Pesquisadores da Universidade Federal Fluminense (UFF) lançam a Segregation Wiki, uma plataforma inovadora que reúne e organiza estudos sobre mais de 800 formas de segregação ao redor do mundo. O projeto, liderado pelo professor do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Vinicius de Moraes Netto, em colaboração com a Universidade do Porto (UPorto) em Portugal e investigadores da University College London (UCL) no Reino Unido e das Universidades Federais de Santa Catarina (UFSC) e Pelotas (UFPel) no Brasil, é resultado de dois anos de pesquisa e busca tornar o conhecimento acadêmico mais acessível para estudantes, cientistas e formuladores de políticas públicas.
A plataforma foi criada para centralizar e conectar informações sobre segregação em diferentes contextos, como educação, moradia, trabalho e gênero. Com base em uma extensa revisão bibliográfica e ferramentas de inteligência artificial, a Segregation Wiki organiza e disponibiliza dados de forma intuitiva, a fim de permitir que os usuários explorem as inter-relações dos diferentes tipos de desigualdade. Além disso, no espírito de uma wiki, o projeto adota um modelo colaborativo, para permitir que especialistas contribuam com novos conceitos e atualizações sobre segregação.
Segregação além da visão tradicional
Tradicionalmente, a segregação é entendida como um fenômeno de separação entre pessoas socialmente diferentes por alguma característica. No entanto, há também um conceito mais recente e sutil, que se refere à restrição do contato.
“Diferente de uma separação absoluta, como o apartheid sul-africano, a segregação muitas vezes convive com algum nível de contato entre grupos sociais distintos. Por exemplo, nos Estados Unidos, houve um processo profundo de segregação determinado por leis que separavam escolas para negros e brancos, assim como lugares em ônibus ou restaurantes. O contato entre esses grupos ainda ocorria, mas era limitado e controlado”, explica o professor.
Nessas situações, o contato social acontece dentro de limites funcionais e não permite um verdadeiro conhecimento sobre o outro. “Um exemplo disso é a relação de trabalho entre pessoas de classes sociais distintas, onde um funcionário pode frequentar a casa de seu empregador apenas para prestar serviços, sem que haja uma interação mais profunda. Essas formas de segregar acabam sendo significativas e se manifestam em muitas situações da vida das pessoas e nos modos como uma sociedade funciona”.

“A paisagem multidisciplinar da segregação”. Navegue a versão interativa da rede: https://tinyurl.com/2brf2kts. Reprodução: Divulgação / Segregation Wiki
A origem do projeto
Ao perceber que era impossível definir de antemão quantos tipos de segregação existiam, Netto e os demais coautores adotaram uma abordagem diferente: decidiram explorar a literatura científica em grande escala. A pesquisa adota uma abordagem “bottom-up” (de baixo para cima), diferente do método tradicional “top-down” (de cima para baixo). Em vez de cinco pesquisadores definirem arbitrariamente categorias de segregação, decidiram coletar dados da literatura científica e identificar padrões emergentes.
“Baixamos milhares de artigos científicos para identificar como os pesquisadores ao longo do tempo haviam categorizado a segregação. Esse processo revelou que a segregação é um fenômeno extremamente complexo e multifacetado. Até então, ninguém havia tentado construir um panorama abrangente das diversas formas de segregação existentes”, relata Netto.
O primeiro objetivo foi reconhecer a complexidade do fenômeno. Apesar de mais de um século de estudos sobre segregação, não havia uma visão clara de quantas formas existiam e como se interligavam. Ao coletar e analisar um grande volume de artigos científicos, os pesquisadores descobriram mais de 800 formas de segregação citadas em mais de 160 disciplinas científicas – da sociologia do trabalho à ecologia e medicina. “Mesmo pesquisando segregação há 25 anos, antes desse estudo, eu não imaginava que existissem tantas variações. Inicialmente, identificamos mais de 5.000 termos relacionados ao tema, mas, após uma filtragem rigorosa, reduzimos esse número para aqueles que faziam sentido empírico para seus autores”, comenta o professor.
