Em abril, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu por unanimidade manter a proibição da comercialização dos cigarros eletrônicos, também conhecidos como vapes, no Brasil. Apesar de serem facilmente comercializados online, a venda desses produtos é proibida desde 2009. A agência abriu uma consulta pública para coletar opiniões sobre a proibição. Dos mais de 13 mil participantes, 37% responderam que apoiam a decisão e 58% responderam que possuem outra opinião sobre o assunto. Quanto aos impactos da proibição, 58% avaliam como negativos, e 37% veem como positivos.
A agência também elaborou um relatório que analisou o impacto da proibição no Brasil nos últimos anos e os resultados da comercialização em outros países. Segundo o documento, os países com liberação registraram aumento do tabagismo entre os jovens. Outro ponto do relatório é a falta de estudos sobre os riscos e efeitos que os cigarros eletrônicos causam em longo prazo, podendo resultar em novas doenças. Essas considerações serviram para embasar a discussão e a decisão.
A indústria do tabaco criticou a proibição. De acordo com o setor, a permissão da venda e produção do produto no país irá reduzir os danos de saúde em virtude da substituição do cigarro tradicional pelos vapes. Os defensores da liberação ainda argumentam que o país teria um aumento na arrecadação de impostos com o comércio desse produto. Tramita no Senado Federal um projeto de lei, de autoria da senadora Soraya Thronicke (PODEMOS/MS), para legalizar a venda dos cigarros eletrônicos.
Para comentar sobre a decisão da Anvisa de manter a proibição do comércio de cigarros eletrônicos no Brasil, convidamos o professor de medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Programa de Apoio ao Tabagista da UFF, Leonardo Pessôa.
O que são e como funcionam os cigarros eletrônicos?
São dispositivos eletrônicos que disponibilizam quaisquer substâncias que você desejar. Ninguém sabe exatamente como eles funcionam, porque a gente não tem todas as informações. Vape, juul, e-cigarette e e-cigar, e cig, são dispositivos com formatos diferentes e mais essencialmente semelhantes, com uma bateria (geralmente de íon-lítio) e depósito onde é inserido um líquido a ser aquecido e inalado. Surgiu como algo que gerava e liberava apenas vapor e, posteriormente, viu-se continha nicotina entre outras substâncias. Imaginou-se que existiam 80 substâncias no seu interior, hoje sabemos que existem mais de 2 mil. Os vapes vão se demonstrando gradativamente mais semelhante ao cigarro convencional.
O cigarro eletrônico tem quase sempre embutido ou se pode inserir e-líquids, substâncias que a indústria cuidou para que tivesse odores e sabores diferentes e atraentes para a população jovem. Inserida internamente não tem combustão, portanto não tem monóxido de carbono e cheiro ruim. Isso ajudou a iludir até uma parcela pequena de médicos de que esses vapes poderiam trazer menos malefícios do que o cigarro convencional.
Há uma bateria em seu interior que libera ao mesmo tempo as substâncias que estão em seu conteúdo e as que auxiliam na produção de fumaça como propilenoglicol e glicerina vegetal. Mas a realidade é que, apesar de não causar combustão, com os estudos que vão se avolumando, nós estamos observando que o cigarro eletrônico tem substâncias tão danosas quanto o cigarro convencional.
Formas tidas como modernas e seguras têm acontecido desde a década de 60. Entre os mais velhos dessa década, existia a informação de que usar piteiras tornava o cigarro mais seguro. Antes ainda, o cigarro nem filtro tinha. E pensou-se que adicionar filtro, garantia qualidade e segurança. No final da década de 70, surgiram os cigarros lights, nos dando a noção de que, com menos nicotina e alcatrão, eles causariam menos malefícios, hoje a gente sabe que isso também é um engodo. Quando surge o cigarro eletrônico ou com a retomada do Narguilê, nós pneumologistas, e mais próximos do tratamento do tabagismo, sabemos que a nossa questão é provar mais uma vez que não há forma segura do uso do tabaco.
Por que a nicotina é a substância mais viciante?
A nicotina ao chegar ao cérebro se encaixa nos receptores de acetilcolina, onde liberam substâncias de relaxamento e prazer, como a dopamina, por exemplo. Esse prazer por si só já pode gerar dependência. É importante ressaltar que a nicotina libera dopamina numa quantidade imensa e o nosso corpo, quando recebe uma grande quantidade de dopamina produzida indiretamente, por uma substância vinda de fora, reduz ou até para de produzi-la nos seus níveis normais.
