O cinema é uma das manifestações culturais mais relevantes de diferentes sociedades ao redor do mundo. Para além de seu potencial de entretenimento, as produções audiovisuais relatam e documentam narrativas, momentos e memórias de várias épocas, regiões e grupos sociais. Pensar sua trajetória como patrimônio cultural e histórico, transforma os acervos de filmes em grandes bibliotecas materiais que precisam ser preservadas.
No Brasil, a Universidade Federal Fluminense é precursora do campo de pesquisa sobre conservação audiovisual; por isso, se transformou em celeiro de talentos na área. Desde o começo de suas atividades, seu curso de graduação em Cinema e Audiovisual construiu um caminho sólido como referência em preservação. Foi, inclusive, o primeiro a criar uma disciplina obrigatória nesse campo para os estudantes de graduação, formando profissionais qualificados e abrindo portas para carreiras internacionais nesse campo de atuação.
Em 2021, a conservação da produção audiovisual brasileira ganhou mais um capítulo com a parceria entre a UFF, através do Laboratório Universitário de Preservação Audiovisual (LUPA), vinculado ao Departamento de Cinema e Vídeo, e a Prefeitura Municipal de Niterói, por meio da Secretaria Municipal das Culturas. O professor adjunto do Departamento de Cinema e Vídeo, e coordenador do LUPA, Rafael de Luna, destaca que o laboratório foi construído em 2017 como consequência direta do pioneirismo do curso de graduação em cinema no campo da preservação de imagens. O primeiro projeto desenvolvido com a prefeitura começou em 2018, quando um convênio foi firmado através de um projeto do laboratório chamado “Programa de Formação em Cinema”.
“Uma das três linhas de pesquisa do programa de formação criado em parceria com a prefeitura de Niterói era sobre o patrimônio audiovisual fluminense, tema em que o laboratório se concentra atualmente. A partir disso, o LUPA montou um acervo temático e regional através de doação de filmes de família, muitos deles considerados raridades audiovisuais. Dentro desse tema, focamos em reunir imagens das paisagens do estado do Rio de Janeiro, destacando o interior, visto que a totalidade dos arquivos já existentes eram sobre a capital”, acrescenta o coordenador.
A colaboração garantiu a compra de equipamentos para tratamento de imagens raras dos acervos da UFF, bem como a preservação do patrimônio, o que permitirá a publicação e a consulta virtual das obras no futuro. “Essa parceria foi responsável pela compra de um scanner profissional para digitalizar filmes antigos e eventualmente deteriorados. O equipamento pode escanear películas com resolução de cerca de quatro mil pixels. A UFF se torna vanguarda nessa categoria de tratamento, compondo a primeira unidade de digitalização profissional em uma universidade”, comemora Rafael.
Mesmo na América Latina existem poucos scanners de digitalização profissional. O LUPA agora tem um deles, a serviço da preservação de filmes de nosso próprio acervo e de instituições parceiras. Portanto, a UFF se torna um projeto-piloto de vanguarda na aliança entre preservação audiovisual e ensino, pesquisa e extensão universitária. Isso é fundamental para a expansão do campo da preservação audiovisual no restante do país, já que, até o momento, as pesquisas na área se concentram mais no sudeste e em regiões metropolitanas – Rafael de Luna
Um dos acervos que será digitalizado é o do cinegrafista profissional Esdras Baptista, com cerca de 80 horas de imagens em movimento rodadas entre 1940 a 1980. “Nos rolos há imagens do comício da Central do Brasil, no Rio, com o presidente João Goulart, às vésperas do golpe de 1964. E cenas mais antigas, com outro presidente, Juscelino Kubitschek, e o líder comunista Luiz Carlos Prestes, além de imagens das visitas de Fidel Castro ao país, logo depois da Revolução Cubana. Muitos desses filmes eram produzidos por conta própria e nem chegaram a ser apresentados publicamente. São registros documentários inéditos e muito importantes”, relata o coordenador.
