As hepatites virais matam mais de 3,5 mil pessoas por dia mundialmente, segundo relatório de 2024 divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com 1,3 milhão de mortes por ano. Em 2019, esse número era de 1,1 milhão. As estimativas apontam que existem 254 milhões de pessoas vivendo com hepatite B e 50 milhões com hepatite C. Segundo a Organização, as ferramentas de diagnóstico e cuidados evoluíram, mas esse avanço não foi observado na diminuição dos preços dos remédios, nas testagens e no tratamento.
Por serem infecções silenciosas, um grande problema que permeia o assunto das hepatites virais é a falta de diagnóstico. Para compreender melhor o tema, convidamos a professora Cláudia Lamarca Vitral, do Instituto Biomédico da Universidade Federal Fluminense (IB-UFF), que traz algumas recomendações para lidar com as hepatites, destacando a vacinação, a testagem e o diagnóstico precoce.
O que é a hepatite? Quais as diferenças entre os seus tipos?
A hepatite é a inflamação do fígado, que pode ser causada por vários agentes, incluindo infecciosos e não infecciosos, como álcool, drogas e certas condições autoimunes. Entre os agentes infecciosos, os principais causadores são os vírus designados pelas letras A, B, C, D e E. A maioria dos casos de hepatite atendidos em unidades de saúde são de origem viral. As diferenças entre os tipos de hepatite se baseiam nos vírus específicos que as causam. Hepatite A, B, C, D e E são causadas por diferentes vírus, cada um com suas características únicas de transmissão, evolução e tratamento.
As hepatites A e E apresentam transmissão entérica, enquanto que as hepatites B, C e D são transmitidas principalmente pela via parenteral, por meio de sangue e derivados do sangue, além da possibilidade de transmissão sexual, vertical e intrafamiliar, observadas especialmente na hepatite B. A infecção pelo vírus da hepatite B (HBV) e vírus da hepatite C (HCV), em uma parcela de indivíduos, pode persistir e tornar-se crônica e, podendo levar a complicações graves como cirrose e câncer de fígado, enquanto que a infecção pelo vírus da hepatite A (HAV) e hepatite E (HEV) é normalmente do tipo aguda e autolimitada. Já a infecção pelo vírus da hepatite D ou delta (HDV) ocorre apenas em indivíduos com história de infecção, presente ou passada, pelo HBV.
Quais são os efeitos da hepatite no corpo? Além disso, como diferenciar hepatite aguda e crônica, e como podemos detectar as pessoas cronicamente infectadas?
As hepatites são indiferenciáveis clinicamente. Por isso, a única maneira do médico estabelecer a causa diante de um paciente com hepatite é pelo diagnóstico laboratorial. É importante mencionar que existem dois tipos clínicos de hepatite: hepatite aguda e hepatite crônica. A hepatite aguda é aquela que apresenta uma história recente de infecção e pode ser causada por todos os vírus de hepatite. Na hepatite aguda, os sinais clássicos incluem icterícia, caracterizada pela coloração amarelada da pele e dos olhos devido ao depósito de bilirrubina. Além disso, a urina pode adquirir uma tonalidade escura, conhecida como colúria, enquanto as fezes podem clarear, tornando-se esbranquiçadas, um quadro chamado de acolia fecal. Os sintomas também envolvem mal-estar geral, como náusea, enjoo e dor no lado direito superior do abdômen, devido à inflamação do fígado, que pode aumentar de tamanho, condição conhecida como hepatomegalia.
A hepatite crônica, associada principalmente ao HBV e HCV, se caracteriza por uma história de pelo menos 6 meses de infecção persistente por estes vírus. Enquanto que na hepatite B a chance de um indivíduo adulto se tornar portador é de 5-10%, na hepatite C essa taxa pode ser de 70-80%. E é justamente entre os portadores desses vírus que ocorre o principal problema de morbimortalidade relacionada às hepatites virais. Isso porque uma parcela desses portadores pode evoluir para doença grave do fígado, como cirrose e câncer hepático.