O segundo objetivo foi propor uma organização da imensa diversidade de formas de segregação. Para isso, utilizaram a teoria de redes e concluíram que a segregação não ocorre de maneira isolada, visto que diferentes formas de segregação se interconectam e influenciam umas às outras.

Ontologia da segregação: 32 tipos emergentes (anel central) organizam o acesso a 804 formas conectadas de segregação (anel externo). Navegue a versão interativa em: https://segregation-ontology.cityscience.group/ . Reprodução: Divulgação / Segregation Wiki
Desafios na pesquisa
O primeiro passo foi reconhecer que havia muito a ser descoberto. Inicialmente, o grupo tentou listar formas conhecidas de segregação a partir do seu próprio conhecimento. Contudo, rapidamente perceberam a limitação dessa abordagem. ”Conseguimos elencar 15 ou 20 formas, mas logo ficou evidente que a segregação era um fenômeno muito mais amplo e complexo. Além disso, nosso grupo era formado apenas por especialistas em estudos urbanos, sem a presença de sociólogos, antropólogos ou pesquisadores de outras disciplinas. Isso restringia nossa visão, já que cada área do conhecimento trabalha com conceitos e ferramentas específicas que moldam sua percepção da realidade”, desabafa.
Diante dessa limitação, a equipe composta pelos pesquisadores Maria Fiszon, Otávio Peres, Kimon Krenz e Renato Saboya acrescentou a cientista política e estatística Desirée Rosalino ao time e decidiu testar uma abordagem diferente: em vez de categorizar a segregação por conta própria, exploraram o que chamam de “inteligência coletiva” da produção científica global.
Para acessar e sistematizar esse conhecimento acumulado ao longo de mais de um século, foi necessário utilizar do avanço da digitalização e das ferramentas computacionais. Com o acesso a vastos bancos de dados científicos, que reúnem a produção acadêmica de diversas áreas, o projeto avançou com mais facilidade.
”Para nossa pesquisa, utilizamos a plataforma Scopus, um dos maiores repositórios de artigos científicos, que contém publicações sobre segregação desde 1913. A partir desse banco de dados, realizamos um processo de “raspagem” de literatura, identificando todas as ocorrências do termo “segregação” associado a diferentes contextos. Isso nos permitiu mapear mais de 5.000 combinações de termos que incluíam “segregação” associada a algum termo relevante”, explica Netto.
Em seguida, o foco foi a curadoria do material coletado. Muitas das ocorrências eram apenas construções casuais de texto e não representavam de fato formas de segregação. Por isso, passaram meses revisando manualmente as 5.500 combinações, a fim de identificar aquelas que realmente descrevem dimensões da segregação. Ao final da triagem, consolidaram um total de 804 formas distintas de segregação.
Por fim, outro desafio fundamental foi a representação do conhecimento de modo compreensível e acessível. Com um volume tão grande de dados, era essencial encontrar uma maneira de visualizar as conexões entre diferentes tipos de segregação. Para isso, recorreram à análise de redes, uma ferramenta que permite observar padrões e interconexões dentro de conjuntos complexos de informações.
“Esses desafios exigiram uma abordagem interdisciplinar, o uso de inteligência artificial e estatística, além de um trabalho exaustivo de curadoria. O resultado foi a Segregation Wiki, uma plataforma que sistematiza esse conhecimento e oferece um panorama inédito sobre a complexidade da segregação social”, destaca o professor.

Protesto contra a segregação racial – Ministros fazendo piquete em uma loja Woolworth na cidade de Nova York para protestar contra a segregação racial nos balcões de almoço das filiais da rede no sul, 1960.
Resultados causam choque e revelam histórias
O crescimento de número de pesquisas sobre segregação inclui sobretudo a segregação educacional, de gênero e ocupacional, refletindo mudanças significativas nos desafios sociais contemporâneos. A segregação residencial e racial sempre esteve entre os temas mais discutidos, mas, a partir dos anos 1970 e 1980, houve uma ampliação do escopo das investigações, que passou a incorporar novas formas de separação social.
