Notícia

“Sementes do mal”: racismo e estigmatização no Degase

Estudo da UFF analisa como práticas racistas reforçam desigualdade para jovens negros nas unidades socioeducativas do Rio de Janeiro

De acordo com o levantamento nacional de dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), 63% dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas privativas ou restritivas de liberdade (como semiliberdade e internação) são pardos ou negros, enquanto 22% são brancos. Apesar dos dados, o racismo nas unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase) do Rio de Janeiro revela-se em aspectos que vão além das estatísticas. É o que aponta a pesquisa de pós-doutorado “Suspeição generalizada: uma abordagem interseccional sobre expectativas e procedimentos de segurança na medida socioeducativa de internação” da  professora do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF), Juliana Vinuto Lima. 

Ao investigar a complexa relação entre profissionais de segurança e jovens negros internados nessas unidades, a pesquisadora expõe como práticas discriminatórias reforçam a estigmatização desses jovens e de suas famílias, algo que se infiltra nos discursos e ações cotidianas. Essa dinâmica cria um ciclo onde o racismo estrutural se reforça por meio das ações rotineiras de quem deveria proteger e educar.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que adolescentes entre 12 e 18 anos que cometam atos infracionais sejam submetidos a medidas socioeducativas, dentre as quais a mais severa prevista é a internação, e é nela que a docente se debruça para denunciar como as desigualdades raciais são construídas no tratamento de adolescentes que cumprem essa forma de responsabilização no estado do Rio de Janeiro.

Em vez de números, a investigação se baseia em relatos que revelam percepções e experiências subjetivas dos profissionais que atuam no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, possibilitando uma análise mais detalhada e contextualizada das práticas discriminatórias que afetam os adolescentes internados. Esse enfoque qualitativo permitiu explorar as sutilezas e complexidades das interações entre funcionários e internos, evidenciando como preconceitos e estigmas raciais influenciam as dinâmicas institucionais e reforçam desigualdades. 

A ideia de “racismo estrutural” é essencial para destrinchar as instituições que mantêm desigualdades, mesmo que os indivíduos não reconheçam as próprias práticas como racistas. “O conceito é útil porque ele foca no que as instituições produzem, independentemente de a pessoa admitir ou não que está sendo racista”, diz Vinuto. O estudo foca no termo pejorativo “sementes do mal”, usado por muitos agentes para descrever os adolescentes e as suas mães, como se o “mal” estivesse enraizado nas próprias pessoas. “Há uma ideia de que esses jovens e suas mães ‘semeiam o mal’, mais propriamente o crime. É uma visão essencialista que ignora fatores como a seletividade penal e a desigualdade”, relata a pesquisadora.

Raízes e essencialização na manutenção das desigualdades

O papel dessas mães é profundamente marcado por estereótipos de gênero e raça que reforçam a percepção racializada dos adolescentes. No contexto das unidades do Degase, elas são em sua maioria negras e de classes menos favorecidas, e, por isso, frequentemente vistas como as únicas responsáveis pelas “falhas” que levaram seus filhos a cometerem infrações. “Há uma expectativa de que a mãe deveria ter exercido um controle rígido sobre o comportamento dos filhos, e, quando isso não acontece, ela é retratada como ‘negligente’ ou ‘inadequada’”, aponta a professora. Esse julgamento social ignora as múltiplas influências que afetam esses jovens, como a ausência de oportunidades de lazer e de educação de qualidade.

Há ainda o contraste de gênero, já que os pais usualmente não são questionados sobre sua influência ou falta de envolvimento na vida dos filhos. Esse estigma duplo — de gênero e de raça —  enquadra-se no que a pesquisadora identifica como uma das várias maneiras pelas quais o sistema ignora as complexidades das realidades socioeconômicas e raciais que envolvem essas famílias. “O racismo e o gênero operam simultaneamente, pois mulheres negras ou mulheres pobres, em geral, estão submetidas a uma norma rígida de controle sobre seus corpos. Assim, se o filho comete alguma infração, a culpa recai evidentemente sobre a mãe, enquanto o papel do pai raramente é questionado”.

A essencialização racial é uma das dinâmicas que mais impactam a reprodução de desigualdades no sistema socioeducativo. Esse processo consiste em atribuir características “fixas” e “imodificáveis” a determinados grupos raciais, o que leva ao estigma de que a criminalidade é um traço inerente a jovens negros. Termos como “sementes do mal” representam essa visão, ao sugerirem que esses adolescentes são criminosos “por natureza”, e não que suas ações sejam fruto de circunstâncias sociais ou de escolhas que poderiam ser redirecionadas com apoio.

