Uma pesquisa desenvolvida no Laboratório de Neurofisiologia do Comportamento da Universidade Federal Fluminense (UFF) revelou que mães cientistas apresentam quase o dobro de vulnerabilidade à depressão do que os pais. De acordo com o estudo, 22% dos pais acadêmicos apresentam sinais de depressão, enquanto esse número chega a 42% quando se olha apenas para as mães pesquisadoras. Os dados foram apresentados na dissertação de mestrado “O impacto da maternidade na saúde mental da comunidade acadêmica: identificando vulnerabilidades”, elaborada pela mestre em Ciências Biomédicas, Sarah Rocha Alves, e orientada pelas professoras do Programa de Pós-Graduação em Ciências Biomédicas (PPGCB/UFF), Letícia de Oliveira e Mirtes Pereira.
“Quando perguntamos sobre os fatores que contribuem para essa diferença, identificamos que existem fatores culturais e históricos que atribuem às mulheres as funções de cuidado. Em geral, as mulheres enfrentam uma sobrecarga maior em relação ao cuidado dos filhos, às tarefas domésticas e aos cuidados com os idosos. O que mostramos no estudo é que, de fato, as mães com menor rede de apoio são aquelas que têm a saúde mental mais impactada”, explica Oliveira.
Rocha conta que o impacto da maternidade na academia é um tema pouco explorado, com uma quantidade limitada de artigos que o abordam. “Decidi pesquisar sobre esse assunto justamente para trazer visibilidade a uma questão tão relevante. Historicamente, as mães têm assumido uma responsabilidade desproporcional na criação dos filhos, e os resultados da pesquisa confirmaram o que já era esperado, embora de forma alarmante. A importância dessa pesquisa está em evidenciar essas desigualdades com dados concretos, o que não apenas amplia a compreensão do tema, mas também fomenta discussões e a criação de políticas que possam apoiar as mães no ambiente acadêmico”.
Maternidade na ciência e probabilidade de diagnóstico de depressão
O estudo aponta que mães com filhos com deficiência, mães negras — que enfrentam a intersecção com o racismo — e mães que são as únicas cuidadoras, ou seja, as mães solo, apresentam maior sofrimento, maior pontuação e uma maior probabilidade de diagnóstico de depressão.
“É importante ressaltar que a presença de um filho com deficiência pode ser muito benéfica para a própria família, no sentido de entender as diferenças e promover a inclusão, o que pode trazer consequências positivas. Contudo, há também uma sobrecarga associada a isso, devido à falta de políticas de apoio a essas crianças e pessoas com deficiência em geral. Essa sobrecarga se reflete na saúde mental das mães. No caso das mães negras, existe ainda a questão do racismo que essas mulheres enfrentam, e isso, combinado com a maternidade, impacta de forma mais acentuada a saúde mental delas”, comenta Oliveira.
Nesse sentido, as pesquisadoras acreditam que a academia precisa de uma mudança de cultura para que se compreenda o papel da maternidade e o quão importante ela é, a partir da construção de políticas de apoio e da normalização de uma carreira não linear. “Elas incluem pausas, não apenas para a maternidade, mas também para licenças de saúde ou para o cuidado com idosos. Portanto, na carreira de um cientista, nem sempre ele estará altamente produtivo, dependendo do que está vivendo no momento. Essa avaliação do contexto pessoal dos cientistas é fundamental, e não apenas a expectativa de uma carreira sem interrupções e de produtividade constante”, acrescenta a docente.
Carreira na ciência: desafios das mães pesquisadoras
De acordo com a coordenadora da pesquisa, Letícia de Oliveira, a carreira de cientista é de alta performance. Os docentes precisam realizar orientações concomitantes de diversos alunos no mestrado, no doutorado e na iniciação científica, e são constantemente avaliados pela produção científica. “Isso gera uma grande carga na carreira, que se associa a outra sobrecarga: a de cuidar dos filhos, das questões domésticas e da gestão de todas as questões relacionadas à dinâmica da casa e da família. Além disso, precisamos gerenciar prazos e equipes, o que aumenta ainda mais a sobrecarga mental, especialmente para as mulheres. Esse é o ponto sugerido pelo nosso estudo: a sobrecarga mental é significativamente maior para as mulheres do que para os homens”, aponta Oliveira.
Um dos conceitos relacionados à pesquisa é o de “teto de vidro”. Essa análise observa que, embora sejam maioria na graduação e na pós-graduação, o percentual de mulheres diminui drasticamente à medida que avançam na carreira. Para a professora do PPGCB/UFF, o cenário se agrava nos cargos políticos e decisórios. “O teto de vidro tem consequências drásticas para as mulheres. Quando olhamos para os cargos mais políticos, como nas reitorias das universidades ou nas presidências das Fundações de Amparo à Pesquisa, da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por exemplo, vemos um percentual muito baixo de mulheres nessas instituições, que estão diretamente relacionadas ao poder e ao prestígio”.
