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UFF Responde: Violência contra a mulher no Brasil

Pesquisadoras debatem a violência de gênero nos aspectos jurídicos e psicossociais

No Brasil é notório que ainda há um contexto social, econômico e cultural permeado – veladamente ou não – pela desigualdade entre os gêneros, situação na qual as raízes da violência muitas vezes encontram solo fértil. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no primeiro semestre de 2023, 722 mulheres foram assassinadas por razões de gênero no Brasil, um crescimento de 2,6% se comparado ao mesmo período em 2022, quando 704 mulheres foram vítimas de feminicídio. Nesse cenário desafiador, compreender os múltiplos fatores que alimentam a violência de gênero torna-se imperativo para a construção da equidade social entre homens e mulheres, e também para a promoção da saúde mental das mulheres que habitam essa sociedade que ainda as agride.

Em debate sobre a violência contra a mulher nas dimensões jurídicas e psicossociais, as professoras da Universidade Federal Fluminense Fernanda Almeida (Direito) e Paula Curi (Psicologia) participam do ‘UFF Responde’, a fim de refletir e alertar sobre essa problemática:

UFF – O Fórum de Segurança Pública publicou em seu anuário que a violência contra a mulher cresceu em 2023. Como vocês interpretam esse aumento?

Fernanda Almeida: Primeiramente, é relevante destacar que o anuário indicou o crescimento de diversas modalidades de violência contra a mulher. Estamos falando de um crescimento significativo de registros de assédio sexual, importunação sexual, estupro e feminicídios, por exemplo. É difícil interpretar esse aumento a partir de um único fator. Podemos, a princípio, considerar a melhora na notificação como uma das justificativas. Nesse sentido, se há alguns anos existia uma subnotificação de determinados tipos de violências contra a mulher, hoje mais mulheres procuram a Polícia e o Poder Judiciário. A exposição na mídia de casos que envolvem pessoas famosas, e o consequente debate que isso gera no espaço público, certamente podem ter contribuído para isso. Contudo, esse é apenas um aspecto da questão. O próprio Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023 apresenta algumas pistas para esse aumento, destacando como hipóteses: uma menor alocação orçamentária em políticas de proteção à mulher por parte da gestão de Jair Bolsonaro; o impacto da pandemia de covid-19 nos serviços de acolhimento e proteção às mulheres; ascensão de movimentos ultraconservadores na política brasileira e o crescimento dos crimes de ódio. O anuário destaca ainda a possibilidade desse aumento ter relação com o efeito backlash, que seria uma reação aos avanços conquistados. Assim, na medida em que mais mulheres passam a ocupar espaços anteriormente não ocupados por elas e a romper com papéis tradicionais de gênero, têm-se uma reação de setores conservadores no sentido de barrar esses avanços.

Paula Curi: Quando falamos de violência contra as mulheres, falamos de patriarcado. Mas ele sempre anda de mãos dadas com outras estruturas que se retroalimentam criando cenários de opressões, discriminações, violências e violações. Essas violências são fenômenos que causam impactos na saúde das mulheres, dando relevo a saúde mental. Portanto, é importante falar de dados, mas também do que escapa aos dados. Viver situações de violências de gênero têm efeitos individuais e coletivos, na saúde física, psíquica, sexual, reprodutiva entre outros aspectos.

UFF – A Lei Maria da Penha é a maior referência jurídica atualmente em relação ao combate da violência contra a mulher. Instrumentos públicos e jurídicos como a LMP têm sido eficazes em sua proposta?

Fernanda Almeida: Quando falamos sobre a eficácia de uma lei, diversos pontos devem ser considerados, em especial quando se trata de uma legislação do porte e da importância da Lei Maria da Penha (LMP). Assim, qualquer análise apressada sobre o funcionamento e a aplicação da lei será parcial, no sentido de lançar luz somente sobre determinados elementos. Cabe destacar, em primeiro lugar, que a LMP engloba mecanismos para prevenir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher. A legislação elenca as diversas formas de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral) e traz uma perspectiva de atendimento integral às mulheres, possuindo caráter intersetorial e multidisciplinar. Apesar de ter representado um grande avanço no tratamento do tema, uma das questões que tem sido levantada sobre a aplicação da LMP relaciona-se com a ênfase dada ao aspecto punitivista, em detrimento do aspecto preventivo da lei e do foco em políticas públicas que vão além da resposta do sistema penal. Essa discussão é bastante relevante, já que a atuação do sistema de justiça criminal em nosso país é historicamente direcionada para a criminalização de determinados indivíduos e grupos sociais, a partir de critérios étnico-raciais e de classe. Portanto, é importante que a Lei Maria da Penha seja divulgada e aplicada na sociedade de forma ampla, considerando todos os mecanismos englobados na lei, e não somente o aspecto punitivista. A defesa da criminalização como a única via para solucionar a questão da violência contra a mulher é problemática, especialmente em um Estado que, além de patriarcal, é também racista.

