O Laboratório Mulheres Indígenas na Wikipédia contribui de forma contínua para a difusão do conhecimento sobre as mulheres indígenas na enciclopédia. Foto: FAPESP
O Dia Internacional da Mulher Indígena, comemorado em 5 de setembro, é uma data criada para reconhecer e valorizar o papel significativo dessas mulheres para suas comunidades e para a sociedade global, especialmente na preservação de suas culturas, línguas e tradições milenares. A data foi instituída em 1983, durante o II Encontro de Organizações e Movimentos da América, em Tihuanacu, na Bolívia, em memória de Bartolina Sisa, mulher Quéchua morta durante a rebelião anticolonial de Túpaj Katari, no Alto Peru, região atual da Bolívia, nos anos de 1780.
Na Universidade Federal Fluminense (UFF), o Laboratório Mulheres Indígenas na Wikipédia fundado em 2020, sublinha a importância de fortalecer a identidade cultural e os direitos dos povos indígenas e tem como objetivo a contínua contribuição para a difusão do conhecimento acadêmico sobre as mulheres indígenas na Wikipédia, com ênfase no período colonial. O projeto se originou a partir das pesquisas da professora do Instituto de História (IHT/UFF), Elisa Fruhauf Garcia, coordenadora do projeto, que mostra como a tecnologia pode ser aplicada para enfrentar desafios e promover mudanças positivas na sociedade.
A Wikipédia funciona como um movimento social em processo de edição coletiva, colaborativa e gratuita. Na plataforma, um verbete refere-se a um artigo ou página que contém informações sobre um tópico específico e cada verbete representa uma entrada na enciclopédia e pode cobrir uma vasta gama de assuntos, desde figuras históricas e eventos até conceitos científicos e culturais. “As atividades práticas do projeto abrangem tanto a criação de novos verbetes quanto a inclusão de informações nos artigos já existentes. Já as atividades teóricas envolvem discussões sobre o movimento Wikipedia e a divulgação científica na internet”.
Na idealização do projeto, a professora conta que a enciclopédia digital apareceu como uma boa oportunidade para mobilizar os alunos no contexto da pandemia. “Junto com os alunos, identificamos uma demanda da sociedade por informações sobre as mulheres indígenas, que eram difíceis de encontrar, apesar de possuirmos essas informações devido aos anos de pesquisa nessa temática. Assim, decidimos centrar o laboratório nas mulheres indígenas, embora tenhamos editado também alguns verbetes sobre temas relacionados à história indígena como um todo. Então, o Laboratório se formou a partir da busca em conectar essa edição com as pesquisas sobre as mulheres indígenas no período colonial na região do Rio da Prata, desenvolvidas no nosso programa de pós-graduação”.
Edição de verbetes na Wikipédia e a história das lutas de mulheres
Muitos grupos indígenas desempenharam papéis importantes na construção da sociedade colonial e na história do Brasil, mas sua presença foi ignorada. Considerando essa negligência na historiografia nacional, a professora acrescenta que, muitas vezes, os brasileiros imaginam os indígenas como figuras distantes e com culturas radicalmente diferentes, o que pode ser verdade para alguns povos, mas não para todos.
“Um exemplo é o verbete que criamos sobre Violante do Céu, mulher indígena de Niterói que desempenhou um papel significativo na fundação de uma igreja local. Niterói associa sua origem à história indígena através de Araribóia, mas a presença indígena na cidade é muito maior do que isso. Adicionamos informações sobre a Violante do Céu na Wikipédia, incluindo a página da igreja associada, para destacar essa conexão. Outro verbete que incluímos é sobre Glicéria Tupinambá, uma artista e professora indígena. Após criar o verbete, entramos em contato com Glicéria para revisar e validar a narrativa antes da publicação. Mais um verbete que pode exemplificar nosso trabalho é sobre o Manto Tupinambá, que foi criado há algum tempo, mas tinha apenas um parágrafo e uma imagem. Era um verbete extremamente sucinto, e a edição feita pelo Laboratório foi bastante significativa. Agora a página é consultada por jornalistas e professores”, conta Garcia.
Print do verbete sobre o Manto Tupinambá, expandido pelo Laboratório Mulheres Indígenas na Wikipédia. Fonte: Wikipédia
O projeto também incluiu dois verbetes que não são sobre mulheres indígenas, mas que fizeram parte de oficinas importantes. “Um deles é o verbete de Maria Filipa de Oliveira, uma mulher negra importante no processo de independência da Bahia. A página foi editada a partir de uma demanda de uma oficina que ministramos na Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia. O outro verbete é sobre o Pullman Strike, que foi o primeiro verbete em inglês que editamos, a partir de uma demanda dos participantes de uma oficina que realizamos na Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. O Pullman Strike é uma das greves mais importantes dos Estados Unidos e foi iniciada por uma mulher, Jennie Curtis, informação que não constava no verbete original. Assim, atendemos a essa demanda e inserimos a informação” relata a docente.
A edição de verbetes na Wikipédia também é uma ferramenta poderosa para a formação acadêmica e profissional dos alunos do Laboratório. “Eles aprendem habilidades práticas durante a pesquisa e a edição dos verbetes, além de desenvolver a capacidade de comunicar a história para um público mais amplo. Muitas vezes, a linguagem acadêmica é especializada e não acessível ao grande público; portanto, os alunos aprendem a adaptar a comunicação para uma audiência diversificada. Oferecemos oficinas sobre construção de narrativas que incluam as mulheres indígenas na nossa história e trabalhamos com diferentes temporalidades. Além disso, os alunos realizam pesquisas documentais, fazem visitas de campo e trabalham com patrimônio e pesquisa iconográfica, o que proporciona uma experiência prática abrangente. Os verbetes também são utilizados como material didático, o que ajuda os alunos a se prepararem para a docência”, pontua Garcia.
