Pular para o conteúdo
Ir para o conteúdo
GovBR

Notícia

Lógica das plataformas digitais gera debate em torno do verdadeiro reconhecimento social

Processo de reconhecimento nas redes sociais revoluciona o mundo dentro e fora das telas

Em fevereiro de 2005, três ex-funcionários do PayPal criaram uma plataforma fundamental na expansão das redes sociais: o Youtube. Cinco anos antes, a televisão brasileira testemunhava o início de um fenômeno midiático com a estreia do Big Brother Brasil (BBB). Duas décadas depois, ambas as atrações midiáticas consolidaram-se como símbolos de transformação da maneira na qual as pessoas buscam o reconhecimento do público.

Se antigamente o alcance da fama dependia dos grandes meios de comunicação, hoje qualquer pessoa pode conquistar visibilidade online, seja pelas redes sociais, como o Tik Tok, o Youtube e o Instagram, ou por realities shows, como o BBB e o Masterchef Brasil. No entanto, a exposição não é a única estratégia dos usuários, visto que, a partir da dinâmica dos algoritmos e da audiência, novos regimes de reconhecimento são criados. 

Por um lado, as plataformas de mídia social facilitam a visibilidade e o reconhecimento dos indivíduos; por outro lado, controlam a estrutura dessa dinâmica. Nesse sentido, o professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e autor do livro “Reconhecimento na Era da Mídia Social” (no original, Recognition in the Age of Social Media, Polity Press [2024]), Bruno Campanella, explica as mudanças no processo de comunicação na revolução digital. Ele conta que a principal inovação das redes sociais criadas no início dos anos 2000 foi a possibilidade de uma expressão mais direta das pessoas, para a sociedade, sem a necessidade dos meios tradicionais de comunicação.

Reprodução: The Pollack Group

As três dimensões do reconhecimento social

Antes da era das mídias sociais, de acordo com autores pesquisados por Campanella, o reconhecimento social manifestava-se em três dimensões principais: o afeto interpessoal, as estruturas legais e a valorização institucional. Com o advento das plataformas digitais, o professor explica que, em muitos casos, os processos de reconhecimento foram transportados para o ambiente online. “A primeira dimensão é o reconhecimento ligado ao afeto, às emoções. Isso ocorre por meio do contato interpessoal, da demonstração de afeto dentro da família, entre amigos, entre companheiros e companheiras, e assim por diante. A segunda dimensão do reconhecimento está ligada às estruturas legais da sociedade, que garantem a igualdade de acesso às formas de cidadania. Por fim, a terceira dimensão é a valorização daquilo que as pessoas fazem, realizam e de como elas são. Esse tipo de reconhecimento se dá por meio de associações, instituições e até mesmo dos meios de comunicação tradicionais, que desempenham o papel de valorizar as diferentes formas de estar no mundo, seja pelo trabalho ou pelas escolhas pessoais.

Na transição para as redes digitais, exigem-se novas habilidades dos indivíduos, para que alcancem visibilidade por meio do funcionamento dos algoritmos. A promoção de conteúdos, por exemplo, exige do usuário o aprendizado sobre como utilizar as diferentes plataformas, explorar imagens, produzir vídeos e desenvolver uma literacia digital. “Mais do que isso, é preciso mostrar-se interessante e criar conteúdo que gere curtidas e reações. Essencialmente, a capacidade de naturalizar expressões individuais no cotidiano está cada vez mais presente nas redes. É preciso dar essa visibilidade às opiniões e às formas de estar no mundo dentro das mídias sociais.”, comenta Campanella.

As plataformas funcionam com regimes de visibilidade estabelecidos a partir de novos critérios, em mutação permanente, para que indivíduos e marcas alcancem reconhecimento. “As mídias sociais operam com regimes muito específicos de visibilidade, que são, de certa maneira, bastante opacos. Sabemos que, para sermos reconhecidos nessas plataformas, precisamos estar sempre online, postar constantemente e nos tornar notáveis. Esses são elementos importantes para ganhar visibilidade. A necessidade de presença contínua e conteúdo relevante tornou-se essencial para se destacar no ambiente digital”, explica o escritor.

Contudo, a opacidade dos algoritmos dessas plataformas gera incertezas para os usuários. Embora cada plataforma possua suas particularidades em termos de modos de expressão e frequência de postagens, cada rede possui seu próprio algoritmo, que rege a valorização e entrega dos conteúdos de forma específica. 

“Não há clareza sobre o que exatamente os algoritmos privilegiam: o que devemos postar, quando, com que frequência, quais estados emocionais devemos demonstrar. Essa falta de transparência dificulta a formulação de estratégias eficazes para alcançar visibilidade, uma vez que os critérios de destaque podem variar sem aviso prévio”, ressalta o professor.

 

Reprodução: The Strategic Peacock

Os contrapontos da busca por reconhecimento nas mídias digitais 

O uso crescente das plataformas digitais está associado ao aumento de problemas como ansiedade e baixa autoestima. Historicamente, os seres humanos buscam reconhecimento de outros indivíduos ou instituições para se sentirem valorizados. “Isso não é algo novo; faz parte da natureza humana. Contudo, com o advento das mídias sociais, esses processos de validação passaram a ser mediados por plataformas digitais que operam com lógicas e regras próprias”, observa o professor.

Frequentemente, as ferramentas incentivam práticas individualistas que podem amplificar medos e ansiedades, e não visam promover uma sociedade mais solidária ou o bem-estar dos indivíduos. A responsabilidade de buscar reconhecimento é transferida para o indivíduo, sem o suporte de comunidades ou associações, o que pode intensificar sentimentos de isolamento.

