Diagnóstico. Tratamento. Cura. Quando ocorrem de maneira adequada, essas são as etapas que impedem o nascimento de crianças com sífilis congênita, doença evitável que é transmitida para o bebê através da placenta da gestante infectada. Atualmente, o estado do Rio de Janeiro lidera os casos de sífilis congênita no Brasil. Com o objetivo de monitorar os indicadores locais dessa enfermidade de modo aprofundado, a Universidade Federal Fluminense (UFF) investiga a incidência da doença nos municípios do Rio de Janeiro. A iniciativa pretende mapear o estado para compreender o padrão de ocorrência da sífilis congênita, além de identificar as desigualdades que estão associadas à enfermidade.
A sífilis é uma doença causada pela bactéria Treponema pallidum, que pode ser adquirida ou transmitida de forma vertical. A primeira acontece por meio de uma transmissão, principalmente, via sexual, enquanto a segunda é passada adiante através da placenta. No primeiro caso, o indivíduo adquire a doença e a transmite para seus parceiros (as) em razão da falta de diagnóstico. No caso de gestantes infectadas, a transferência acontece da mãe para o bebê.
Nos últimos dez anos, o Brasil enfrenta o aumento das taxas da doença. Em 2020, foram notificados 115.371 casos de sífilis adquirida, 61.441 casos em gestantes e 22.065 casos de sífilis congênita. De acordo com Sandra Fonseca, docente do Instituto de Saúde Coletiva da UFF e uma das líderes do grupo “Epidemiologia da Saúde da Mulher, Criança e Adolescente”, a sífilis acomete principalmente mulheres pobres, adolescentes, negras e de baixa escolaridade.
“Não encontramos a sífilis congênita em uma família na qual a mulher tem alta escolaridade. Além disso, a taxa em mulheres negras é maior do que em mulheres brancas. Se compararmos adolescentes com mulheres mais velhas, a taxa é três vezes maior. Portanto, se uma adolescente, negra e com baixa escolaridade, recorrer aos serviços de saúde, é preciso receber essa paciente com um olhar diferenciado”, explica a professora.
A sífilis congênita pode variar entre formas mais leves até quadros mais graves. Na maioria dos casos, o bebê pode nascer assintomático, ou seja, aparentemente saudável. Contudo, ele também pode manifestar sintomas como anemia e apresentar um quadro sistêmico com comprometimentos, por exemplo, pulmonar, hepático e neurológico.
A enfermidade ainda é causa de mortalidade infantil no Brasil. “A sífilis congênita não é a maior causa de mortalidade infantil, mas é completamente evitável. Logo, não se justifica uma criança morrer de sífilis congênita. Mas, infelizmente, isso ainda acontece”, comenta Sandra Fonseca.
Os estudos realizados pela universidade utilizam dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN). O último registra o número de doenças infecciosas que devem ser monitoradas e engloba os casos de sífilis, tanto na gestação quanto na ocorrência de sífilis congênita. De acordo com Sandra Fonseca, há casos de indivíduos que foram diagnosticados, mas não constam no SINAN. Portanto, os casos da doença ainda são subnotificados.
As pesquisas trabalham com a análise de série temporal. Isso torna possível observar que, além das taxas de incidência serem elevadas, elas continuam aumentando. Os estudos ainda revelam as desigualdades sociais relacionadas à doença de cada município, visto que a sífilis congênita ocorre, principalmente, em mulheres pobres e de baixa escolaridade.
A análise do município de Niterói compreende o período de 2007 a 2016. Apesar de o município possuir alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), foram notificados 754 casos de sífilis congênita. As maiores taxas ocorreram em filhos de mulheres com menos de 25 anos, com baixa escolaridade, de raça/cor parda e que não realizaram o pré-natal.
Em relação ao total de mulheres, mais de 57% obtiveram o diagnóstico de sífilis durante o pré-natal, enquanto as demais souberam somente na internação para o parto ou curetagem. As taxas mais elevadas da doença foram constatadas em mães adolescentes. A maior ocorrência foi entre mães com baixa escolaridade. Além disso, a incidência média da sífilis congênita em Niterói foi de 11,9 casos/1000 nascidos vivos, com aumento significativo de 2007 (4,3 casos/1000 nascidos vivos) até 2016 (23,2 casos/1000 nascidos vivos).
