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A cultura dos memes no Brasil

Professor comenta a importância dos memes na esfera pública e política da cultura digital brasileira nos dias atuais
#PraTodosVerem Uma montagem com seis fotos em que a personagem Nazaré, uma mulher branca de cabelos loiros exibe uma feição de dúvida. Vários cálculos estão descritos em cada imagem do rosto da mulher, representando, em geral, a ideia de confusão ou dificuldade de compreensão

“O meme pode ser entendido como uma linguagem midiática típica do mundo contemporâneo, nativa digital, e que tem um forte entrelaçamento com a nossa própria experiência de sociabilidade”. Esse é o conceito de memes descrito por Viktor Chagas, professor do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (IACS-UFF) e coordenador do #MUSEUdeMEMES. Para o pesquisador, a cultura do meme está intimamente associada ao comportamento em determinadas redes sociais .“Quando falamos em uma cultura do meme, estamos relacionando-a com a cultura de plataforma, ou seja, aquela que desenvolvemos enquanto usuários de determinadas redes, ou de um conjunto delas, em nossa experiência digital”, acrescenta.

Para o docente, estudar esse conteúdo é fundamental para compreender as dinâmicas contemporâneas, as trocas de experiências culturais e a construção de diálogos e referências comuns. “Os memes têm um forte potencial para engajar as pessoas. A comunicação através deles, sejam bem-humorados ou sérios, possui essa qualidade porque é uma linguagem extremamente sintética que condensa muita informação em um espaço muito curto. O meme te obriga a ter um conjunto de referências à flor da pele, aciona muita informação em um espaço muito curto e permite que as pessoas se comuniquem de maneira ágil”.

Chagas conta que os memes são frequentemente vistos como um objeto fútil ou desimportante, associado a uma dimensão passageira da cultura, contudo, entendê-los como objeto de pesquisa amplia a percepção da profundidade dessa linguagem. “Através dos memes, comunidades de usuários, como as comunidades de fãs, desenvolvem narrativas próprias, percepções sobre a realidade, e se expressam culturalmente, ou seja, apesar de vista como uma linguagem superficial, o meme contém um conjunto de camadas semânticas superpostas que podem não ser imediatamente evidentes”. 

Além disso, existem múltiplas culturas de memes, cada uma atendendo a um conjunto de aspectos e dimensões que as próprias plataformas são capazes de prover. Essa dimensão transcultural e interdisciplinar também possui um conjunto de singularidades da face cultural e de plataforma que se desenvolvem na experiência cotidiana.

“Isso significa que a cultura de memes no Facebook é diferente do que é 4chan, no Tumblr, no X (antigo Twitter), etc. Além disso, há uma forte associação com a própria linguagem do humor. Diferentes culturas desenvolvem linguagens do humor muito distintas entre si e a cultura dos memes também reflete essas especificidades culturais, o que torna essa cultura diferente em cada país”, explica Chagas.

Função na esfera pública

Os memes, como toda linguagem comunicacional, não são nem do bem nem do mal. Eles podem ser usados tanto para contestar uma autoridade pública repressora quanto para reprimir. “Podem evocar protestos, mobilizar pessoas para demandas e exercer pressão sobre o poder público, mas também podem servir como instrumento de reforço a estereótipos políticos e culturais. Temos muitos exemplos de memes racistas, misóginos, homofóbicos, com alto teor ideológico ou que propagam desinformação e discurso de ódio”, explica o pesquisador.

Existem diferentes funções dos memes, como a função persuasiva, que ajuda a convencer o outro de alguma coisa, ou o meme como instrumento de discussão pública, usado para sociabilidade e troca de interações, geralmente tendo uma figura política como personagem. Nesse contexto, o pesquisador explica que, ao compartilhar, produzir ou responder memes em um debate específico, cria-se um processo de resumo e significação desse objeto. 

“Isso aproxima mais as pessoas do debate e permite que aquelas que antes não tinham acesso ao debate público ou político, por considerarem o espaço restritivo, possam participar. Então, os memes podem democratizar a experiência comunicativa, partindo do ponto de vista de que faz com que as pessoas se sintam mais à vontade para conversar através deles. Assim, a esfera pública se torna mais permeada por uma camada populacional que antes não costumava frequentar o debate público”, acrescenta Chagas. 

Meme recente feito por internautas interagindo com o posicionamento do Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, quanto a sua política de taxação de compras. Créditos: Reprodução da Internet

Chagas aponta que o papel do meme como ferramenta democratizadora já é um grande avanço em relação ao debate público restritivo que tínhamos até então, assim, esse fenômeno repensa como o debate político ganhou uma amplitude inédita. “Esse fato, no entanto, não é isento de problemas. O meme pode ser a porta de entrada para esses debates da esfera pública, mas não devemos ficar apenas nele. Um exemplo seria a maior participação popular nos debates de atores sociais que resumem os seus argumentos em memes, mesmo sem possuírem um conhecimento aprofundado sobre o tema. Esse é um problema que a cultura dos memes pode trazer. Outro ponto de preocupação é o uso da liberdade de publicação para alimentar discursos de ódio e promover desinformação”, adiciona.

