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Notícia

Moeda de negociação do BRICS gera novos debates após ameaça de Trump

Presidente norte-americano ameaça taxar em 100% países do BRICS caso avancem em projeto de moeda comum

No último dia 30, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmou em uma publicação na rede Truth Social que poderá impor tarifas de 100% aos países do BRICS caso adotem uma alternativa ao dólar. “Vamos exigir um compromisso desses países, aparentemente hostis, de que eles não criarão uma nova moeda nem apoiarão qualquer outra moeda para substituir o poderoso dólar americano, caso contrário, eles enfrentarão 100% de tarifas e deverão dizer adeus às vendas para a maravilhosa economia dos EUA”, escreveu. A afirmação foi ao encontro das promessas e das ameaças de taxação que o presidente norte-americano anuncia desde antes da sua posse, não apenas aos membros do BRICS, mas também a outros parceiros comerciais.

Tradicionalmente, o dólar é a moeda utilizada nas transações comerciais entre os países membros do BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e que recebeu outros países nos últimos anos: Egito, Etiópia, Irã, Emirados Árabes Unidos e a Indonésia. Neste sentido, os países membros discutem a adoção de uma moeda comum para realizar comércio sem o dólar.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) estima que, em 2027, os países do BRICS representarão 33,9% do PIB mundial, o que supera o tradicional G7, cuja participação deve cair para 28,26%. Apesar do crescimento de alternativas ao dólar, a moeda norte-americana ainda domina o comércio global. Na União Europeia, por exemplo, 50,3% das transações ainda são realizadas em dólares.

Ilustração do BRICS | Reprodução: ANTARA/noropujadi

Particularidades, motivações e desafios para a escalada da moeda do BRICS

Nos últimos anos, a proposta de uma moeda comum para o BRICS ganhou força como uma tentativa de reduzir a dependência do dólar norte-americano. Criado na década de 1970, o sistema SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication) é a principal rede de comunicação entre bancos em transações internacionais. O meio é essencial para pagamentos interbancários em diversas moedas, especialmente em dólares. 

No entanto, a predominância da moeda americana faz com que o sistema também seja utilizado como ferramenta de sanções, explica o professor do Departamento de Ciências Econômicas da Universidade Federal Fluminense (UFF), Adriano Vilela Sampaio. “Como a maioria das transações internacionais envolvem o dólar, os EUA conseguem isolar um país do sistema financeiro global ou mesmo congelar seus recursos em bancos estrangeiros, como fez recentemente com a Rússia. Ou seja, os EUA usam sua moeda para exercer para promover seus interesses políticos e econômicos, o que é chamado de armamentalização (weaponization) do dólar.”

Embora ainda em fase inicial, a adoção de uma nova moeda de negociação dentro do BRICS está sendo considerada como uma forma de integrar ainda mais os países membros e possibilitar transações comerciais entre eles sem a necessidade de conversão para o dólar. A ideia, no entanto, não é criar uma moeda para uso geral, como o Euro. “Isso demandaria uma integração econômica e política impensável para esse conjunto de países. Seria algo mais próximo a um mecanismo de pagamentos – liquidações – que não utilize uma moeda externa, como o dólar”, explica o especialista.

O meio usado seria, possivelmente, calculado a partir dos pesos de cada economia e serviria como unidade de conta e meio de liquidação entre os bancos centrais, sem que outros agentes tivessem acesso. “Atualmente, quando um exportador brasileiro vende a uma empresa chinesa, a liquidação dessa transação costuma ser em dólares. Com um sistema como o descrito anteriormente, o importador chinês pagaria o valor renminbi a uma instituição financeira local, que repassaria ao banco central chinês. Este, por sua vez, creditaria o valor equivalente na moeda única na conta do BC brasileiro que, então, repassaria a um banco local até que o valor em reais fosse pago ao exportador brasileiro”, exemplifica o professor.

Cédula simbólica do BRICS recebida na cúpula do grupo em 2024 pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin | Reprodução: Sputnik

Atualmente os Direitos Especiais de Saque do FMI têm papel semelhante, embora seu uso seja muito restrito. “Poderia ser aberto a outros países membros, mas o próprio grupo passou por uma expansão recente, com a integração de países como Arábia Saudita e Irã como membros plenos. Então, em um primeiro momento possivelmente se restringiria aos membros plenos ou, mesmo, somente aos fundadores.”

No sistema atual, uma empresa exportadora brasileira recebe seus pagamentos em dólares e pode manter esses recursos fora do país e usá-los para pagar importações. “Com um sistema como o proposto pelo BRICS, no entanto, os exportadores deixariam de ter acesso direto à moeda estrangeira. Portanto, a adesão da iniciativa privada é um dos principais desafios, pois ela fortalece os bancos centrais em detrimento de empresas com receitas em dólares. Além disso, em casos de desequilíbrios persistentes de um dos países membros, ele poderia ficar sempre em dívida no sistema, o que poderia reduzir a disposição política dos demais países em continuar no meio de negociação”, complementa Sampaio.

Os impactos seriam majoritariamente positivos ou negativos? 

Para os países membros, esse novo sistema demonstra-se mais preventivo e uma forma de ganhar relevância no cenário geoeconômico global, em especial para a Rússia, alvo de duras sanções financeiras em função da invasão à Ucrânia. “Com menor uso do dólar, o país conseguiria gerir melhor suas receitas de exportações e fazer e receber mais investimentos internacionais. Diante da crescente hostilidade dos EUA  – vinda das diferentes forças políticas domésticas – não seria surpresa a imposição de sanções financeiras contra a China, então esse mecanismo pode ser visto como algo defensivo e/ou preventivo”, comenta o especialista.

