Notícia

Estudo mapeia candidaturas ligadas a religiões de matriz africana

Levantamento inédito do grupo Ginga-UFF qualifica dados do TSE para analisar candidatos identificados como afro religiosos

A eleição municipal é o momento onde a política mais se aproxima dos moradores das cidades. Uma novidade deste pleito é o crescimento de candidaturas ligadas a religiões de matriz africana. Visando entender a representação desses candidatos, o grupo de pesquisa Ginga, da Universidade Federal Fluminense (Ginga-UFF), desenvolveu um estudo que observa a composição do perfil de afrorreligiosos no universo da política eleitoral, em contraste com os demais segmentos religiosos.

Segundo a professora do Departamento de Antropologia da UFF, Ana Paula Mendes de Miranda, coordenadora do Ginga e líder da pesquisa, a relação entre religião e política no Brasil sempre foi muito próxima. “Ao longo da história do país, essa interação sempre esteve presente de forma íntima. Contudo, é importante destacar que, frequentemente, associamos as identidades religiosas às pautas conservadoras, e até reacionárias. Essa é uma característica de campanhas recentes, especialmente no caso de candidatos evangélicos, que costumam incorporar títulos religiosos, como “pastor” ou “pastora”, aos seus nomes. Eles utilizam essa identidade religiosa, geralmente, para defender pautas ligadas ao que consideram moral e bons costumes”.

Por outro lado, os perfis dos candidatos de religiões de matriz africana demonstram que eles não estão, em sua maioria, alinhados a essas pautas conservadoras. “Os terreiros têm, há muitos anos, uma forma própria de fazer política. A estratégia de luta e resistência secular dos povos de axé demonstra que uma pessoa ligada a eles sempre está preocupada com uma luta coletiva, e não com um projeto individual. Nesse sentido, a atuação política dessas pessoas é vista como um esforço coletivo para a preservação do povo de terreiro. A política, para as religiões de matriz africana, é uma forma de proteger e preservar a comunidade, e isso acaba refletindo nas candidaturas que surgem dessas tradições”, comenta a docente.

Os dados da pesquisa foram coletados no portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio de busca por palavras-chave referentes às religiões e em sites de notícias. A busca nas redes sociais também foi um método utilizado para identificar muitos desses candidatos, especialmente em casos em que as fotos ou os nomes indicavam sua vinculação com religiões de matriz africana. Foram utilizadas cerca de 116 palavras-chave, em comparação aos 20 termos comumente utilizados na literatura que existe sobre o assunto, o que proporcionou um levantamento mais robusto e uma qualificação de dados mais detalhada. 

Pesquisa aponta 284 candidaturas afro religiosas no Brasil

O estudo identificou que, dentre as 8.731 candidaturas com viés religioso no país, 284 estão associadas às crenças de matriz africana (3,3%), 157 são católicas (1,8%) e 8.290 evangélicas (94,9%). Os estados com mais postulantes dentro do perfil afro religioso são: Bahia (50 candidaturas, 17,6%), São Paulo (48 candidaturas, 16,9%), Rio Grande do Sul (45 candidaturas, 15,8%) e Rio de Janeiro (41 candidaturas, 14,4%); enquanto no Amapá, Roraima, Acre e Mato Grosso do Sul não foram identificados representantes.

Candidaturas identificadas como de religiões de matriz africana por estado. Créditos: Ginga-UFF

No Rio, 10% dos candidatos são afrorreligiosos

No contexto estadual, 41 das 395 candidaturas religiosas (10,4%) estão associadas às crenças de matriz africana. Além da capital, Niterói, Duque de Caxias e São João de Meriti são os municípios que apresentam mais concorrentes de terreiro; já os evangélicos somam 88,4% e os católicos 1,3%. A pesquisa também relaciona os dados coletados com os cargos em disputa; a cor, raça e gênero dos candidatos; os partidos pelo qual concorrem; o grau de instrução; e a ocupação de cada um. 

 

Candidaturas identificadas como de matriz africana no estado do Rio de Janeiro. Créditos: Ginga-UFF

Historicamente, o Rio de Janeiro não era o estado com o maior número de candidatos de terreiro; essa posição já foi ocupada pelo Rio Grande do Sul e pela Bahia. No entanto, o Rio, recentemente, tornou-se a capital com o maior crescimento de candidaturas de terreiro. A docente avalia que isso esteja ligado ao aumento da opressão e dos ataques aos terreiros, o que leva muitos líderes religiosos a tomarem a decisão de se posicionar politicamente para defender seu povo. “Há entre os candidatos exemplos explícitos de pessoas que foram vítimas diretas de agressões, justamente por sua identidade religiosa. Nesse sentido, a correlação entre a violência religiosa e o surgimento dessas candidaturas é clara” relata a professora.

Gênero, grau de instrução e filiação partidária das candidaturas no Rio

Com foco no gênero, a análise observa diferenças significativas entre os grupos religiosos. As candidaturas femininas predominam entre o segmento de matriz africana, representando 63,4% do total. O perfil oposto é encontrado nos postulantes cristãos, dado que, entre os evangélicos, 71,1% dos candidatos são homens e as cinco candidaturas católicas identificadas são masculinas. 

