As notícias sobre violência policial nas grandes cidades do Brasil são cotidianas. No estado do Rio de Janeiro, em especial, se tornou comum para a população ouvir sistematicamente sobre operações policiais em favelas da região metropolitana, que culminam na morte de pessoas inocentes. Contudo, diante do novo coronavírus, esse quadro estrutural vem sofrendo algumas alterações.
Em junho de 2020, foi publicado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) o Tratado da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635. A ADPF 635 foi uma ação inicialmente movida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) que posteriormente agregou diversos movimentos sociais, ONGs e órgãos do estado, como a defensoria pública. Essa decisão determinou a suspensão de operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia de COVID-19.
Com foco nesse grave problema social, em março deste ano, o Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF) publicou o relatório da pesquisa “Operações policiais e violência letal no Rio de Janeiro: Os impactos da ADPF 635 na defesa da vida”, que foi conduzida pelo professor Daniel Hirata, do Departamento de Sociologia e Metodologia em Ciências Sociais (GSO-UFF).
“Antes dessas pesquisas, não existiam informações oficiais sobre as ações da polícia no estado do RJ para instruir o debate público na área de segurança. Começamos a formar uma base de dados sobre operações policiais, levantando informações desde o ano de 1981 até os tempos atuais. A ideia é fomentar a discussão com embasamento em evidências”, explica o docente.
Seguindo a curva histórica e as notificações do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ), construímos um dado que aponta que cerca de duzentas e oitenta e oito vidas foram salvas em 2020, contrastando com a tendência estatística para o ano – Daniel Hirata
De acordo com Daniel, as operações policiais são situações nas quais o índice de mortalidade provocado por agentes de segurança pública é alto. O relatório de pesquisa comprova isso quando aponta que a proibição dessas ações da polícia no Rio de Janeiro durante a pandemia gerou a primeira queda no número de óbitos causados por agentes públicos desde 2007.
O pesquisador explica que em 2020 houve casos de letalidade policial de grande comoção no Brasil e no mundo que contribuíram para a tomada de decisão do ministro Edson Fachin sobre a ADPF 635. Dois exemplos emblemáticos de ações amplamente divulgadas na época e que causaram perplexidade na sociedade foram o caso do cidadão americano George Floyd, que morreu asfixiado por um policial nos Estados Unidos, e no Brasil, o caso do menino João Pedro, que morreu baleado durante uma operação policial no município de São Gonçalo.
Segundo o professor da UFF, havia uma situação dramática em que as forças policiais estavam atrapalhando os serviços de ajuda humanitária na pandemia, provocando tiroteios, inclusive ao redor de unidades de saúde. “A decisão do Supremo foi tomada em resposta às violações cometidas contra a população pobre e majoritariamente negra das favelas durante essas ações”, justifica.
Para Daniel, a maior conquista da ADPF 635 foi interromper uma crescente letalidade policial que ocorria desde 2014. “Seguindo a curva histórica e as notificações do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ), construímos um dado que aponta que cerca de duzentas e oitenta e oito vidas foram salvas em 2020, contrastando com a tendência estatística para o ano”.
Lamentavelmente, em vez de apoiar os cidadãos nesse momento sério, as forças policiais atrapalham novamente as atividades de suporte às populações moradoras das favelas. Pensando nesse cenário, o STF convocou uma audiência pública que discutirá um plano de redução das operações policiais no estado. Estarei presente na audiência representando o GENI-UFF e contribuindo com a pauta – Daniel Hirata
O docente ressalta que a diminuição das operações da polícia e da mortalidade policial não gerou um aumento da criminalidade em geral, tanto dos crimes contra a vida, quanto dos crimes contra o patrimônio. “Isso indica fortemente que a preservação da vida não se opõe ao controle do crime, como sugerem alguns segmentos da opinião pública”.
A decisão do Supremo também determina que operações policiais excepcionais devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente e comunicadas ao Ministério Público Estadual, órgão responsável pelo controle externo da atividade policial. “Portanto, qualquer operação durante a pandemia deveria adotar todos os cuidados para não colocar em risco ainda maior a população, a prestação de serviços públicos sanitários e as atividades de ajuda humanitária”, pontua Daniel.
Entretanto, o professor destaca que desde outubro do ano passado houve um aumento significativo das operações, ao mesmo tempo em que a letalidade policial também cresceu. “Isso vem acontecendo por consequência do desrespeito deliberado cometido por autoridades políticas e policiais às determinações do Supremo na ADPF 635”.
Quanto à pandemia, Daniel salienta que atualmente estamos em um segundo pico da COVID-19, ainda pior que o do ano passado, o que torna a discussão da letalidade policial fundamental, principalmente em relação à dinâmica de ajuda humanitária e serviços de saúde para a população das comunidades do Rio de Janeiro.
“Lamentavelmente, em vez de apoiar os cidadãos nesse momento sério, as forças policiais atrapalham novamente as atividades de suporte às populações moradoras das favelas. Pensando nesse cenário, o STF convocou uma audiência pública que discutirá um plano de redução das operações policiais no estado. Estarei presente na audiência representando o GENI-UFF e contribuindo com a pauta”, finaliza o docente.
Serviço: A audiência pública sobre a ADPF 635, convocada pelo ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal acontece hoje, dia 16 e na próxima segunda-feira, dia 19 de abril. Os interessados podem acompanhar ao vivo no canal do STF no YouTube. O professor Daniel Hirata contribuirá com a pauta que será realizada segunda às 8h00.