Apesar de parecer atraente pela possível redução dos custos de pagamento e recebimentos, o impacto não necessariamente seria relevante pelo sistema em si. “Diante de crescentes hostilidades e imposições unilaterais de tarifas, os países desse e de outros blocos poderiam buscar aumentar o comércio entre eles e reduzir a dependência dos EUA. Apesar disso, por ser algo embrionário e pelos países do BRICS deixarem claro que o objetivo não é necessariamente substituir o dólar, as reações tendem a ser amenas. A reação de Donald Trump foi mais relacionada à desinformação e à necessidade de criar factoides do que os impactos da iniciativa em si”, analisa Sampaio.

Reprodução: Núcleo de Estudos do BRICS da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Perspectiva geopolítica desse conflito econômico

Uma das principais preocupações do governo americano é o impacto do aumento da influência chinesa sobre o sistema internacional, de modo que estes ampliam, cada vez mais, o comércio entre os países parceiros e aumentam os investimentos em projetos de longo prazo nesses países. Segundo o professor do Departamento de Direito Público da UFF e coordenador do Núcleo de Estudos dos países BRICS, Evandro Menezes de Carvalho, essa inquietação é acompanhada do medo de que o BRICS seja um bloco cada vez mais organizado em torno de objetivos econômicos e políticos, que se contraponham, direta ou indiretamente, aos interesses dos Estados Unidos. 

“A discussão sobre o uso de moedas nacionais no comércio internacional entre os parceiros dos BRICS é um exemplo disso, pois poderia provocar, a muito longo prazo, um enfraquecimento do dólar como moeda corrente na economia global. E, se isto acontecer, cairá um dos bastiões do poder estadunidense sobre o sistema internacional.”

A nova, ou possível, política do presidente norte-americano e seu método de negociação alarma o mundo e estimula muitos atores econômicos a planejarem alternativas diante da possibilidade de encontrarem dificuldades na relação comercial com os Estados Unidos. “Trump parte da ameaça de aumentos tarifários sobre as importações norte-americanas com o intuito de forçar os países a aceitarem suas condições. Contudo, a depender do país que ele aumente as tarifas de importação, haverá efeitos negativos sobre o mercado estadunidense, na medida em que implicará no aumento dos produtos no âmbito do mercado doméstico do país. Este fato poderá impactar na própria popularidade de Donald Trump, visto que muitas das empresas que exportam para os Estados Unidos têm no mercado norte-americano o seu principal destino de modo que não é tão simples redirecionar a produção para novos mercados internacionais do dia para a noite”, analisa Carvalho.

Reprodução: Freepik

Perspectiva dos próximos capítulos da política global

Carvalho ainda enxerga a geopolítica atual sendo marcada pela crise do multilateralismo, acentuada pela redução de engajamento ou a retirada dos Estados Unidos das organizações internacionais, como o conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS). “As organizações internacionais, sobretudo aquelas fundadas na segunda metade do século 20, estão passando por uma crise de legitimidade e eficácia muito significativa. A Organização Mundial do Comércio (OMC) encontra dificuldades para funcionar plenamente diante da total paralisia do seu Órgão de Apelação, provocada pela recusa dos Estados Unidos em aprovar novos juízes para este órgão. Acresce-se o fato da retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e da OMS. Com atos – e não apenas com discursos – Donald Trump já deixou claro que a ordem Internacional do século passado não serve mais aos interesses dos Estados Unidos.”

Trump assina documento de ordens executivas | Reprodução: Mike Segar/Reuters

A dissolução da estrutura internacional construída após a Segunda Guerra Mundial, com o intuito de assegurar a posição hegemônica dos EUA, o país assume discursos em detrimento de compromissos assumidos no século passado, mesmo em âmbitos dos direitos humanos. “Curiosamente, os países do BRICS, em especial a China, têm defendido amplamente e abertamente as organizações internacionais e a reforma delas, com o intuito de dar mais voz aos países em desenvolvimento, e assim promover uma maior democratização do sistema Internacional. O Brasil, historicamente e continuamente, defende o multilateralismo e o papel das organizações internacionais para a manutenção da paz e da segurança internacional. Neste sentido, o BRICS pode se tornar um agrupamento de países que, a despeito das diferenças de sistemas políticos e econômicos no âmbito interno de cada um deles, defendem um mundo multipolar onde o multilateralismo e a negociação diplomática tenham o seu devido lugar”, pontua o professor de Direito. 

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Adriano Vilela Sampaio possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005), mestrado em Economia Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009) e doutorado em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (2014). É professor da Universidade Federal Fluminense desde janeiro de 2014. Leciona e pesquisa nas áreas de Economia Internacional, Macroeconomia e Economia Monetária e Financeira.

Evandro de Menezes Carvalho é Doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo (USP), Mestre em Integração Latino-Americana pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro (FGV Direito Rio), onde também coordena o Núcleo de Estudos Brasil-China. Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Visitante Sênior na Escola de Governo da Universidade de Pequim (2023-2024). Prêmio Amizade do Governo Central da China (2023). Editor-Chefe da revista China Hoje. Foi Pesquisador Sênior da Universidade de Finanças e Economia de Shanghai, Pesquisador Visitante do Centro de Estudos dos BRICS da Universidade Fudan e Professor Visitante da Universidade de Shanghai. Fundador da World Association on China Studies (WACS) e da Rede Brasileira de Estudos da China (RBChina).

 

Por Lívia Galvão
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