Além disso, é relevante destacar que a maioria dos portadores crônicos de hepatite B e C é assintomática ou apresenta apenas sintomas leves e por este motivo não procura assistência médica. Por este motivo, é muito importante que seja feita a testagem para esses vírus em Unidades de Saúde em todo paciente que relate na anamnese história de risco de infecção por estes vírus (p.ex. transfusões de sangue no passado, múltiplos parceiros sexuais, uso de drogas endovenosas, histórico de hemodiálise, entre outros), independente se ele apresenta sinais e sintomas de doença hepática.
A Sociedade Brasileira de Hepatologia também recomenda que todos os indivíduos acima de 50 anos devem ser testados para hepatite B e C, uma vez que a maior parte dos portadores se concentra nesta faixa etária.
Quais são as ações recomendadas para evitar o risco de hepatites virais?
Existem várias medidas eficazes para prevenir as hepatites virais e a vacinação é uma das principais estratégias recomendadas, especialmente contra os tipos A e B, para os quais existem vacinas, ambas disponíveis na rede pública para as faixas etárias indicadas. A imunização oferece proteção significativa, sendo a vacinação contra hepatite A indicada especialmente para crianças até 5 anos e a vacina contra hepatite B amplamente recomendada desde o nascimento, como também para a população em geral.
Além da vacinação, as hepatites de transmissão entérica têm como principais medidas de prevenção o saneamento básico, bem como manter rigorosas práticas de higiene pessoal como lavar as mãos regularmente com água e sabão, principalmente após o uso de banheiros e antes de manipular alimentos. Nas hepatites de transmissão parenteral, importantes medidas preventivas incluem a triagem de doadores de sangue, as práticas universais de precaução no cuidado de pessoas, bem como o uso de equipamentos de proteção individual pelos profissionais da área de saúde.
No ambiente familiar, é importante que portadores não compartilhem objetos de uso pessoal que sejam cortantes ou que possam conter sangue, como alicate de unha, lâminas de barbear e escova de dentes. Adotar práticas sexuais seguras, incluindo o uso de preservativos, também são importantes para reduzir o risco de transmissão das infecções sexualmente transmissíveis. Testagem de gestantes para identificação de possíveis portadoras visando minimizar a transmissão vertical, além de vacinação de recém natos para hepatite B.
Estas ações, combinadas com a conscientização e educação contínuas sobre práticas preventivas, são fundamentais para reduzir a incidência de hepatites virais e proteger a saúde pública.
Em abril de 2024 a OMS divulgou o Global Hepatitis report, relatório sobre a situação atual de mortes e casos por hepatites no mundo. Como mostra o relatório, um aumento significativo de mortes por hepatite vem sendo observado nos últimos anos. O que explica esse crescimento e quais os pontos você destacaria como mais importantes desta publicação?
O Relatório da OMS destaca que todos os dias morrem no mundo 3.500 pessoas devido às hepatites B e C. De acordo com o documento, o número estimado de mortes por hepatite viral está aumentando. Em 187 países essa taxa aumentou de 1,1 milhão em 2019 para 1,3 milhão em 2022. Destes óbitos, 83% foram causadas pela hepatite B e 17% pela hepatite C. Nesse cenário, de fato, a hepatite viral representa, junto com a tuberculose, a principal causa infecciosa de morte a nível mundial.
Uma possível explicação para o aumento apontado no relatório seria que, apesar do incremento nas ferramentas para diagnóstico e tratamento, bem como da diminuição dos preços dos produtos, as taxas de cobertura dos testes e de tratamento estagnaram. Segundo o Diretor Geral da OMS, Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, apesar dos progressos realizados a nível mundial na prevenção das infecções por hepatite, grande parte das pessoas infectadas pelos vírus B e C no mundo não são diagnosticadas e tratadas. Esse é o grande problema de saúde pública: a doença hepática crônica, que é a que mata.
Contudo, é importante diferenciar os dados de incidência, que apontam as novas infecções, dos dados de mortalidade. No Brasil, dados do Ministério da Saúde mostram que a incidência de Hepatite A decresceu, especialmente depois de 2014, quando começou a vacinação infantil para esse tipo do vírus aqui no Brasil.
