De intensidade leve a aguda, com aparição a qualquer hora do dia, as dores de cabeça incomodam e afetam a qualidade de vida e a produtividade de qualquer um. É raro alguma pessoa dizer que nunca sentiu dor de cabeça, até porque diferentes ações do dia a dia invariavelmente refletem no nosso organismo das mais diversas maneiras, inclusive alguns fatores externos, como a pressão e o estresse de vivenciar uma pandemia.
Também chamadas de cefaleias, as dores de cabeça podem ser incapacitantes, como no caso das famosas enxaquecas, que atingem com maior frequência as mulheres. Elenn Ferreira e Thalita Mázala, pesquisadoras associadas ao Núcleo de Pesquisa, Ensino, Divulgação e Extensão em Neurociências da Universidade Federal Fluminense (NuPEDEN/UFF) e Priscilla Bomfim, professora associada da UFF e coordenadora do NuPEDEN/UFF compartilham mais informações dessa condição médica, do ponto de vista das neurociências, justamente para auxiliá-lo a reconhecer os sintomas e procurar ajuda médica.
1. O que é enxaqueca e como reconhecer?
A enxaqueca é uma condição médica extremamente comum, sendo considerada a terceira doença mais prevalente no mundo. Pode surgir e afetar indivíduos em qualquer faixa etária, embora seja mais comum entre os 18 e 44 anos de idade, com maior frequência em mulheres.
Muito além de uma dor de cabeça forte, a enxaqueca é uma condição neurobiológica complexa e heterogênea com sintomas neurológicos muito incapacitantes, que impactam diretamente a produtividade econômica e a qualidade de vida dos indivíduos que sofrem com esta doença. Quando falamos sobre enxaqueca, é preciso considerar que ela compreende quatro fases distintas das quais duas se iniciam muito antes da fase da manifestação do ataque em si.
A fase 1 é caracterizada por sinais clínicos atípicos e sutis (ditos premonitórios) como alterações súbitas do humor, bocejos frequentes e grande dificuldade de concentração. A intensidade da dor e a duração dessa fase são variáveis, podendo durar algumas horas ou até dois dias. Na fase 2, que é bastante comentada, porém pouco compreendida, observa-se a aura. Existem quatro classes de sintomas de aura, que são variáveis: aura visual (distúrbios visuais como formas ou pontos de luz, e em alguns casos, também manifesta-se a perda, momentânea, da visão); aura de linguagem (dificuldade transitória para compreender conversas e contextos, para processar informações e articular frases); aura sensorial (formigamento, perda da sensibilidade na face e membros superiores); e em casos mais raros há a aura motora (presença de fraqueza muscular geralmente em um dos lados do corpo, antes ou mesmo durante um ataque).
Dito isso, temos a fase 3: a crise de enxaqueca propriamente. Essa fase é caracterizada por dores latejantes e/ou pulsantes em um dos lados da cabeça, podendo também ocorrer nos dois lados. Nesta etapa, o esforço físico impacta muito negativamente o quadro, que já é acompanhado por vômitos, irritabilidade, tonteiras, enjoos, sensibilidade à luz e ao som, podendo gerar, até mesmo, um quadro de confusão mental. Essa fase pode durar de horas a dias e, quando ela se encerra, entramos na fase 4 – denominada pósdromo, quando o indivíduo relata um mal estar enorme, como se estivesse de “ressaca”. Trata-se de um cansaço intenso e uma alteração transitória da capacidade cognitiva dos indivíduos, como se estivessem “desconectados”, prejudicando a compreensão do que lhes é dito ou perguntado. A remissão dos sintomas posdrômicos pode levar alguns dias dependendo da intensidade e da duração do ataque.
2. Por que sentimos enxaqueca? A pandemia tem contribuído para aumentar esse tipo de crise?
Existem questões genéticas que tornam um indivíduo mais predisposto ao desenvolvimento da enxaqueca. Cerca de 90% dos que sofrem com ataques recorrentes possuem um histórico familiar da doença. Fatores externos também desempenham papel relevante nos ataques em pessoas predispostas, como mudanças climáticas, odores fortes (cigarro e perfumes), questões nutricionais, sono inadequado, práticas físicas intensas e o próprio abuso de medicamentos de uso sintomático podem contribuir para a mudança no padrão de frequência e de intensidade dos ataques.
