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Estudo analisa desinformação a partir do processo de criação do PL das fake news

Letramentos midiático, jornalístico e científico, checagem de notícias e regulamentação das redes sociais formam caminhos importantes no combate à desinformação
Foto: Getty Images

 

De forma inédita, a agenda do G20 vai contemplar o combate à desinformação e a promoção da integridade da informação. No Brasil, o PL 2630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, conhecido como ‘PL das Fake News’, foi objeto da tese de doutorado da pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM – UFF), Lucineide Magalhães de Matos, com orientação do professor Afonso De Albuquerque. O estudo aponta reflexões importantes sobre a demanda de controle da desinformação e a construção de projetos legislativos de caráter regulatório no Brasil, envolvendo, em especial, empresas de mídia. 

“Em minhas pesquisas observei que, desde 2017, houve um aumento no número de projetos de lei de combate à desinformação, o que evidencia a preocupação com a circulação de informações falsas. Em 2018, o fenômeno também foi perceptível nas eleições brasileiras. Assim surgiu o PL 2630/2020, que foi elaborado a partir de um esboço criado por deputados como Tabata Amaral e Felipe Rigoni, e teve rápida aprovação no Senado”, explica Matos. 

Contudo, a lei tem desafios a superar, como a falta de definição clara do que é desinformação, o que refletiu em uma tentativa de reagir ao problema sem entender sua complexidade. Essas limitações no PL levaram a uma reação instável e ao bloqueio do projeto na Câmara dos Deputados. 

Respostas contra a desinformação e atores vinculados

Observando essa realidade, a tese “A regulação de desinformação a partir de iniciativas legislativas no Brasil” conceitua a desinformação, como um termo guarda-chuva, sob o qual estão localizadas formas diversas de falseamento da verdade, a exemplo das fake news, que representam uma das categorias numa gama de possibilidades de preterir a verdade. 

Como respostas institucionais possíveis contra a desinformação, a pesquisa resume esquematicamente: três categorias possíveis; sete caminhos e atitudes a tomar; e cinco atores sociais envolvidos. Os dois primeiros caminhos são não regulatórios, enquanto o último tem como viés a perspectiva da responsabilidade das plataformas por meio de mecanismos de autorregulação por iniciativa própria ou por demanda motivadas por terceiros (governo, parlamento e judiciário):

Fonte: Tese de Doutorado “A regulação de desinformação a partir de iniciativas legislativas no Brasil: uma análise do PL 2630/2020”

Para a prevenção, os atores que se relacionam à educação contribuem para criar respostas em letramento para a sociedade, seja ele midiático, jornalístico ou científico. Quanto ao letramento midiático, a pesquisa demonstra, que além de existirem esforços importantes, há uma necessidade de políticas públicas mais orgânicas que envolvam a educação midiática e suas diversas vertentes, pois, apesar de hiper conectados, os usuários das mídias sociais nem sempre estão adequadamente preparados para ambientes digitais.

O letramento jornalístico, uma variante da alfabetização midiática, tem como diferencial o foco em conteúdos jornalísticos, seus processos e a autonomia das audiências para distinguir fatos de ficção. Por fim, o letramento científico envolve medidas de caráter educativo sobre informações científicas, que vêm da demanda por maior divulgação da ciência em contraponto à crescente de movimentos negacionistas, especialmente na última década.

Em relação à contestação, as agências de checagem dos fatos (fact-checking) destacam-se pela complexidade e ambiguidade quanto ao papel do jornalismo diante das práticas desinformativas. Dentre os mecanismos de combate à desinformação, as agências de fact-checking são recursos amplamente utilizados, mobilizando jornalistas em torno de uma proposta de verificação de informações. O trabalho dessas agências tem um caráter de contestar a desinformação ao qualificar se dada informação é “fato” ou “fake”. 

No âmbito da regulação, destaca-se a presença das plataformas digitais, através da autorregulação, movimento em que empresas privadas mantêm suas próprias ações regulatórias independente do Estado. “Em geral, as empresas estabelecem como lidar com conteúdo ilícito através de seus termos de uso, minimizando problemas como a capacidade de suas redes em afetar comportamentos ou desrespeitar as soberanias nacionais”, complementa Matos.