A professora explica que é fundamental ter uma comunidade de editores que monitore e contribua para a qualidade dos verbetes. “No caso do laboratório, editamos a Wikipédia em português, que infelizmente tem uma qualidade inferior à enciclopédia em inglês, refletindo o número menor de editores no Brasil. A parceria com o Wiki Movimento Brasil tem sido crucial, pois eles ajudam na melhoria da qualidade dos verbetes, oferecem oficinas, esclarecem dúvidas e colaboram na resolução de disputas. A presença de uma comunidade engajada é essencial para manter e melhorar a qualidade do conteúdo na Wikipédia”.
Reconhecimento das contribuições das mulheres indígenas na sociedade e na cultura
Os estudos da professora Elisa sobre o período colonial se conectam diretamente ao Dia Internacional da Mulher Indígena ao lembrar das personagens que muitas vezes não foram registradas na historiografia. “Também faz uma conexão importante com a memória, pois hoje em dia há uma presença significativa das mulheres indígenas como agentes políticos em suas comunidades e no cenário nacional”, aponta a docente.
Garcia acrescenta que os conhecimentos das mulheres indígenas foram fundamentais em diferentes momentos da história. “Por exemplo, a produção da farinha de mandioca, um alimento crucial tanto para as populações indígenas quanto para o estabelecimento da sociedade colonial no Brasil, era um conhecimento das mulheres indígenas, que foi incorporado pela sociedade colonial, muitas vezes desconsiderando a contribuição dessas mulheres. A importância histórica dessas mulheres não foi reconhecida pela historiografia ou foi reconhecida de maneira muito limitada, com uma perspectiva de gênero que associava as mulheres principalmente à maternidade e ao espaço doméstico, quando na verdade elas estavam ativamente presentes no espaço público, participando de decisões e conflitos de diversas formas”.
A tentativa histórica de exclusão das mulheres, tanto em relação às tecnologias que possuíam quanto à sua importância política e nas decisões históricas, é presente nas fontes e na historiografia. Nesse sentido, a historiadora destaca a importância de investir em pesquisas para reposicionar essas mulheres na narrativa histórica. “É essencial lembrar que a luta delas nunca cessou. Mesmo que as tentativas de alijamento fossem significativas, essas mulheres continuaram a afirmar suas concepções de mundo e sua presença. Portanto, mesmo que a historiografia tenha tentado minimizá-las, as informações sobre essas mulheres ainda existem, embora de forma fragmentada, porque elas lutaram para fazer valer suas perspectivas e visões de história.”
Glicéria Tupinambá, também conhecida como Célia Tupinambá. Foto: ArtReview
Nesse contexto, a professora destaca que na Wikipédia, assim como em qualquer outra plataforma, existem vieses presentes na sociedade, como o viés colonial e a sub-representação das mulheres. Para combater isso, o laboratório combina a pesquisa acadêmica com a edição de verbetes. “Utilizamos material de pesquisa recente do programa de pós-graduação em história da UFF, que tem uma tradição na pesquisa da história indígena e uma projeção nacional e internacional. Também buscamos aproximar-nos das comunidades indígenas para garantir a precisão e representatividade dos verbetes”.
A iniciativa tem recebido um retorno positivo em relação aos verbetes criados e à divulgação científica. “Nossos verbetes têm sido citados por lideranças indígenas e observamos um aumento significativo nos acessos. Recentemente, lançamos um Instagram para divulgar nossos verbetes e aumentar o alcance do nosso trabalho. O vídeo sobre o verbete de Glicéria Tupinambá, produzido por alunos da graduação, teve mais de 10.000 acessos e mostra o interesse da sociedade por esses temas. Pretendemos expandir a disponibilidade de conhecimento na Wikipédia e criar novos verbetes que atendam às necessidades informativas da sociedade e da academia”, conclui.
Mais informações podem ser obtidas na página do projeto na Wikiversidade: https://w.wiki/7zyV ou no instagram: instagram.com/mulheresindigenasnawiki
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Elisa Frühauf Garcia é Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (2007), onde é professora de história da América colonial desde 2009. Atua também no programa de pós-graduação em história da mesma instituição (PPGH/UFF), orientando teses e dissertações sobre as relações entre as populações nativas e os impérios coloniais europeus. Realizou estágios de pós-doutorado na Universidade Estadual de Campinas (2007-2009) e no Conselho Superior de Investigaciones Científicas/CSIC-Madrid (2015). Desenvolveu pesquisa em várias instituições na Europa e nos Estados Unidos, recebendo financiamento da Fundación Carolina, Newberry Library, Max Planck Institute for Legal History and Legal Theory e The Lemann Center for Brazilian Studies (University of Illinois). É pesquisadora do CNPq e Cientista Nosso Estado da FAPERJ. Sua tese, As diversas formas de ser índio: políticas indígenas e políticas indigenistas no extremo sul da América portuguesa, foi premiada pelo Arquivo Nacional e publicada em 2009. É autora de artigos em livros e revistas sobre a história indígena nos impérios ibéricos, especialmente nas áreas de fronteira na bacia do rio da Prata. Seus interesses vinculam-se à história das populações nativas e temas correlatos, atualmente com ênfase nas mulheres indígenas.