Outro ponto que se destaca nesse ambiente é a busca constante por validação, por meio de recompensas instantâneas, como curtidas e comentários positivos, num sistema que libera dopamina no cérebro e pode criar um ciclo de recompensa viciante. Como agravante, essa dinâmica pode resultar em dificuldade de concentração, procrastinação e frustração quando as recompensas não são imediatas. Ademais, a comparação constante com as vidas aparentemente perfeitas nas redes sociais pode distorcer a autoimagem e fomentar sentimentos de inadequação. A exposição contínua a conteúdos idealizados também pode levar os indivíduos a sentirem que suas próprias vidas são insuficientes, o que contribui para a baixa autoestima e insatisfação. 

“O desejo de ser reconhecido por meio das mídias sociais acaba valorizando — ou até condicionando — certas formas de expressão emocional, psicológica e comportamental. Para serem reconhecidos, os indivíduos percebem que certas formas de expressão são mais valorizadas do que outras, alinhando-se às lógicas das plataformas que buscam maximizar reações e engajamento.”, explica o professor.

De acordo com o docente da UFF, expressões mais radicais, opinativas ou emocionalmente exacerbadas tendem a gerar mais visibilidade nas redes sociais: “Isso pode incluir a amplificação de medos, indignações ou até mesmo a participação na chamada ‘cultura do cancelamento’. Consequentemente, a maneira como as pessoas constroem e expressam sua identidade nas mídias sociais é moldada por esses fatores, e influencia seus comportamentos e interações no ambiente digital”.

Is Social Media destroying our self-esteem? (Estão as redes sociais destruindo nossa autoestima?) | Reprodução: Victoria Stein

Há autenticidade ou imposição nas estratégias de visibilidade? 

O reconhecimento sempre foi uma necessidade fundamental do ser humano, mas, com o avanço das mídias sociais, essa busca passou a ser mediada por algoritmos e interesses comerciais. O professor reflete: “O reconhecimento, conforme discutido na sociologia e na filosofia política, é visto como importante e saudável. No entanto, a questão central não está no reconhecimento em si, mas no tipo de validação que essas plataformas promovem. As Big Techs tentam nos fazer acreditar que ser visto e reconhecido nas redes sociais é algo a ser desejado por todos”.

Essa lógica incentiva a produção constante de conteúdo, o que leva muitos usuários a moldarem sua identidade de acordo com o que gera mais engajamento. “De fato, quem tem grande visibilidade pode obter vantagens financeiras, como patrocínios e parcerias. Porém, se deixarmos de lado o aspecto financeiro, precisamos questionar se esse reconhecimento promovido pelas mídias sociais realmente gera maior solidariedade e liberdade individual”, comenta Campanella. 

O escritor explica que as redes sociais têm possibilitado o fortalecimento de movimentos sociais e lutas históricas, mas que a visibilidade conquistada nessas plataformas nem sempre resulta em mudanças estruturais: “Isso porque o reconhecimento digital é efêmero e, muitas vezes, condicionado a tendências momentâneas e ao engajamento. No fundo, precisamos refletir se o reconhecimento promovido pelas mídias sociais realmente contribui para a autorrealização do indivíduo e para uma sociedade mais solidária”.

A grande questão, portanto, é se essa validação virtual contribui para uma experiência social mais rica ou se apenas transforma os indivíduos em produtos de uma lógica que prioriza o engajamento acima do bem-estar. “Estamos diante de um tipo de reconhecimento individualizado, no qual os usuários se veem como objetos, sempre buscando gerar reações, em vez de se enxergarem como sujeitos plenos. O desafio está em construir um ambiente no qual o reconhecimento não seja apenas um reflexo do engajamento, mas um meio de fortalecimento de laços sociais e promoção de uma expressão saudável”, conclui.

______

Bruno Roberto Campanella é Professor Associado do corpo permanente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do departamento de Estudos Culturais e Mídia, ambos da Universidade Federal Fluminense. Realizou pós-doutoramento na London School of Economics and Political Science, LSE (2017), onde foi co-coordenador da rede de “visiting fellows” do Departamento de Mídia e Comunicação. Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ (2010), mestre em Comunicação Transnacional e Mídia Global pelo Goldsmiths College, University of London (2002) e graduado em Engenharia Mecânica (especialização em Produção) pela PUC-RJ (1997). Ganhador em 2011 do Prêmio Compós de melhor tese de doutorado, foi Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPQ – PQ2 (2015-2022), é Jovem Cientista do Nosso Estado Faperj desde 2015, supervisor de pesquisa de pós-doutoramento financiada pela Faperj (PDR10), coordenador do curso de graduação em Estudos de Mídia da UFF, coordenador do Núcleo de Estudos em Mídias Digitais e Consumo (NEMACS), grupo de pesquisa do CNPQ, foi vice-coordenador e coordenador do GT Comunicação e Sociabilidade da Compós (2014-2017), editor da revista Ciberlegenda do PPGCOM/UFF (2012-2015) e editor convidado da revista Contracampo (2019), também do PPGCOM. Mantém interesse nas seguintes áreas de pesquisa: processos de reconhecimento em plataformas datificadas; midiatização e produção de subjetividade; práticas de criação de visibilidade nas mídias; estudos de televisão e reality show.

 

Por Lívia Galvão
Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga. Conteúdo acessível em Libras usando o VLibras Widget com opções dos Avatares Ícaro, Hosana ou Guga.