Quando se aumenta gradativamente a quantidade de cigarros fumados, e com isso a quantidade de dopamina, o vício aumenta. O golpe de misericórdia é quando o fumante se dá conta de que o cigarro é uma dependência que pode causar malefícios e decide interromper o fornecimento de dopamina via cigarro. A partir daí o fumante entra em abstinência, porque não produz mais dopamina por conta própria e o cérebro precisa de um tempo até voltar a produzir. Com isso, surgem uma série de sintomas, como mal-estar, perda de memória, ansiedade, irritabilidade, aumento da oralidade, insônia e taquicardia. Felizmente, a indústria farmacêutica tem medicações para equilibrar isso ao menos parcialmente, às vezes totalmente, para que o paciente não desenvolva a síndrome de abstinência em sua plenitude e, assim, aumente sua chance de parar de fumar.
No tratamento da dependência química que o cigarro convencional ou o cigarro eletrônico causam, sempre estão associadas às dependências psíquicas e comportamentais. Por isso, a medicação para tratamento do tabagismo não é tudo, é só um terço do tratamento. Para tratar as outras dependências nós não temos pílulas, temos a Terapia Cognitiva Comportamental.
O tabagismo está no rol das doenças psiquiátricas, por dependência, e não no rol das doenças pneumológicas, como asma, doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), pneumonia e tuberculose. Apesar disso, a pneumologia se mantém atualizada, porque o tabaco está relacionado a mais de 55 doenças, como infarto, acidente vascular cerebral (AVC), e diversos tipos de câncer, principalmente o câncer de pulmão.
O uso do tabaco vai, no mínimo, interferir na qualidade e provavelmente no tempo de vida da pessoa. O cigarro eletrônico não faz nada diferente nesse aspecto, causando dependência da mesma forma, pelo mesmo mecanismo. Hoje, os fumantes de cigarro eletrônico, em geral, são jovens que estão na fase pré-contemplativa do tabagismo, na qual não têm ciência exata do risco, do inconveniente e dos perigos associados a esses dispositivos.
O que leva à popularização dos vapes, especialmente entre jovens?
O jovem tende a ter um estilo de vida que predispõe ao tabagismo. Eles têm amigos tabagistas, vão para a baladas, e, ainda que se predisponham a parar de fumar, chega a sexta-feira e ele não abre mão de sair. Além disso, durante o tratamento, é difícil convencê-los de que estamos tratando uma doença. Se ele tivesse tuberculose, por exemplo, não me perguntaria se poderia sair fumar, mas ele não entendeu que o tabagismo é uma doença e que o tratamento dura, no mínimo, três meses.
Ingerir álcool durante o tratamento também não é aconselhável, já que o paciente pode sentir que a bebida causa uma maior vontade de fumar. Essa é a parte da terapia cognitiva comportamental em que a gente troca essas ideias e dá dicas de mudanças de comportamento.
Qual dos cigarros é o mais prejudicial à saúde?
O cigarro convencional, ao contrário do eletrônico, não causa EVALI (sigla em inglês que significa ‘lesão pulmonar induzida por cigarro eletrônico’). Clinicamente, ela se assemelha a alguns quadros de Covid, inclusive com lesão na tomografia, ocupando todo o pulmão, além de dor torácica, dispneia e tosse. Não temos um tratamento para isso, o tratamento é de suporte, e, se o paciente não melhora espontaneamente, usamos corticóide e antibiótico, tratamento semelhante ao que se fazia na Covid grave. Não é raro que o paciente tenha sequelas e comprometimento pulmonar no futuro, que podem evoluir para a necessidade de transplante de pulmão e até levar a óbito.
O cigarro convencional também não explode, já o cigarro eletrônico pode explodir. Contudo, não há, até o momento, uma resposta ideal para essa pergunta. Não podemos individualizar a forma de uso do tabaco, mas sabemos que qualquer forma, em qualquer dose, expõe a pessoa a muitos riscos, ainda que eles sejam um pouco diferentes entre si.
Além da EVALI, existem outros casos de doenças graves relacionadas ao uso de cigarros eletrônicos?
Sim. Para quem já tem doenças, como a asma, por exemplo, pode ocorrer um agravamento desta patologia. Além disso, a vaporização e a forma que o cigarro eletrônico disponibiliza as suas substâncias geram nanopartículas, que são partículas muito pequenas que transpassam o pulmão e chegam ao coração. Já existem estudos científicos que demonstram a associação do uso do cigarro eletrônico com a angina e o infarto.
