Há pouco mais de um ano, quando a pandemia ameaçava se instalar no país, assistimos assustados à elevada média de mortes diárias por COVID-19 na Itália, epicentro da doença no mundo até então. A soma totalizava em torno de 800 pessoas. Hoje, no Brasil, no entanto, onde a pandemia ainda parece longe de estar controlada, a média de mortes diárias bate a casa dos dois mil há muitos meses. O total de óbitos já chegou a cinco mil, passou pelos quatro e, com uma frequência considerável, volta a girar em torno dos três mil.
De forma também assustadora, o número crescente e constante de óbitos pelo coronavírus parece ter sido acompanhado por um amortecimento da capacidade de os brasileiros se impressionarem com eles. O que terá acontecido? Se, por um lado, as explicações sobre os motivos que levaram (e continuam a levar) às mortes em massa parecem cada vez mais claras, não é possível dizer o mesmo sobre a indiferença e a banalização que acompanham a forma como temos lidado com elas coletivamente.
Com foco nesse cenário desafiador e doloroso, um grupo de professores e alunos do Instituto Biomédico, do Instituto de Humanidades e Saúde (Campus Rio das Ostras) e do Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP) da UFF, além de professores e alunos de outras quatro universidades públicas (UERJ, UNIRIO, UFRJ e UFOP), desenvolveu um projeto que alerta sobre a urgência de olharmos com atenção para esses óbitos e insiste na necessidade de rompermos com o silenciamento em torno deles. A equipe – que tem trabalhado em conjunto por 20 anos estudando transtornos mentais, especialmente o Transtorno do Estresse Pós-Traumático em diferentes populações clínicas e não clínicas – é multidisciplinar e envolve pesquisadores das neurociências, psicologia, psiquiatria, epidemiologia, entre outras áreas.
Ao identificar fatores que podem agravar ou minimizar o adoecimento mental desses profissionais, estamos oferecendo informações importantes para os gestores dos ambientes hospitalares e do sistema de saúde como um todo, que podem ser usadas para reduzir o impacto desse momento na saúde mental desses indivíduos”, Mirtes Garcia Pereira, professora do Instituto Biomédico e uma das coordenadoras do PSIcovidA.
Inaugurado no ano de 2020, no auge da pandemia no país, o PSIcovidA, que é coordenado pela UFF e tem como intuito investigar a saúde mental dos profissionais de saúde ao longo desse período, busca tornar visível a dor das pessoas que têm convivido com essas milhares de mortes invisíveis. Mais especificamente, o objetivo é o de compreender os efeitos do Transtorno do Estresse Pós-Traumático e da depressão daqueles que trabalharam (ou seguem trabalhando) em ambientes hospitalares e em unidades de pronto atendimento durante a pandemia. Até o momento, de acordo com Letícia de Oliveira, professora do Instituto Biomédico e uma das coordenadoras do projeto, o estudo abrangeu mais de mil profissionais de enfermagem, medicina, fisioterapia, psicologia e técnicos de instituições públicas e privadas.
A pesquisa, que possui caráter “longitudinal”, ou seja, que acompanhou a evolução dos sintomas clínicos em pelo menos três momentos distintos, se desenvolveu a partir de um formulário online respondido pelos profissionais de saúde. Com base nesse instrumento, foram coletadas informações variadas sobre eles, e também realizadas avaliações para avaliar sintomas de Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) e depressão.
A coordenadora informa que, dentre os resultados obtidos, destacam-se, por exemplo, uma maior sintomatologia para esses transtornos entre as mulheres, os mais jovens e também os de nível técnico e auxiliar de enfermagem. Além disso, apresentaram maior sintomatologia aqueles que não tiveram acesso adequado aos Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). Outro aspecto que chama atenção é um menor índice de gravidade entre os que se sentiam mais valorizados profissionalmente, em especial após o início da pandemia.
