O Brasil é o maior produtor e exportador de café no mundo. Foto: Matthew Henry/Burst.
A produção de café é uma das atividades agrícolas mais tradicionais do Brasil, e com ela surge um desafio: o destino dos resíduos gerados durante o processamento do grão. Uma pesquisa de mestrado conduzida pela professora da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Thais Matsue Uekane, e pela aluna Ingrid Pacheco, mestre em Desenvolvimento de Produtos para Saúde pela UFF, apresenta uma nova perspectiva para o aproveitamento desses sedimentos, em especial a casca do café. O estudo propõe que esses subprodutos sejam transformados em ingredientes alimentares com alto valor nutricional.
Investigação
A ideia para a pesquisa partiu da observação de Uekane durante visitas a fazendas produtoras de café, ao identificar, nesses locais, um enorme volume de resíduos descartados após o processo de coleta dos grãos usados na produção da bebida. “O café no Brasil é um produto muito importante e, durante o meu doutorado e o meu pós-doutorado, eu fui visitar uma fazenda que era parceira da minha orientadora. Vendo o processo de obtenção do fruto para fazer a bebida, percebi que havia muito resíduo gerado nesse processo. Então, eu comecei a pesquisar e acabei submetendo um projeto para verificar se esses resíduos poderiam se tornar um subproduto com características químicas e até nutricionais que pudessem agregar valor a algum outro tipo de alimento”, explica a professora.
O projeto de pesquisa intitulado “Avaliação do potencial econômico de resíduo sólido do processamento de café arábica do Estado do Rio de Janeiro” foi contemplado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) – processo E-26/010.00453/2019 – e se concentra na análise da casca e da polpa do café – subprodutos gerados durante o processamento por via seca e úmida. Após ser triturado, o extrato foi submetido a análises para determinar sua composição química. Os resultados revelaram que o farelo da casca do café é rico em fibras, apresentando até 50% de conteúdo fibroso — superior ao encontrado na farinha de trigo integral. Além disso, foram identificadas cerca de 10% de proteínas e um baixo teor de lipídios (aproximadamente 5%).
Benefícios
Para Uekane, um dos grandes trunfos do farelo de casca de café é seu conteúdo de compostos bioativos, como a cafeína e os ácidos clorogênicos, ambos com potencial antioxidante. Esses compostos podem ser liberados no organismo durante o processo digestivo, trazendo benefícios à saúde, como a melhoria da memória e o combate aos radicais livres, quando incorporados a alguns alimentos.
Processo da colheira à produção do farelo. Foto: Thais Uekane
Entretanto, o uso da casca do café como ingrediente alimentar precisa ser feito com cautela. O teor de cafeína, por exemplo, pode limitar seu consumo para grupos específicos, especialmente gestantes e crianças. Ainda assim, o farelo se mostra promissor como substituto de farinhas tradicionais e pode ser utilizado em biscoitos, macarrões, bebidas fermentadas e outros produtos alimentícios enriquecidos com fibras e antioxidantes.
Além dos benefícios nutricionais, o estudo destaca o impacto ambiental positivo. O Brasil, maior produtor mundial de café, gera uma enorme quantidade de resíduos que, na maior parte das vezes, é reutilizada como adubo, mas que também é descartada de forma inadequada. Iniciativas como essa, que buscam dar um destino nobre a esses subprodutos, podem contribuir para a sustentabilidade na cadeia produtiva do café, reduzindo o impacto ambiental e oferecendo novas oportunidades econômicas, especialmente para pequenos produtores.
Foto: Felipe Quijano
Tendência segura
A pesquisadora garante ainda que o processo de análise microbiológica envolveu a avaliação de microrganismos como Escherichia coli e Salmonella, e nenhum desses foi detectado, indicando que o produto pode ser seguro para consumo. Além disso, foram realizadas análises de bolores, leveduras e bacillus cereus em desdobramentos posteriores da pesquisa, com resultados também favoráveis quanto à segurança microbiológica do subproduto.
O reaproveitamento de resíduos na produção de alimentos tem se tornado uma tendência global e, cada vez mais, há estudos direcionados para essa prática. Como é o caso do Safety of dried coffee husk (cascara) from Coffea arabica L. as a Novel food pursuant to Regulation (EU) 2015/2283, análise encomendada pela União Europeia, que comprova a segurança desse produto como novo ingrediente alimentar. A investigação do grupo de pesquisa da UFF se alinha a esse movimento e espera-se que a indústria brasileira implemente essa inovação.
A professora Thais Matsue também ressalta o alinhamento do projeto com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) propostos pela Organização das Nações Unidas (ONU). “Os inúmeros efeitos positivos do desenvolvimento de alimentos reaproveitados também são destacados pelo possível cumprimento de 7 dos 17 ODS estipulados pela ONU, sendo eles erradicação da pobreza, fome zero e agricultura sustentável, saúde e bem-estar, energia limpa e acessível, trabalho decente e crescimento econômico, consumo e produção responsáveis, vida terrestre e como contribuição para economia circular”, conclui Uekane.
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Thais Matsue Uekane é graduada em Nutrição pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, com mestrado e doutorado em Ciência de Alimentos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e especialista em Segurança Alimentar e Qualidade Nutricional pela CEFETEQ (2008). Atualmente é professora Adjunta do Departamento de Bromatologia da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Ingrid da Silva Pacheco de Oliveira é graduada em Nutrição pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre em Desenvolvimento de Produtos para Saúde pela Universidade Federal Fluminense (UFF).