No município do Rio de Janeiro, durante o período de 2016 a 2020, foram notificados 6551 casos de sífilis congênita. O destaque está no percentual de mães na faixa etária entre 10 a 19 anos, que representam cerca de 20-30% dos casos. As adolescentes com baixa escolaridade, pretas ou pardas, apresentaram maior taxa de incidência, com valor máximo em 2020: mais de 35 casos/1000 nascidos vivos. A maioria das mulheres realizou o pré-natal e obteve o diagnóstico durante o acompanhamento. Por fim, as taxas das mães sem pré-natal resultaram em mais de 162 casos/1000 nascidos vivos no ano de 2019.
No município de São Gonçalo, no período de 2007 a 2018, 2.420 casos da doença foram notificados. As taxas mais elevadas ocorreram em adolescentes. No ano de 2018, a taxa em adolescentes foi quase 10 vezes maior do que em mulheres mais velhas. Além disso, em todos os anos as mulheres negras tiveram as maiores incidências, seguidas por mulheres pardas, enquanto as brancas apresentaram os valores mais baixos. Em 2018, a comparação com as mulheres brancas constatou que a incidência de sífilis congênita em negras e pardas foi oito e cinco vezes maior, respectivamente.
Ainda em São Gonçalo, as gestantes que não realizaram o pré-natal tiveram uma incidência maior do que as que o fizeram. Em relação à faixa etária, o aumento foi significativo para todas as mães, em diferentes períodos: 2010-2018 para adolescentes; 2009-2015 para mulheres de 20-34 anos; e para mulheres mais velhas, de 2009 a 2018. Quanto à cor da pele, o aumento foi mais intenso entre as mulheres negras (2012-2018), seguidas das pardas e mulheres brancas (todo o período).
Diante do exposto, fica evidente a importância do acompanhamento pré-natal para diagnosticar a paciente que adquiriu sífilis durante a gestação. A maioria das mulheres no Brasil faz o pré-natal. No entanto, ainda precisamos observar algumas questões: o acompanhamento deve começar cedo, contendo o número de consultas necessárias ao longo do processo; além disso, deve-se realizar os exames recomendados para identificar a sífilis e, posteriormente, iniciar o tratamento. Em muitos casos, a paciente infectada não fez o pré-natal. Nos casos em que ocorreu o acompanhamento, os exames não foram solicitados; por isso, a paciente não foi diagnosticada. “Nesse caso, a paciente só vai descobrir a sífilis quando chegar na maternidade. Nas maternidades públicas, o exame para sífilis é feito sempre na entrada da gestante. Em quase metade dos casos, descobrimos a doença quando a gestante vai para a maternidade dar à luz. O bebê nasce com sífilis congênita porque não tivemos a oportunidade de tratar”, revela Sandra Fonseca.
A doença possui tratamento tanto para a gestante quanto para o bebê. Na gestante, o tratamento consiste na administração de penicilina de acordo com o quadro. Desse modo, cura-se a gestante e evita-se que a sífilis seja transmitida para o bebê. Na criança, o tratamento também ocorre com penicilina, mas em dosagens diferentes. No entanto, é preciso fazer o diagnóstico rápido e realizar todos os exames para avaliar o comprometimento que a sífilis congênita causou. O bebê assintomático também deve ser investigado. Ele pode não manifestar sintomas, mas é possível detectar alterações, por exemplo, no sangue. Sendo assim, é necessário realizar o tratamento.
Sandra Fonseca também ressalta a relevância de falar sobre a doença, principalmente com os graduandos do curso de medicina: “Sou professora, leciono no curso de medicina e esse tema está presente nas minhas aulas. Acredito que todo médico (a) tem que conhecer e pensar sobre essa doença. Também deve saber diagnosticar e realizar o tratamento. Afinal, na nossa contribuição como docentes, também devemos tentar melhorar essa situação por outro caminho. Através do ensino, podemos oferecer uma valorização desse tema e preparar os futuros profissionais de saúde para lidar com esse agravo”, conclui.
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Sandra Costa Fonseca é Graduada em Medicina (UERJ,1982), Mestre em Saúde Coletiva (IMS-UERJ,1997) e Doutora em Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ,2005). Atualmente é professora associada do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ministra disciplinas para a graduação (Curso de Medicina) e orienta discentes de graduação e pós-graduação (Mestrado em Saúde coletiva). Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Epidemiologia, atuando principalmente nos seguintes temas: Saúde da mulher e da criança (mortalidade neonatal, infantil e perinatal, evitabilidade do óbito, cuidado pré-natal, near miss); Vigilância epidemiológica; Sífilis congênita; Sistemas de informação em saúde; Revisão sistemática.