Meme como democratizador midiático e político

Ao tratar sobre o letramento, é importante distinguir duas dimensões que muitas vezes andam juntas, mas precisam ser pensadas dentro de suas particularidades. A primeira é a ideia de um letramento midiático, ou seja, o domínio da habilidade de reflexão crítica das informações consumidas através da mídia como uma das formas para a democratização do conhecimento. “Os memes são um gênero que nos desafiam a uma nova experiência de letramento midiático. Não me refiro às técnicas de produção de memes, mas à imaginação cultural desse letramento. Eles nos desafiam a saber ler aquele formato, e entender que existem diferentes formas de fazer memes, como por exemplo, o meme macro, que é uma imagem com uma legenda em cima e outra embaixo, com uma tipografia própria, cor e borda.”, explica 

Exemplo visual de meme macro feito com frase associada à Bela Gil. Créditos: Reprodução da internet

Existem vários outros formatos de memes que nem sempre precisam da própria imagem. “Por exemplo, o meme da Bela Gil, é uma fórmula frasal que remonta a um episódio específico em que ela sugeriu escovar os dentes com cúrcuma. Mesmo sem saber a origem, as pessoas reconhecem a estrutura do meme. Essa é a experiência de letramento midiático que os memes nos impõem”.

A segunda é a dimensão do letramento político que os memes políticos impõem, o que explicita o papel do meme enquanto repertório político. “Essa experiência envolve o fato de que muitas pessoas estão chegando agora no universo do debate político, muitas vezes através dos memes. Isso democratiza a comunicação política, mas também exige um aprofundamento maior para que realmente façamos parte da experiência participativa da democracia”. 

Meme que surgiu a partir de debate político entre o candidato Padre Kelmon e a candidata Soraya Thronicke na corrida presidencial de 2022. Créditos: #MuseuDosMemes

O professor destaca que os memes são uma linguagem que, como outras, podem ser usados tanto para reivindicar conquistas quanto como instrumento de dominação. “Não à toa vemos a extrema direita transnacional usando a linguagem dos memes em sua comunicação com o público. Isso não retira a importância dos memes como repertório ativista, mas devemos estar atentos às suas contrapartidas”.

Chagas é escritor da coletânea “A cultura do meme”, que teve sua segunda edição publicada em julho. O livro é fruto de financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). A coletânea é resultado de um acumulado de mais de dez anos de investigações desenvolvidas pelo Laboratório de Pesquisa em Comunicação, Culturas Políticas e Economias da Colaboração (coLAB) e pelo projeto #MUSEUdeMEMES, ambos associados ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD).

“Esse livro, “A Cultura dos Memes no Brasil: agendas e desafios de pesquisa sobre uma das únicas instituições que se mantêm de pé no país”, é uma continuação de um livro que organizei em 2020, também publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia (Edufba), com o título ‘A Cultura dos Memes: aspectos sociológicos e dimensões políticas de um fenômeno do mundo digital’. Naquela ocasião, reunimos textos, artigos já publicados e inéditos, todos pela primeira vez traduzidos para português, com um caráter introdutório para entender esse universo. Tínhamos autores de várias partes do mundo, como Limor Shifman, Kate Miltner, Whitney Phillips, Ryan Milner, entre outros. O primeiro volume foi um sucesso, por conta disso, comecei a pensar em um segundo focado em autores brasileiros ou que trabalham sobre a cultura brasileira. Com nomes como Jana Viscardi, Tarcízio Silva, Adriana Amaral, a segunda obra prestigia autores que participaram da cultura dos memes, estudaram e estão publicando novos textos sobre o tema. É uma contribuição significativa para a compreensão da cultura dos memes no Brasil”, acrescenta o professor.

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Viktor Chagas é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF). É bolsista de produtividade em pesquisa (PQ-2) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). É membro associado do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). Foi bolsista CNPq de Pós-Doutorado Junior em Comunicação e Cultura pela UFBA. Doutor em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc-FGV), dedica-se a investigações na área da Comunicação Política, em especial na interface entre Internet e Culturas Políticas, Economia Política da Informação, e Jornalismo e Política. Em 2014, foi contemplado com o prêmio de melhor tese de doutorado pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), além de outros prêmios como pesquisador e orientador acadêmico. Foi secretário executivo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação Política (Compolítica) na gestão 2019-2021 e é editor-chefe do periódico científico Revista Compolítica. É líder do grupo de pesquisa coLAB/UFF, e coordenador do projeto de extensão #MUSEUdeMEMES. Foi ainda coordenador do curso de graduação em Estudos de Mídia da UFF (2013-2017). E, anteriormente, membro (2006-2012) e coordenador (2009-2012) da equipe editorial do projeto Overmundo, e coordenador-em-exercício e coordenador editorial (2012-2013) do projeto Viva Favela.

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