Também observa-se a presença do judiciário, por meio de ações judiciais, seja por parte das plataformas, do Estado ou de outros agentes. A pesquisa aponta que, no Brasil, o judiciário tem atuado de maneira a não beneficiar as redes, o que fica evidente em decisões sobre remoção de conteúdos e contas de usuários.

Por fim, a autorregulação regulada, conceito que fundamenta o PL 2630/2020, funciona como um modelo intermediário entre a autorregulação por empresas privadas e o modelo de regulação em que o Estado centraliza ações regulatórias por meio de uma Agência Regulatória Independente. Assim, o Estado determina a estrutura da regulação, mas não se envolve diretamente. Conforme aponta a pesquisa, esse modelo implica vantagens e desvantagens, sendo refutado principalmente por plataformas que tem como agenda o direito à governança de suas redes sem qualquer tipo de intervenção.

“Plataformas como Meta, X, Google são, antes de tudo, empresas privadas, com sede no exterior, que agregam poder econômico e controle sobre tecnologias de comunicação online. Sua condição hegemônica de domínio sobre o consumo e circulação, sua posição geopolítica e modelo econômico privilegiam o modelo de autorregulação como pilar particular na moderação de conteúdo online. A ideia de adoção de outro paradigma de regulação, como a autorregulação regulada, tende a ser compreendida como uma quebra em suas ações de moderação”, completa a pesquisadora. 

Atores sociais do processo de construção do PL

Em linhas gerais, o PL 2630/2020 pode ser lido a partir de dois marcos: o Senado Federal e a Câmara dos Deputados. Segundo Matos, “os parlamentares vêm contribuindo na forma de interposições, questionamentos e problematizações sobre o PL, mas há também as vozes externas ao legislativo que, dada suas características particulares, ampliam o debate no cenário nacional. Muito embora o tema se imponha por sua complexidade, as demandas exógenas por um debate mais aberto fez que a discussão ganhasse maior visibilidade ao longo do processo, tanto no Senado em 2020, quanto na Câmara, atualmente”.

Como exemplo, a tese da pesquisadora identificou instituições de produção de conhecimento, como universidades, que trazem para o debate pesquisas relevantes acerca das possíveis consequências sociais vinculadas à circulação de desinformação. “Organizações não governamentais vinculadas à comunicação e às instituições da sociedade civil, igualmente passaram a debater o tema e sugerir alterações e inclusões de pontos. Não se pode deixar de mencionar organizações da mídia brasileira que, além de articularem um debate com o legislativo, transformaram a discussão do ‘PL das Fake News’ em tema significativo para a pauta jornalística”, acrescenta. 

Além disso, a ação das plataformas como agentes do debate se configuraram com o que é chamado de ‘lobby das big techs’ no legislativo. Para Lucineide, esse debate precisa ser mais aprofundado para que se compreenda quais representantes se aproximam mais dessas empresas em termos de argumentos, tais como o direito irrestrito à liberdade de expressão. “Vale pensar que alguns mecanismos foram e são importantes para que esses atores pudessem propor ideias e problematizar coletivamente o tema de forma mais ampliada, como no exemplo dos Grupos de Trabalho e audiências públicas observadas ao longo dos quatro anos de debate sobre o PL”.

Ao reconhecerem suas responsabilidades, as plataformas já utilizam alguns mecanismos de autorregulação, como a exclusão de postagens  e a verificação de fatos. No entanto, esses métodos frequentemente não são suficientes devido ao volume massivo de conteúdo e à priorização do engajamento e do lucro sobre a qualidade da informação. O PL propõe uma abordagem que inclui a necessidade de ordens judiciais para remoção de conteúdos e uma maior transparência nas práticas de moderação, mas enfrenta desafios em termos de implementação e escalabilidade.

Matos acredita que o maior problema é que as plataformas já estão cientes de que a regulação não é uma novidade, visto que outros países já implementaram medidas semelhantes. “Portanto, é notável que a regulamentação dessas redes digitais é tão importante quanto a da mídia tradicional, mas é afetada por lobbies e interesses diversos que influenciam na eficácia da legislação proposta”. 