Candidaturas por identificação religiosa e gênero – Rio de Janeiro (2024). Créditos: Ginga-UFF

Na análise desses dados, outro ponto importante revelado é o papel das mulheres como lideranças nos terreiros. “Muitas vezes, elas já ocupam posições de protagonismo em suas comunidades, então a candidatura política é um desdobramento natural dessa atuação. Isso é algo que não vemos em outras religiões, como a católica, onde a representação política é predominantemente masculina, ou entre os evangélicos, onde, apesar de um possível equilíbrio, a agenda conservadora tende a priorizar os homens. Nos terreiros, a mulher é frequentemente a líder, e também muitas vezes a principal vítima de ataques, como observamos em nossos levantamentos. Essa combinação de fatores ajuda a explicar essa percepção de maior representatividade feminina nas candidaturas de matriz africana”, afirma a professora.

O estudo revela ainda um panorama de diversidade racial entre os candidatos religiosos nas eleições municipais de 2024, com destaque para as particularidades nos diferentes segmentos e uma predominância de candidatos afrorreligiosos negros. Entre os perfis analisados, 83% dos concorrentes de religião de matriz africana se autodeclaram pretos ou pardos; evangélicos somam 70,5%. As candidaturas católicas, por outro lado, apresentam 60% de brancos.

Candidaturas por identificação religiosa e cor ou raça – Rio de Janeiro (2024) Créditos: Ginga-UFF

Segundo Miranda, esse cenário de predominância de pessoas pretas ou pardas entre os adeptos das religiões afro-brasileiras é esperado, pois essas tradições religiosas surgiram diretamente do contexto da escravização, ou seja, sua base histórica e cultural sempre foi predominantemente negra. No caso dos evangélicos, o percentual significativo de pessoas negras pode ser explicado pelo trabalho de conversão realizado pelos evangelhos estadunidenses, direcionado às comunidades negras no Brasil. 

“Esse movimento de evangelização teve um impacto importante no crescimento inicial dessas conversões. Além disso, a expansão dos evangélicos está muito relacionada à penetração entre as camadas mais pobres da sociedade, que tendem a ter uma proporção maior de pessoas negras. Já a predominância de brancos entre os católicos reflete o status quo da sociedade brasileira. Se observarmos o perfil educacional, os níveis mais altos de instrução também costumam estar entre os católicos, o que reforça essa diferença”, acrescenta.

Em relação à instrução, os católicos representam a maior frequência de candidatos religiosos com ensino superior completo (40%), seguido pelos afrorreligiosos (26,8%) e pelos evangélicos (17,8%). Aprofundando o grau de instrução formal, as candidaturas de religiosos de matriz africana apresentam ensino médio ou ensino superior completo em 82,9% dos casos. Para candidaturas evangélicas este percentual é de 65,9%. Entre os católicos, todos têm, ao menos, o ensino médio completo.

Candidaturas por identificação religiosa e grau de instrução – Rio de Janeiro (2024) Créditos: Ginga-UFF

A coordenadora da pesquisa acredita que o aumento no grau de instrução das lideranças das religiões de matriz africana advenha do impacto das ações afirmativas. “Minha hipótese é que a concentração significativa de pessoas com nível superior entre essas lideranças está ligada à expansão das políticas de ações afirmativas. Para confirmar isso, precisaríamos de entrevistas mais detalhadas, mas este é um fator importante a se considerar”.

Em relação à filiação partidária, o levantamento revela a capilaridade dos evangélicos independente do espectro ideológico. Em contrapartida, os afro religiosos apresentam maior proximidade com o PSOL (29,3%) e concentram as candidaturas em partidos progressistas, como: PSB (17,1%), PDT (14,6%) e PT (7,3%). 

“Embora essas candidaturas tenham uma identidade religiosa, essa identidade não é utilizada para fins de proselitismo religioso, mas sim para lutar por um modo de vida e pelos direitos da população negra. Portanto, a defesa e a garantia dos direitos já conquistados, mas muitas vezes não respeitados, é uma agenda das candidaturas afrorreligiosas, em geral, que se alinha mais com partidos progressistas”, adiciona Miranda.

Candidaturas por identificação religiosa e partido político – Rio de Janeiro (2024). Créditos: Ginga-UFF

A pesquisa do Ginga-UFF complementa os dados disponibilizados pelo TSE com informações sobre religião ou pertencimento religioso e proporciona ferramentas de análise para entender esse aspecto dentro do processo político e do ativismo político de grupos específicos. Os resultados corroboram o fato de os evangélicos se apresentarem como aqueles que mais incorporam formas de se autoidentificar ao nome registrado na urna, mas também sinaliza que lideranças afro religiosas despontam no cenário político.

“Conseguimos dar um salto na análise das religiões de matriz africana no contexto político, algo que até então era praticamente inexistente. Com os resultados das urnas, um novo banco de dados poderia ser gerado e comparar os candidatos eleitos com os não eleitos, criando uma análise mais aprofundada”, finaliza Miranda.

_____

Ana Paula Mendes de Miranda é doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (2002 – doutorado direto). Docente do ensino superior, desde 2000, e Professora do Departamento de Antropologia desde 2009 (Associada III), líder do diretório de pesquisa do CNPQ “Antropologia Política e Conflitos: pesquisas empíricas sobre burocracias, religiões e mobilizações sociais”; pesquisadora do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisas e do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-INEAC) da Universidade Federal Fluminense. Tem experiência na área de Teoria Antropológica (Antropologia Jurídica e Antropologia Política), atuando principalmente em pesquisas sobre os temas: formulação, implementação e avaliação de políticas públicas; gestão da informação em segurança pública; crimes, conflitos e percepções da violência; manifestações de intolerância religiosa e discriminação racial.

Pular para o conteúdo