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Neurocientistas da UFF advertem sobre riscos da COVID-19 no desenvolvimento neural infantil

Em março de 2020, quando a pandemia de COVID-19 foi oficialmente decretada no Brasil, e ainda se sabia muito pouco sobre o comportamento do vírus, especialistas da área da saúde apontaram os idosos como a faixa etária mais vulnerável e também a mais acometida pela forma grave da doença. Um ano depois, no entanto, esse cenário parece ter se modificado enormemente. Se nos primeiros meses de 2020 não se tinha dúvidas de que o vírus poderia levar à morte quase que exclusivamente pessoas com mais de sessenta anos, hoje o que se observa, com as novas variantes em circulação, é uma manifestação em massa das formas mais agudas da doença em jovens, modificando as certezas que se tinha até então sobre a doença.

Diante desse cenário, pouca atenção se deu aos efeitos do coronavírus em crianças, tidas até pouco tempo atrás como praticamente “imunes” ao vírus. Contrariando as percepções iniciais sobre a doença, trabalhos científicos na área da saúde vêm sustentando que as crianças não são imunes à COVID-19. E, mais do que isso: “embora as complicações sejam raras, elas existem e têm o potencial de impactar o desenvolvimento neural”. Isso é o que afirma o docente da Pós-Graduação em Neurociências da UFF, Cláudio Serfaty. Juntamente com alunos e ex-alunos de pós-graduação e de iniciação científica, ele desenvolve a pesquisa intitulada Neuroinflamação e o Desenvolvimento e Plasticidade do Cérebro, que atualmente foi modificada para investigar as possíveis consequências da COVID-19 no desenvolvimento cerebral, constituindo um risco adicional ao fenômeno da neuroinflamação no público infantil.

Na esfera federal, o negacionismo é patente e tem amplificado a crise sanitária. Isto se reflete na resistência ao uso de máscaras e nas aglomerações desnecessárias. Mas o negacionismo também se reflete no relaxamento nos cuidados das crianças, já que alguns pais frequentemente tendem a subestimar o perigo da doença, principalmente porque não fazem ideia das complicações que podem surgir”, Cláudio Serfaty, professor de Neurociências da UFF

No estudo, analisa-se o papel das células microgliais, que monitoram e reagem ativamente a qualquer alteração ambiental, tal como as infecções, mas também a lesões, alterações na dieta, agentes tóxicos ou qualquer distúrbio do microambiente cerebral. Estas células são fundamentais ao desenvolvimento dos circuitos neurais, principalmente a partir do segundo ano de vida, quando ocorre um processo de eliminação de sinapses inapropriadas. Este mecanismo é essencial ao pleno desenvolvimento das habilidades do cérebro, seja no processamento sensorial, no desenvolvimento motor, da linguagem e da cognição. As células microgliais, enfim, são muito sensíveis aos estímulos neuroinflamatórios, que modificam suas propriedades funcionais.

De acordo com o professor Cláudio, “embora as crianças de até dois anos sejam mais suscetíveis, as consequências da neuroinflamação podem também aparecer após essa idade. Na pandemia de COVID-19, a conjunção de fatores inflamatórios (infecção viral + alterações ambientais) podem constituir um fator de risco para o desenvolvimento de alterações do desenvolvimento neural infantil”, enfatiza. A pesquisa vem sendo desenvolvida no Laboratório de Plasticidade Neural da UFF, que, desde a sua fundação, em 1994, se dedica a estudar as alterações do desenvolvimento do cérebro induzido pela má nutrição, pelo consumo de álcool na gestação, os efeitos do hipotireoidismo congênito e os períodos críticos de plasticidade do sistema nervoso central. Atualmente, ele integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Neuroimunomodulação (INCT-NIM) e a Rede de Saúde em Neuroinflamação (Faperj).

No contexto da COVID-19, para além de uma infecção respiratória, sua capacidade de infectar o sistema nervoso não demorou muito a se evidenciar e nós trouxemos isso para o contexto de possíveis alterações do cérebro infantil, acarretando riscos para o aparecimento de doenças como TDAH e autismo”, Luana Chagas, pós-doutoranda em Neurociências.