O status hormonal também pode ser considerado, pois as enxaquecas podem estar relacionadas às flutuações de estrogênio, embora ainda não esteja claro como exatamente ocorre a relação. Isso explica, em parte, por que as mulheres são mais frequentemente acometidas pela doença do que os homens. Todos esses fatores, em conjunto ou isoladamente, favorecem o surgimento da dor. Eles não são, porém, a causa da dor.
Sobre a Covid-19, um levantamento recente mostrou que um baixo bem-estar está também associado a sintomas físicos, como as enxaquecas. Nestes casos, uma dor recorrente pode, sim, facilmente se transformar em uma dor crônica. Já há alguns estudos desenvolvidos, durante a quarentena, evidenciando um aumento nas queixas de dores de cabeça de quem não relatava essa condição anteriormente. Outro fator observado é que não necessariamente houve a piora do quadro de quem já sofria de enxaqueca. Alguns relataram uma diminuição, que pode ser explicada pelo trabalho remoto e consequente melhoria nas condições de manejo das crises, bem como pela menor exposição a gatilhos específicos de cada paciente, como, por exemplo, não ter que encarar um trânsito caótico para ir ao trabalho ou ter uma alimentação inadequada.
3. Quando procurar tratamento e quais os cuidados na automedicação?
A terapia preventiva é recomendada quando o paciente se queixa de ataques de enxaqueca recorrentes. Quanto maior a frequência, maior a probabilidade de se fazer uso de um medicamento profilático. Com esta abordagem, almeja-se reduzir a frequência, assim como a intensidade dos ataques. A maior parte das pessoas convive relativamente bem com a enxaqueca, sem necessitar fazer uso contínuo de alguma terapia preventiva, mas a verdade é que, mesmo em períodos mais incômodos, a maior parte das pessoas não procura e não vai procurar atendimento especializado para investigar a dor.
A terapia abortiva (ou aguda) faz uso medicamentos, como analgésicos e anti-inflamatórios, com o objetivo de cessar uma crise e também amenizar os outros sintomas associados à enxaqueca. Tais medicamentos podem ser facilmente adquiridos em qualquer farmácia sem a necessidade de uma prescrição médica. Porém, a cultura da automedicação com terapias abortivas pode trazer grandes riscos ao paciente. O uso inadvertido de medicamentos sem prescrição médica pode acelerar ou mesmo induzir o processo de cronificação (a enxaqueca crônica é definida pela ocorrência de 15 dias ou mais de enxaqueca ao mês), além de reduzir a eficácia da terapia profilática.
O mais indicado é sempre estar atento ao seu próprio corpo, entendendo os sinais que ele te dá e, assim, buscar ajuda médica para o diagnóstico adequado e/ou tratamento multidisciplinar. A enxaqueca é uma condição que irá alterar, permanentemente, o estilo de vida daqueles que sofrem com este problema.
4. Quais medidas preventivas podem ser tomadas para se evitar a enxaqueca?
A enxaqueca leva muito mais do que os dias de trabalho e o dinheiro das pessoas que convivem com ela. Existe, sim, uma grande incerteza, mesmo quando se possui um diagnóstico adequado. No entanto, ter uma condição médica não significa não ter controle sobre ela ou que não se pode melhorar a qualidade de vida atual. Não há como prever o próximo ataque. Não projete uma vida que não inclua a dor. Ao invés disso, pergunte-se: o que você quer conquistar APESAR da dor?
Existem terapias não farmacológicas que podem auxiliar no manejo e na prevenção da dor, propiciando um alívio no médio prazo, como técnicas de mindfulness, yoga, respiração, acupuntura, aromaterapia, aplicação de botox e estimulação magnética transcraniana (TMS), por exemplo. Além disso, é recomendável assegurar uma rotina que inclua atividade física regular, uma dieta balanceada, além de uma boa higiene do sono. Entenda os aspectos físicos da sua doença e faça a sua autoavaliação do que funciona ou não funciona para você. Um estímulo que pode ser inofensivo para uma pessoa, pode ser um gatilho para outra.