Para a docente, a essencialização racial desumaniza os jovens, pois ao serem tratados como “irremediavelmente maus”, eles perdem o direito à mudança e à reabilitação. “Não é qualquer adolescente que comete um ato infracional que será essencializado. Um adolescente branco, de classe média, que, por exemplo, se envolve com drogas na escola, será encaminhado a um psicólogo antes de ser considerado um ‘criminoso’. Ele é visto como um adolescente que cometeu um erro num determinado momento, e esse erro é tratado como algo reversível. Já um adolescente negro, pobre e de periferia, parece não ter o mesmo benefício: seu erro é visto como parte de sua ‘essência.’


Imagem de Eris da Pixabay

Resistências

A resistência por parte de alguns profissionais também chamou a atenção de Vinuto, especialmente na forma como muitos negam a existência do racismo ou o veem como uma questão irrelevante. Para esses profissionais, o racismo é frequentemente reduzido a uma “ideologia” ou algo “inventado” pelos antirracistas, uma postura que se ancora no mito da democracia racial – crença de que o Brasil é uma nação que superou o racismo – o que torna o tema “invisível” dentro das unidades, dificultando ainda mais o debate sobre o impacto das práticas racistas nas vidas dos adolescentes.

Por outro lado, a pesquisadora também encontrou uma resistência de natureza diferente: a de profissionais que lutam para garantir o respeito aos direitos dos jovens internados, frequentemente se posicionando contra a visão punitiva predominante. Os funcionários, que incluem psicólogos, pedagogos e assistentes sociais, trabalham para desmantelar a noção de que esses adolescentes são “casos perdidos” e se empenham em construir oportunidades de aprendizado e reabilitação. Por meio de uma resistência ativa, oferecem uma alternativa às práticas violentas e discriminatórias.

“Há um lado positivo da resistência, representado por profissionais que compreendem o contexto e, mesmo conscientes de serem minoria, buscam garantir os direitos dos adolescentes, tratando-os com dignidade e assegurando os direitos que todos deveriam ter. Esses profissionais resistem dentro da unidade à concepção comum que enxerga os adolescentes e suas famílias, especialmente as mães, como casos irreversíveis, incapazes de mudança. Assim, esses funcionários também promovem mudanças institucionais e, muitas vezes, transformam a vida desses adolescentes.”, afirma Vinuto.

A existência de diferentes grupos de resistência reflete as contradições do sistema: enquanto alguns negam a própria existência do racismo, outros o enfrentam diariamente, tentando oferecer uma abordagem mais justa e igualitária para jovens negros. 


Seminário amplia o debate e o entendimento sobre relações étnico-raciais. Fonte: instagram/degaserj

Socioeducação e as barreiras para mudanças

Há ainda uma disputa interna no Degase entre quem acredita que a internação deve ser uma forma de responsabilização educativa e quem vê a medida como punitiva. “A medida socioeducativa deveria visar à transformação, mas, muitas vezes, o que vemos é uma adesão ao controle e à repressão”, explica a professora. Ela ressalta a importância do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) do Degase, um coletivo criado em 2015 que visa combater o racismo institucional e outras práticas discriminatórias, como o machismo, a homofobia e a intolerância religiosa. “Eles são uma resistência importante, trazendo a discussão racial para fora da bolha e ajudando a desnaturalizar esses preconceitos.”

Uma mudança na abordagem do Degase e no sistema de justiça juvenil pode fazer diferença para reduzir as desigualdades raciais. Juliana Vinuto propõe que os esforços sejam concentrados em atividades educativas, culturais e de lazer, deixando o controle de segurança em segundo plano. Como exemplo, em uma iniciativa pioneira, o Degase, em parceria com o NEAB, lançou o programa “Degase Sem Discriminação” em 2022. Desde então, a ação busca sensibilizar socioeducandos e servidores para a eliminação de preconceitos por meio de cursos, seminários, oficinas e palestras.

Segundo Juliana Vinuto, é necessário incentivar o letramento racial dos funcionários e descentralizar os procedimentos de segurança, que muitas vezes são priorizados em detrimento de atividades educacionais, de saúde, cultura e lazer. “Isso não significa que a segurança não seja importante — todos precisam se sentir seguros —, mas, frequentemente, esses procedimentos buscam o controle mais do que a segurança em si, ou seja, a sensação de segurança. Dar prioridade à educação, ao lazer, à cultura e à profissionalização já representa um passo importante, pois resultará em menos violência e, consequentemente, em menos violência racial”.


Juliana Vinuto Lima é Professora adjunta do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais (GSO-UFF), do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS-UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PPGSD-UFF), todos da Universidade Federal Fluminense. Doutora em Sociologia (UFRJ), com estágio doutoral de um ano no Centre de Recherche Sociologique sur le Droit et les Institutions Pénales (CESDIP – França). Mestre em sociologia (USP) e bacharel em ciências sociais (USP). Coordenadora do do Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (NEGRA-UFF). Pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (LAESP-UFF) e do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU-UFRJ). Editora Adjunta da Dilemas – Revista de Estudos de Conflito e Controle Social. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase nos estudos sobre punição, controle social, medidas socioeducativas.

Pular para o conteúdo