Oliveira acredita que a maternidade é um dos fenômenos que pode explicar o teto de vidro e o chamado ‘efeito tesoura’, ou seja, a queda no percentual de mulheres e a dificuldade de chegar ao topo. No entanto, a maternidade não é o único fator; há outras questões, como o assédio dentro da academia, os estereótipos de gênero e o viés implícito. Mas a falta de políticas de apoio à maternidade é certamente um fator importante que pode ajudar a explicar o teto de vidro e o efeito tesoura.
Nesse contexto, a professora destaca o trabalho do Parent in Science, que estuda o impacto da maternidade e da parentalidade na carreira acadêmica. Esse movimento mostrou de maneira pioneira que há uma queda na produtividade das mulheres após o nascimento dos filhos, que dura de quatro a seis anos.
“Essa redução de produtividade não é observada nos homens, pois os pais praticamente não sofrem impacto após o nascimento dos filhos. Esse tipo de dado tem fornecido evidências importantes para a elaboração de políticas públicas que possam compensar esse impacto, que, em geral, são voltadas mais para as mães, do que para os pais. Vale sempre lembrar que o problema não está na maternidade em si, mas na falta de apoio para as mães e seus filhos”, explica a professora.
A pesquisa foi destaque no 4º Simpósio Brasileiro sobre Maternidade e Ciência, promovido pelo Parent in Science, com apoio do Instituto Serrapilheira e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Além de discutir os desafios enfrentados pelas mães nas carreiras científicas, o evento buscou encontrar soluções para reduzir a desigualdade de gênero no ambiente acadêmico.
Uma das iniciativas discutidas foi o edital FAPERJ Nº 10/2024 – Programa “Apoio às cientistas mães com vínculo em ICTS estado do Rio de Janeiro”. Este edital foi articulado e organizado pela comissão de equidade, diversidade e inclusão da FAPERJ, coordenada pela professora Letícia de Oliveira, e tem feito um trabalho de destaque com o lançamento de editais voltados aos grupos sub representados. Neste momento, um edital para pesquisadores com deficiência está aberto à submissões até o dia 13 de dezembro.
“O edital de apoio às cientistas mães foi muito importante, pois foi pioneiro. Nenhuma outra agência de fomento no Brasil havia lançado um edital específico para mães cientistas. Ele surge justamente como uma política de apoio para que essas mulheres não abandonem suas carreiras após o nascimento de um filho, considerando a queda de produtividade e a sobrecarga muito grande nesse período. Ainda assim, é apenas uma das muitas iniciativas que precisam acontecer. Precisamos de outros apoios, como creches e espaços dentro das instituições para acolhimento das crianças e para mulheres que estão amamentando. São mudanças necessárias para que a maternidade seja adequadamente incorporada tanto na sociedade em geral quanto na academia, em particular”, conclui Oliveira.
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Letícia de Oliveira é mestre em Medicina da USP/RP e doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ambos na área de Neurofisiologia. Realizou seu pós-doutoramento no King’s College London (Inglaterra) na área de Neuroimagem Funcional e Machine Learning (sub-área da Inteligência Artificial). Atualmente é Professora Titular da Universidade Federal Fluminense. Foi Honorary Senior Research Associate na University College London entre 2017 e 2022. É Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ e foi coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Biomédicas (Fisiologia e Farmacologia) no período de 2014-2018. Atualmente é coordenadora da área biológicas da FAPERJ onde exerce ainda a presidência da Comissão de Equidade, Diversidade e Inclusão. É mãe de uma moça nascida em 2005.
Mirtes Garcia Pereira é mestre e doutora na área de neurociências e comportamento, ambos no programa de pós-graduação do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho-UFRJ. Realizou estagio sênior no Departamento de Psicologia da University of Maryland (Estados Unidos) na área de Neuroimagem Funcional. Atualmente é Professora Associada IV da Universidade Federal Fluminense. Desde 2006 faz parte do corpo docente permanente da Pós-graduação em Neurociências (HUAP) e atualmente é coordenadora do programa em Pós-graduação em Ciências Biomédicas (Fisiologia e Farmacologia). Coordena projetos de pesquisa que investigam a influência de estímulos emocionais sobre o comportamento e sobre a reatividade cerebral.
Sarah Rocha Alves é graduada em Fisioterapia pela Universidade Estácio de Sá (UNESA) no ano de 2020. Fez iniciação cientifica laboratório de Neurofisiologia do Comportamento pela Universidade Federal Fluminense, onde concluiu o mestrado em Ciências Biomédicas, pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Biomédicas (Fisiologia e Farmacologia) em 2023.