 pessoas participando. E cada um delas é responsável por uma ação social”.
Telma Regina, professora e facilitadora social na Escola Anália Franco, onde um dos projetos do “PIPAS” acontece, engrossa o coro das professoras, explicando como a Pedagogia Social se constitui como ferramenta útil para o mundo em que vivemos, por seu potencial de transformação da realidade e sua convocação ao engajamento das pessoas: “constato que a Pedagogia Social veio dar respostas para o momento que estamos vivendo. Ainda vamos ouvir falar muito do facilitador social, esse mediador de excelência. Dirimindo conflitos, contextualizando uma questão muito escassa no homem moderno, que é a fé em si mesmo, a fé no outro, a fé num mundo melhor”.
Emocionada, Telma revela o quanto a pedagogia social é para ela mais do que uma profissão, mas uma forma de viver: “a pedagogia social faz a gente marejar. Se você ainda não marejou, marejará. Você acaba crendo no que a ciência mostra, que você é mais água do que qualquer outra coisa. Me sensibiliza, me espiritualiza, no sentido verdadeiro de espiritualidade, que é até citado na conceituação de Dalai Lama. Ele diz que espiritualidade é tudo aquilo que te transforma e aqui você se sente transformado dia a dia”.
Com olhos para ver e coração para sentir, Margareth, Conceição e Telma, fazem um convite para um encontro inadiável com a diferença, num mundo onde ela parece não caber em lugar algum, experimentando com-viver com ela: “os cientistas chegaram à conclusão de que o órgão mais inteligente é o coração. Você viu essa pesquisa? Todo mundo acha que pensamos antes de sentir, mas os cientistas descobriram que não, que a sincronicidade é dada pelo coração”, conclui Telma.