A graduanda do 7º período de cinema e bolsista do Laboratório, Laura Batitucci, acredita que a digitalização do acervo é fundamental para divulgar os filmes amadores e universitários do LUPA. “Com a pandemia a maior parte das pessoas só consegue ter acesso a filmes em formato digital. A chegada do scanner traz a possibilidade de tornar públicos filmes que não seriam vistos de outra forma, ou que seriam vistos por poucos. Isso ajuda na pesquisa histórica de outras épocas do Brasil, além de trazer mais aproveitamento estético para as imagens”, relata a discente.
O coordenador do laboratório concorda com a aluna e acrescenta que “passar para o formato digital, dar tratamento adequado, e tornar públicas as obras são passos necessários para a proteção do patrimônio e a democratização da cultura brasileira”.
LUPA e a preservação da história do estado do Rio de Janeiro
Segundo Rafael, as imagens reunidas pelo LUPA são importantes, em primeiro lugar, pela pouca preservação de todo o material filmado no Brasil, mais ainda dos filmes antes da era digital. “No laboratório, temos um conjunto enorme de imagens que foram preservadas. No acervo existem filmes de casamento, aniversários, e percebemos isso como um registro fundamental da história cotidiana do Brasil. É raro encontrar essa categoria de material digitalizado e disponível ao público. São filmes únicos da vida de pessoas do estado do Rio de Janeiro”.
Geralmente, o foco do arquivo do LUPA não está nos grandes fatos e nomes, mas nas narrativas de pessoas comuns. “Trabalhamos, sobretudo, para ampliar o número de imagens de espaços, cidades e grupos sociais menos representados pelo cinema. Geralmente, documentários ou ficções profissionais retratam a capital mais do que o interior do estado do Rio de Janeiro. O número de imagens sobre cidades do interior é consideravelmente menor. Os filmes amadores nos quais focamos registram práticas cotidianas, como as pessoas viviam e agiam, o que muitas vezes não é retratado em imagens profissionais, como os filmes de longa-metragem”, salienta o professor.
“Mesmo na América Latina existem poucos scanners de digitalização profissional. O LUPA agora tem um deles, a serviço da preservação de filmes de nosso próprio acervo e de instituições parceiras. Portanto, a UFF se torna um projeto-piloto de vanguarda na aliança entre preservação audiovisual e ensino, pesquisa e extensão universitária. Isso é fundamental para a expansão do campo da preservação audiovisual no restante do país, já que, até o momento, as pesquisas na área se concentram mais no sudeste e em regiões metropolitanas”, complementa Rafael.
A bolsista do LUPA, Laura Batitucci, relata que optou por estudar preservação porque acredita na relevância da memória para o desenvolvimento da sociedade. “A memória audiovisual me fascina porque pode ser entendida enquanto objeto histórico, de estudo social – como uma coletividade vivia em determinado tempo e espaço, quais eram seus hábitos e desejos”, ressalta.
Para a graduanda da UFF, o mais interessante do trabalho no laboratório é que os estudantes podem ter a experiência prática de manusear o material físico, em película, por exemplo. “Essa vivência é muito significativa porque hoje em dia toda a mídia é digital, e raramente aparece a oportunidade de manipular um filme antigo. Nós temos contato com eles por meio da projeção digital, o que amplia as possibilidades de nos aproximarmos da história do cinema e entender melhor como funcionava sua produção”.
Rafael de Luna finaliza ressaltando que a universidade também tem muito a ganhar com a atividade de preservação audiovisual. “Existe uma série de pesquisas que podem ser desenvolvidas a partir das imagens que tornaremos públicas, tanto na ação de conservação do acervo da comunidade onde a UFF está inserida, quanto para viabilizar projetos de ensino nesse campo. O arquivo do LUPA se torna fundamental para o curso de cinema e também para outros departamentos e graduações, que podem encontrar nesses materiais objetos de pesquisa e matéria-prima para trabalhos de recontextualização dessas imagens”.