Para a pós-doutoranda Luana Chagas, também participante da pesquisa, as informações produzidas pelo trabalho são ainda mais relevantes considerando-se que “vivemos em um contexto onde a grande maioria da população ainda acredita que crianças são invulneráveis por não apresentarem sintomatologia tradicional imediata. Os possíveis riscos a longo prazo relatados em nosso trabalho ocasionados pela infecção por um vírus que é capaz de atacar o sistema nervoso, na verdade, tornam a criança um alvo ainda mais vulnerável por ela ainda estar com seus sistemas imaturos e pelo vírus ser silencioso, já que elas infectadas são assintomáticas”, ressalta.

Normalmente, segundo a pesquisadora, “as neurociências são apenas vistas como área de estudo das doenças mais tradicionais e diretamente ligadas ao cérebro, mas na verdade estão muito mais integradas, interagindo com aspectos imunológicos e sistêmicos. Por exemplo, no contexto da COVID-19, para além de uma infecção respiratória, sua capacidade de infectar o sistema nervoso não demorou muito a se evidenciar e nós trouxemos isso para o contexto de possíveis alterações do cérebro infantil, acarretando riscos para o aparecimento de doenças como TDAH e autismo. Essas doenças só serão identificadas mais tardiamente, e apenas daqui a alguns anos poderemos avaliar os verdadeiros vestígios deixados pela forma que nos portamos nesta pandemia”.

Cláudio Serfaty complementa dizendo que é importante os pais saberem que crianças também podem desenvolver a COVID-19, e que uma pequena parcela delas, mesmo entre as que apresentaram apenas sintomas leves, pode manifestar a chamada Síndrome Multiinflamatória Sistêmica Pediátrica (MIS-C), com repercussões inflamatórias vasculares graves, inclusive neurológicas. “Este fenômeno, semelhante à Síndrome de Kawasaki, foi observado na COVID-19, assim como em outras infecções virais a exemplo da H1N1, Zika vírus, Rubéola e Citomegalovirus. Diversos estudos mostram que a microglia ativada, seja por infecções ou alterações ambientais, não consegue realizar o processo de poda sináptica, o que resulta em circuitos neurais com desenvolvimento anormal. Vale ressaltar que distúrbios do desenvolvimento como o autismo e o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade e até mesmo a esquizofrenia têm sido associados a distúrbios neuroinflamatórios durante o desenvolvimento do cérebro, principalmente na primeira infância”, destaca.

Um dos aspectos apontados por Cláudio para o relativo pouco valor dado até o momento no que diz respeito às relações entre a COVID-19 e o público infantil é o fenômeno do negacionismo. Segundo ele, “na esfera federal, o negacionismo é patente e tem amplificado a crise sanitária. Isto se reflete na resistência ao uso de máscaras e nas aglomerações desnecessárias. Mas o negacionismo também se reflete no relaxamento nos cuidados das crianças, já que alguns pais frequentemente tendem a subestimar o perigo da doença, principalmente porque não fazem ideia das complicações que podem surgir”.

Apesar do alerta, o neurocientista leva uma mensagem de tranquilização para os pais. Ele afirma que o desenvolvimento do cérebro é longo e, principalmente na primeira infância, o cérebro se recupera de forma surpreendente a várias formas de agressão: “então, basta cuidar e prevenir. Nenhuma condição deve ser encarada como permanente. O cérebro infantil é plástico e consegue se adaptar e compensar as adversidades. No entanto, não devemos dar chance às condições adversas!”.

Para a pós-doutoranda, o grande desafio trazido por todo esse cenário é enxergado como oportunidade. “Atualmente, o combate contra o negacionismo só fez a ciência crescer. Quanto mais negam os fatos, mais estratégias nós desenvolvemos para disseminar os dados científicos; criamos mais páginas e redes sociais de divulgação. Cientistas são evidenciados e se adequam para transmitir a informação de uma maneira mais acessível para se explicar um assunto de difícil entendimento e desmentir muitas inverdades disseminadas. O maior desafio acaba sendo o de desenvolver estratégias cada vez melhores e de maior alcance para levar informação científica para além das bancadas de laboratório e da universidade. Do ponto de vista da saúde mental e da perseverança, acho importante nos mantermos otimistas, crédulos e atentos ao que a ciência tem a nos dizer, pois dela costumam vir alertas para se prevenir problemas piores ou soluções para os já problemas existentes”, finaliza.

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