A pesquisadora enfatiza que a responsabilização de plataformas digitais sobre conteúdo é  um caminho na direção de uma resposta à propagação de conteúdos danosos, além de afirmar as soberanias nacionais de seus Estados perante provedores de aplicações. “As empresas precisam reconhecer que não são autônomas para ditar as regras de um país. O conflito entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e as plataformas digitais no Brasil, por exemplo, reflete a tentativa dos empresários de imporem sua visão política e econômica acima da soberania das leis dos países”, aponta Matos

Considerando esse cenário, é fundamental que os usuários compreendam que estar em uma rede social não significa estar em um espaço separado da sociedade. “Projetos como o PL 2630/2020 e o modelo de autorregulação regulada podem significar um caminho em relação à exigência de maior transparência sobre moderação de conteúdo para minimizar a circulação de desinformação”, analisa a pesquisadora.

Sociedade da desinformação e regulamentação de redes sociais

Lucineide aponta que a abordagem na regulação de plataformas precisa ser mais do que apenas reativa e deve envolver um entendimento mais profundo das dinâmicas sociais e políticas que contribuem para a propagação da desinformação. Essa regulamentação pode ajudar a mitigar o impacto das fake news, e do que hoje conhecemos como ‘sociedade da desinformação’.

A sociedade da desinformação é caracterizada pela predominância da disseminação e consumo de informações incorretas ou enganosas, amplificadas pelas tecnologias digitais e redes sociais. “Em vez de uma sociedade da informação, onde se espera um acesso amplo e qualificado ao conhecimento, estamos observando uma sociedade na qual a desinformação se espalha rapidamente, muitas vezes superando informações verdadeiras, devido ao seu apelo emocional e viralidade. Isso cria um ambiente em que a qualidade da informação é frequentemente prejudicada, e distinguir o verdadeiro do falso torna-se um desafio crescente”, aponta a pesquisadora.

Nesse contexto, Matos acredita que a regulação das plataformas pode ser eficaz porque trata diretamente do meio onde a desinformação circula. “Essa regulamentação pode envolver a imposição de responsabilidades claras e a promoção de maior transparência em suas práticas de moderação. Isso abrange não só a responsabilidade pelo conteúdo, mas também aspectos econômicos e operacionais que afetam a forma como a desinformação é tratada. Regulações mais amplas que abordam a operação das plataformas podem criar um ambiente mais controlado e responsivo para lidar com a desinformação”.

Embora o projeto de Lei esteja travado na Câmara atualmente, as discussões sobre regulação de plataformas continuam porque se tornaram um imperativo para os tempos atuais. A expectativa é que, se o debate sobre a regulação das plataformas ganhar mais espaço público, o projeto avance mais rapidamente. “O desenvolvimento de uma legislação eficaz que aborde as questões relacionadas à regulação das plataformas será crucial para lidar com a desinformação de maneira abrangente, mas, principalmente, para aprofundar a discussão sobre soberania digital”, conclui a pesquisadora.

UFF é referência no combate à desinformação

A UFF é reconhecida como um centro de excelência acadêmica e científica no debate de desinformação, tendo um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Disputas e Soberania Informacional (DSI), cujo objetivo fundamental é propor políticas para lidar com o fenômeno da desinformação. Composto por uma equipe multidisciplinar de investigadores brasileiros e estrangeiros, o INCT-DSI pretende articular e concretizar uma rede capaz de dotar o Brasil de uma política voltada a garantir a soberania informacional.

Além disso, a universidade inaugurou este ano o Centro de Referência para o Ensino do Combate à Desinformação (Codes). Coordenado pelo professor Afonso de Albuquerque e pela professora Thaiane Oliveira, ambos do PPGCOM-UFF, o objetivo do Codes é elaborar um currículo para os estudos de desinformação no Brasil, através da formulação de diretrizes para a oferta de cursos sobre desinformação, discursos de ódio e teorias da conspiração, buscando respaldo teórico em pesquisas brasileiras, com o intuito de valorizar uma perspectiva soberana sobre o tema.

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Lucineide Magalhães de Matos é Doutora e Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC/UFF) com ênfase em combate à desinformação.

Afonso de Albuquerque é Professor Titular do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Fluminense. Coordenador do INCT-DSI (Disputas e Soberanias Informacionais). 

 

Por Fernanda Nunes
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