Sobre a DPOC, é preciso, no mínimo, 20 anos de cigarro convencional para a doença se estabelecer. Quanto ao cigarro eletrônico, ainda não sabemos em quanto tempo ele leva à doença, mas temos certeza que ele vai causar, porque tem as mesmas substâncias oxidantes do cigarro convencional que são as responsáveis pelo desenvolvimento dessa enfermidade.
A outra questão é que, com a quantidade imensa de nicotina, o cigarro eletrônico causa mais vício, mais dependência, mais uso e isso provavelmente vai fazer com que as doenças sejam mais precoces do que no cigarro convencional.
Também avançamos nas pesquisas científicas a fim de expor as substâncias existentes nesses dispositivos, como níquel, metal pesado e chumbo, que são cancerígenas. Além disso, temos provas da existência das substâncias que são responsáveis pelo cigarro convencional causar esse rol de 55 doenças. Então estamos seguros de que o resultado vai ser igual ou pior em relação aos cigarros eletrônicos.
Como outros países lidam com a popularização dos ‘vapes’?
Na Inglaterra, eles interpretaram que iam transformar os tabagistas de cigarro convencional em tabagistas de cigarro eletrônico, mas os ‘vapes’ são mais caros e mesmo na Inglaterra nem todo mundo é rico, então essa ideia não deu certo. Nos Estados Unidos, num primeiro momento houve a proibição, mas as empresas recorreram e conseguiram a liberação da venda.
O Brasil é signatário da Convenção-Quadro – tratado mundial contra o tabaco. Por isso, aqui é proibida a venda de cigarro a menores de idade, o tratamento é oferecido gratuitamente nos postos de saúde, é proibido fumar em ambientes públicos, todas essas medidas são pontos desse tratado. Tudo isso foi responsável pela redução de tabagistas de 33% para 9% e a gente ser exemplo mundial e, mais uma vez, a decisão da Anvisa de manter a proibição da venda de cigarros eletrônicos ecoa em todo mundo.
Em relação ao tabagismo, o Brasil é um exemplo a ser seguido, e outros países já consideram isso. Quando vou a um congresso internacional, é bem comum me perguntarem o que o Brasil fez pra conseguir implementar o que a Convenção-Quadro propõe.
O que a recente proibição pela Anvisa traz para o país? Acredita que pode gerar um mercado paralelo, como acontece com outras proibições no Brasil?
A proibição é fundamental para nossa saúde pública, para proteger os nossos jovens. A Agência documentou que vai reforçar a supervisão das vendas ilegais e estamos discutindo como coibir a venda pela internet, coisa que não faríamos se a proibição não tivesse sido mantida.
A discussão hoje é de tentar reverter o estrago ou reduzir os danos, fazendo com que qualquer aumento de fumantes que tenha acontecido por conta do cigarro eletrônico no Brasil seja o menor possível. O Brasil vinha em uma queda no número de tabagistas há 60 anos, mas, depois da Covid, esse número voltou a crescer. Alguns ex-tabagistas confinados voltaram a fumar, as recaídas não são incomuns em uso de drogas. Os índices de ansiedade e depressão aumentaram, então quem fumava passou a fumar mais e parte de quem tinha parado de fumar recaiu.
O cigarro eletrônico não foi um fenômeno que ficou apenas na pandemia. Quando experimentado, principalmente pelos jovens, quadruplica a chance de se migrar para o cigarro convencional em definitivo no futuro, além de causar uso duplo e retorno para o cigarro convencional.
Nesse contexto, a proibição da Anvisa é o mínimo para a medicina continuar a ter chance nessa luta contra o tabaco, contra o crescimento dos números de tabagismo e para a defesa da saúde pública.
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Projeto de tratamento ao tabagismo da UFF
A UFF possui tratamento ao tabagismo por meio do Programa de Apoio ao Tabagista, que é sediado no Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP), coordenado pelo professor Leonardo Pessôa. O programa existe desde 2009 e possui ótimos resultados, cerca de 70% dos pacientes interrompem o tabagismo de forma imediata após o tratamento de três meses e investigados um ano depois, 50% mantiveram-se não tabagistas.
O tratamento é feito com terapia cognitiva comportamental e medicação fornecida gratuitamente. Além disso, também é feito por encontros semanais em grupo, fazendo com que os pacientes se ajudem, estimulem e orientem mutuamente. Os pacientes podem ser encaminhados ao programa pela rede pública e por interconsultas dentro do HUAP.
Carlos Leonardo Carvalho Pessôa é professor do Departamento de Medicina Clínica na área de Pneumologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Tabagismo pela PUC/ RJ (2009). Concluiu pós-graduação (1997) e mestrado em Pneumologia (2001) pela UFF e também doutorado em Clínica Médica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007).