A segregação no mundo do trabalho, por exemplo, demorou décadas para ser reconhecida como um problema relevante; já a de gênero surgiu como um tema de pesquisa nos anos 1980 e, apenas dois anos depois, foi integrada ao debate sobre segregação ocupacional, o que demonstra uma aceleração na compreensão da interseccionalidade das diferentes formas de segregação.
“Nos últimos anos, a pesquisa se concentra cada vez mais em abordagens combinatórias, em analisar como diferentes tipos de segregação se interligam. Por exemplo, as pesquisas sobre segregação residencial étnica e a segregação socioeconômica cresceram significativamente nas últimas décadas”, explica o professor.
A tendência e a crescente preocupação com a interseccionalidade na segregação sugere que os impactos sociais não podem ser compreendidos isoladamente, mas devem ser analisados de maneira sistêmica, levando em conta como diferentes dimensões se sobrepõem e se reforçam mutuamente.
A Segregation Wiki pode contribuir significativamente para a formulação de políticas públicas e para o debate sobre desigualdade social, visto que oferece uma plataforma acessível e abrangente que reúne e dissemina conhecimento científico sobre diferentes formas de segregação. A plataforma permite trêsfunções que impactam diretamente a pesquisa, a formulação de políticas e a conscientização social: a organização do conhecimento, a identificação das conexões entre diferentes formas de segregação e o acesso democrático à informação.
“A plataforma amplia o acesso ao conhecimento sobre segregação e também cria um espaço colaborativo entre acadêmicos, estudantes e o público em geral, que podem contribuir para um entendimento mais completo deste tema, algo importante para a formulação de políticas mais inclusivas e eficazes”, explica Netto.

Marcha em Washington – Apoiadores dos direitos civis carregando cartazes na Marcha em Washington, EUA, 28 de agosto de 1963.
Ampliação e passos futuros
Os objetivos futuros do projeto envolvem tanto a ampliação da pesquisa quanto o aprimoramento da plataforma para se tornar uma ferramenta ainda mais acessível e útil para pesquisadores, formuladores de políticas e o público. Isso inclui a moderação contínua do conteúdo para evitar vandalismo digital e a inclusão de novas formas de segregação conforme a literatura evolui.
De imediato, os coordenadores da pesquisa visam à publicação dos achados em um periódico de alto impacto, de alcance interdisciplinar e internacional. O artigo já tem uma versão longa publicada em plataformas acadêmicas, mas a equipe aguarda a publicação em uma revista científica amplamente conhecida.
Os pesquisadores ainda pretendem aprofundar a investigação sobre como novas formas de segregação surgem e passam a ser reconhecidas na literatura científica. “Esse novo estudo terá um enfoque qualitativo e histórico, a fim de entender o desenvolvimento de conceitos como segregação de gênero e ocupacional ao longo do tempo”, conta Netto.
Além disso, o recorte geográfico desponta como relevante para oferecer informações. Na América Latina, por exemplo, a segregação socioeconômica é a mais pesquisada, enquanto na África a segregação racial tem mais destaque. Assim, um dos objetivos é aprofundar essa análise contextual para compreender melhor as especificidades de cada região.
A iniciativa conta com financiamento da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e da Fundação para a Ciência e Tecnologia de Portugal (FCT), além do apoio de pesquisadores de diversas instituições, como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Centro de Pesquisa de Território, Transportes e Meio Ambiente da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, em Portugal.
______
Vinícius de Moraes Netto é Professor Permanente e Ex-Coordenador do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (PPGAU UFF, 2020-2021). Bolsista Produtividade em Pesquisa CNPq 2. Professor Associado do Departamento de Urbanismo (TUR UFF). Investigador Principal do Centro de Investigação do Território Transportes e Ambiente, Universidade do Porto, Portugal (CITTA | FEUP). Doutorado em Advanced Architectural Studies (The Bartlett School of Graduate Studies, University College London | UCL). Pesquisador Visitante no Center for Urban Science and Progress, New York University (NYU CUSP, 2019) com Pós-doutorado em Desempenho Urbano (PNPD CAPES, 2009).