Paula Curi: A violência contra as mulheres é um problema de segurança pública, mas não só. É um fenômeno que articula as macroestruturas de poder. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a polícia é um espaço que nem sempre protege as mulheres e, além disso, a segurança pública está situada mais no eixo combate à violência. Mas há outros três eixos muito importantes: enfrentamento, prevenção e atendimento. Nesse sentido, em relação a intervenções, o poder público deve apostar nas políticas de enfrentamentos, articulando seus eixos e a intersetorialidade necessária. A segurança pública sozinha não é capaz de lidar com a problemática, muito menos com a saúde mental das mulheres em situação de violência.

UFF – Quais intervenções podem ser feitas nesse cenário para garantir mais proteção e saúde mental a essas mulheres?

Fernanda Almeida: É importante compreender que o enfrentamento à violência contra a mulher se faz a partir de uma atuação articulada entre instituições, o que inclui o âmbito governamental e não governamental, e a atuação de diversos órgãos (Centros Especializados de Atendimento à Mulher, Patrulha Maria da Penha, Poder Judiciário, serviços de saúde que atendem vítimas de violência, dentre outros) e em perspectiva multidisciplinar (saúde, assistência social, atendimento psicológico, jurídico). A Lei Maria da Penha prevê a criação de equipamentos e mecanismos que poderão dar suporte a mulheres e seus dependentes em situação de violência doméstica e familiar, como os centros de atendimento integral e multidisciplinar, as casas-abrigo, serviços de saúde e centros de perícia médico-legal especializados nesse atendimento, além de programas e campanhas de enfrentamento à violência doméstica e familiar. As medidas podem ser promovidas pela União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, no limite de suas competências. Cabe destacar, nessa rede, o trabalho dos Centros Especializados de Atendimento à Mulher (CEAMs), que atuam em âmbito municipal e oferecem atendimento social, psicológico e orientação jurídica para mulheres em situação de violência. Esses aparelhos, todavia, não estão presentes de maneira uniforme em todo país, o que seria essencial para conferir uma maior proteção às mulheres.

Paula Curi: Cada mulher é única, mas no contexto social, todas mulheres vivenciam opressões e essas, geram sofrimentos psíquicos. As mulheres tendem a falar de suas mazelas, dando-lhes diversos nomes, mais ou menos compartilhados socialmente. Deste mesmo modo, cada mulher em situação de violência vai vivê-la de forma singular. As formas de escapar e romper ciclos, serão individuais, pois dependerão de ferramentas concretas e subjetivas. Há diversas formas possíveis, a depender de muitas variáveis, que podem colaborar na proteção das mulheres. No ponto de vista psicológico, ter redes de afetos, conhecer o seu território, os dispositivos e os direitos, pode contribuir muito para que uma mulher se sinta cuidada e provida de condições dignas e equânimes de existência.

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Fernanda Andrade Almeida é Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2008) e Doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2013). Foi professora substituta do Departamento de Teoria do Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) no período de 2007 a 2009. Foi professora efetiva da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), atuando na área de Direito Público, no período de 2011 a 2014. Desde 2014 é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), estando atualmente como Professora Associada. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF). Tem experiência na área de Sociologia do Direito e Teoria do Direito. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direito das Mulheres (NUPEDIM).

Paula Land Curi é graduada em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (1994), mestrado em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2004) e doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2012). Docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, campus Niterói, desenvolvendo atividades docentes e de gestão – Coordenadora de Curso de Graduação em Psicologia, desde 2015. Docente do Programa de Pós Graduação em Psicologia (PPGP) – do Departamento de Psicologia da UFF Niterói. Membro do Grupo de Trabalho Mulheres na Ciência da UFF. Integrante do Comitê Gestor do Núcleo ABEP-RIO. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Experiência de trabalho com saúde perinatal, políticas públicas para mulheres e clínica (psicanálise). Pesquisa sobre estudos de gênero, políticas para mulheres, violências e seus efeitos. Interessa-se pela articulação entre essas temáticas e a clínica.

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