Segundo Letícia, o momento de contato com os depoimentos dos profissionais é por vezes muito emocionante, proporcionalmente às incontáveis situações dramáticas vividas por eles. “Sabemos que estas pessoas estão enfrentando condições extremas, como vivenciar um número expressivo de mortes em um curto espaço de tempo, a constante preocupação com o risco diário de contaminar outras pessoas ou contrair o vírus, jornadas excessivas de trabalho, escassez de EPIs, falta de treinamento, escolha de quais pacientes ‘devem’ receber tratamento, entre outras situações surreais”.
O poder público precisa elaborar políticas baseadas em evidências de quem estuda e conhece com mais profundidade o tópico em questão. No caso do PSIcovidA, apontamos fatores fundamentais para proteger a saúde mental dos profissionais que estão no enfrentamento direto da pandemia”, Letícia de Oliveira, professora do Instituto Biomédico e uma das coordenadoras do projeto.
A professora do Departamento de Fisiologia e Farmacologia do Instituto Biomédico, Mirtes Garcia Pereira, que também coordena o projeto, enfatiza a excepcionalidade das situações potencialmente traumáticas vividas pelos profissionais de saúde. Segundo ela, “já se sabe que uma das sequelas mais drásticas da exposição a eventos traumáticos é o desenvolvimento do TEPT, que é incapacitante e traz muito sofrimento. Nem todas as pessoas que vivenciam um evento traumático desenvolvem o TEPT e conhecer os fatores que levam a uma maior susceptibilidade para o desenvolvimento desse adoecimento mental ou que determinam proteção para que isso não ocorra é fundamental. Conhecendo os fatores de risco e proteção, pode-se usar essa informação para implementar medidas que evitem o adoecimento desses profissionais”.
Além disso, Mirtes destaca a importância não só de os profissionais de saúde saberem sobre a existência de iniciativas como a do PSIcovidA, que estão atentas ao seu sofrimento, mas de a população saber que eles estão exaustos e adoecendo mentalmente. A pesquisadora afirma que, “ao identificar fatores que podem agravar ou minimizar o adoecimento mental desses profissionais, estamos oferecendo informações importantes para os gestores dos ambientes hospitalares e do sistema de saúde como um todo, que podem ser usadas para reduzir o impacto desse momento na saúde mental desses indivíduos. Além disso, cada um de nós pode contribuir. Tomar a vacina no momento que chega a sua vez, fazer distanciamento social e usar máscara são medidas que diminuem a propagação do vírus e evitam a sobrecarga do sistema hospitalar, que caminha junto com muitos eventos potencialmente traumáticos que esses profissionais estão encarando”.
Comprometida com a vida e a ciência, a professora Letícia de Oliveira insiste na importância de se falar sobre essa dor a que já parecemos dessensibilizados: “precisamos lançar luz ao sofrimento desses profissionais. É uma doença muito séria. Quantas mortes teriam sido evitadas se tivéssemos enfrentado a situação com a seriedade necessária? Atualmente, o Brasil é o epicentro mundial da pandemia, representamos 2,7% da população mundial e 12,9% das mortes mundiais devido à COVID-19. Há mortes em excesso em nosso país, mortes evitáveis se nossas ações fossem minimamente adequadas. Além disso, as sequelas na saúde mental, não apenas nos profissionais de saúde, mas em toda população serão imensas. Temos que começar a mapear a dimensão do problema para traçar estratégias de enfrentamento”.
Letícia finaliza apontando a universidade pública como fundamental nesse processo: “ela é imprescindível para a geração de conhecimento qualificado que aponte e detalhe as dificuldades dessa realidade, assim como as possíveis soluções. O poder público precisa elaborar políticas baseadas em evidências de quem estuda e conhece com mais profundidade o tópico em questão. No caso do PSIcovidA, apontamos fatores fundamentais para proteger a saúde mental dos profissionais que estão no enfrentamento direto da pandemia. Como, por exemplo, fornecimento adequado de EPIs, treinamento para os mais jovens e a valorização destes profissionais. Aqueles que se sentem reconhecidos pelas instituições nas quais atuam, que recebem bons salários e condições adequadas de trabalho têm menor chance de apresentar sintomas graves para transtornos mentais. Em nome de toda a equipe, gostaria de agradecer a cada um destes maravilhosos profissionais que tanto têm feito neste momento tão crítico. Muito obrigada!”.