Em pleno século XXI, no ano de 2020, falar de drogas no Brasil ainda é um tabu, embora se multiplique, ano após ano, o número de mortes decorrentes das políticas governamentais de combate a elas. Segundo dados do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas, por exemplo, entre 2000 e 2015, houve um crescimento de 60% no número de óbitos causados diretamente pelo uso de entorpecentes no país. E não para por aí: os prejuízos advindos de sua estigmatização são incontáveis, impedindo uma livre circulação de informações em torno do tema, nos mais diferentes âmbitos da sociedade.
Na contramão dessa tendência, um projeto da UFF leva até as escolas uma abordagem preventiva para tratar a questão, utilizando-se de uma metodologia inovadora. Associando a neurociência com a “gameficação”, alunos e colaboradores do Núcleo de Pesquisa, Ensino e Divulgação e Extensão em Neurociências (NuPEDEN) têm despertado o interesse sobre o assunto por parte de crianças e professores da educação básica. Mas não só deles! No ano passado, o projeto recebeu o Prêmio UFF de Excelência em Inovação para o Desenvolvimento Social 2019: Metodologia de Ensino no Combate ao Uso de Drogas. Segundo Priscilla Bomfim, coordenadora do trabalho, o objetivo é o de, por meio de “um jogo analógico, educativo e colaborativo sobre drogas de abuso, lícitas ou não, estimular a reflexão sobre a temática”, explica.
Como se trata de um jogo colaborativo, à medida que evoluem no tabuleiro, eles têm a percepção de como é importante o trabalho em conjunto e o exercício de empatia, já que têm a possibilidade, estrategicamente, de ajudar outros grupos na evolução do jogo”, Priscilla Bomfim.
Bons motivos não faltam para levar essa discussão aos ambientes escolares. De acordo com dados da Unesco de 2017, o abuso de drogas impacta fortemente a educação à medida que reduz o desempenho escolar, aumenta a taxa de evasão e faz com que grande parte dos alunos não complete os estudos e até mesmo não chegue a cursar o nível superior, contribuindo negativamente para o desenvolvimento social. Para fazer frente a isso, a Unesco recomenda, inclusive, uma abordagem nas escolas que privilegie “métodos de ensino interativos realizados por educadores”.
A “gameficação”, explica Priscilla, se apresenta como uma ótima ferramenta para isso, porque “por natureza, as crianças gostam de brincar. Enquanto elas brincam, nós, professores e pesquisadores, estamos envolvidos na aplicação das táticas de jogo, dentro de uma narrativa específica, para se atingir um objetivo que é aprender”.
As visitas da equipe do NuPEDEN às escolas estaduais de Niterói têm acontecido desde o segundo semestre de 2018 e a receptividade por parte da comunidade escolar parece maior a cada encontro. De acordo com a coordenadora, esse dispositivo possui “um papel na construção do conhecimento dos alunos, pois eles ficam totalmente engajados durante a sessão, muitas vezes pedindo à nossa equipe que retorne para jogar novamente”, relata. Em cada escola, Priscilla explica, as dinâmicas com os estudantes são diferentes. A duração, em teoria, é de 50 minutos, mas muitas vezes o tempo é estendido em razão da curiosidade que a brincadeira desperta.
Organizados em grupos de até seis participantes, que representam cada um deles uma célula ou estrutura do cérebro, num jogo de tabuleiro, acaba por se criar um ambiente que favorece o surgimento de perguntas e discussões em torno da temática. Segundo a pesquisadora, “eles se sentem muito à vontade para questionar à medida que o jogo se desenvolve, fazendo perguntas sobre neurociência, ações nas áreas do cérebro, abuso de drogas, dependência, potencial de overdose, ‘bad trips’ e comprometimento de órgãos”. Os resultados, ela emenda, são bastante positivos e animadores: “os estudantes refletem criticamente sobre ciência, conseguem desenvolver a tarefa de trabalhar em equipe e também a sua autoestima”, ressalta.
Durante todo o ano de 2020, em meio à pandemia, o projeto continuou ativo. De acordo com Priscilla, “a fim de ser mantido o contato, nem que fosse virtual com o nosso público-alvo, continuamos com o trabalho nas mídias sociais com a coluna #tá ligado?, na qual apresentamos as drogas e seus efeitos fisiológicos, sejam elas lícitas ou ilícitas. Também publicamos artigos e ainda estamos preparando uma revista eletrônica que poderá ser consultada online ou em PDF, e será distribuída gratuitamente nas escolas do município e do Estado”, comemora.
Priscilla coleciona momentos marcantes do trabalho realizado com as escolas durante esse primeiro ano de projeto. Um deles ocorreu durante uma apresentação do jogo em um colégio de Santa Rosa, bairro de Niterói. Uma aluna do ensino médio, na ocasião, agradeceu a participação da equipe dizendo que o seu sonho era o de se tornar enfermeira na Universidade Federal Fluminense: “ela contou que, depois da nossa visita, tinha certeza que isso seria uma realidade. Falou que estudaria muito e depois criaria um programa de prevenção contra o uso de substâncias lícitas e ilícitas em sua comunidade. A menina afirmou que jamais havia imaginado como as drogas agiam no cérebro e como poderiam ser deletérias para o organismo”, recorda.
Uma das bolsistas de iniciação científica do projeto, Thaís Magalhães, também experimentou muitos momentos de aprendizados compartilhados com os estudantes: “as visitas que fiz às escolas municipais em Niterói me marcaram bastante por observar o poder comunicador do jogo, digo, a potência que o jogo tem em si de canalizar informação para eles, que, ao final das sessões, recorriam a nós do núcleo para fazer perguntas, interessados em saber mais sobre alguma droga específica e seus efeitos. Como se não bastasse isso, observamos que o jogo tem um potencial comunicador para além dos alunos e é capaz de chegar até os pais, irmãos, avós, amigos, conhecidos dependentes químicos, o que é impressionante”, ressalta.
A coordenadora destaca ainda outro aspecto do jogo que, segundo ela, faz com que sua ação seja tão mobilizadora entre os estudantes: “como se trata de um jogo colaborativo, à medida que evoluem no tabuleiro, eles têm a percepção de como é importante o trabalho em conjunto e o exercício de empatia, já que têm a possibilidade, estrategicamente, de ajudar outros grupos na evolução do jogo, usando os cartões ‘neurobônus’, que trabalham nessa capacidade de se colocar no lugar do outro”.
Já, Thaís relembra, inclusive, o quanto, durante a apresentação do jogo em um congresso nacional de ciência da educação, seu aspecto cooperativo saltou aos olhos do público: “todos ficavam fascinados pela ideia de o jogo ser colaborativo e não competitivo, como a maioria é, concordando que essa medida ajudaria a promover maior integração entre os participantes e o desenvolvimento do sentimento de empatia”, conclui a aluna da UFF.