Em relação aos índices de incidência mundiais apontados pelo relatório, na verdade, houve uma ligeira diminuição nas taxas de infecção em comparação com os dados de 2019. Em 2022, ocorreram 2,2 milhões de novas infecções, abaixo dos 2,5 milhões em 2019. Estes dados incluem 1,2 milhões de novas infecções pelo vírus B e quase 1 milhão de novas infecções pelo C. Os dados indicam que medidas de prevenção como imunização e injeções seguras, juntamente com a expansão do tratamento da hepatite C, contribuíram para reduzir a incidência. No entanto, estima-se que mais de 6.000 pessoas continuam sendo infectadas por esses vírus todos os dias, o que indica que a incidência global de hepatites virais permanece elevada. E é aí que reside o grande desafio na eliminação da doença até 2030 – aumentar o acesso ao diagnóstico e ao tratamento.
Então, considerando as metas globais de tratar 80% das pessoas que vivem com hepatite B crônica e hepatite C até 2030, qual é o cenário atual da doença no Brasil e qual o maior desafio para alcançar essa meta?
A infecção crônica ainda é o grande desafio para atingir essa meta, pois muitos indivíduos infectados não sabem que estão com a doença e continuam transmitindo. Identificar esses portadores assintomáticos é um desafio crucial, que requer maior engajamento dos profissionais de saúde para solicitar testes durante consultas e estar atento aos fatores de risco. Além disso, garantir que todos os diagnosticados tenham acesso efetivo ao tratamento gratuito pelo SUS é vital para controlar a doença.
No Brasil, as hepatites virais constituem Agravos de Notificação Compulsória, ou seja, o profissional de saúdeque atende um paciente com hepatite tem obrigatoriedade de notificar o caso no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan).
Dentre as ações recomendadas pelo relatório, quais intervenções são possíveis de se adotar no âmbito da saúde pública brasileira? E por parte da população, quais medidas podem ser tomadas para atingir essa meta?
O Ministério da Saúde ainda não disponibilizou o Boletim Epidemiológico de Hepatites Virais de 2024, mas dados anteriores indicam que medidas de prevenção como imunização e injeções seguras, juntamente com a expansão do tratamento da hepatite C, vêm contribuindo para a redução da incidências das hepatites virais no país.
Além disso, o nosso Programa de Imunização é exemplar, sobretudo ao disponibilizar a dose ao nascer da vacina hepatite B – o que não se apresenta como uma realidade em muitos países– e do tratamento para hepatite C, cuja proporção de cura é superior a 95% para os casos tratados adequadamente.
Uma ação importante e fundamental que deve ser estimulada nas Unidades Básicas de Saúde é a testagem para hepatite B e C. Essa ação, de maneira simples, permite identificar possíveis indivíduos portadores dessas infecções para que eles possam se beneficiar do tratamento. Isso porque o tratamento possibilita não somente a interrupção da cadeia de transmissão pela diminuição da carga viral, como também previne a evolução da doença hepática crônica para complicações graves como cirrose e câncer de fígado.
A vacinação contra a hepatite B também é uma ação que deve ser promovida entre adultos não vacinados, e campanhas de conscientização devem continuar a educar a população sobre a importância da prevenção e do tratamento. Além disso, a notificação obrigatória dos casos e a melhoria na coleta e análise de dados são essenciais para ajustar as políticas de saúde pública e monitorar a eficácia das intervenções.
Ademais, é satisfatório constatar que o Brasil possui um papel estratégico no objetivo mundial de eliminar as hepatites virais como um problema de saúde pública. A população brasileira tem acesso, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), aos métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento das hepatites B e C disponíveis no mundo, e de forma gratuita. Com esses esforços coordenados, é possível avançar significativamente no controle das hepatites virais no Brasil.
Para a população, a mensagem principal é: faça o teste, previna-se e vacine-se.
É importante conscientizar a sociedade sobre os riscos e formas de prevenção das hepatites virais, por isso, divulgar informações e promover o diagnóstico e tratamento são iniciativas fundamentais para o controle dessas doenças.
Cláudia Lamarca Vitral – Mestre e Doutora em Biologia Parasitária pelo Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, é Professora Titular do Departamento de Microbiologia e Parasitologia do Instituto Biomédico da UFF. Desenvolveu Dissertação de Mestrado e Tese de Doutorado dentro da linha de pesquisa de Hepatites Virais no Centro de Referência Nacional para Hepatites Virais do Instituto Oswaldo Cruz, Fiocruz, onde atuou como Pesquisador Visitante. Atualmente, desenvolve linhas de pesquisa e extensão na área de Vacinologia.