Após alcançar o número de assinaturas para ser protocolada, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que visa acabar com a escala 6×1 no país passa por uma nova etapa. Está agendada, para o dia 4 de dezembro, em Brasília, uma audiência pública para discutir o tema. O encontro acontece às 16h no plenário 9 da Câmara dos Deputados e terá transmissão online. A PEC foi articulada em conjunto entre o movimento Vida Além do Trabalho (VAT) e a deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP).
Em publicação na plataforma X, o líder do movimento VAT e vereador eleito no Rio de Janeiro (PSOL), Rick Azevedo, afirma que o evento dará voz aos trabalhadores que atuam na escala 6×1. “Na próxima semana, a luta por uma escala de trabalho mais justa ganhará mais força! Estaremos no Congresso Nacional ao lado da nossa Deputada Erika Hilton, de todos os coordenadores do movimento VAT e trabalhadores da sociedade civil, ampliando o debate sobre o fim da escala 6×1, que tanto prejudica a vida da classe trabalhadora. Essa audiência pública será um espaço para dar voz a quem enfrenta diariamente essa realidade opressora e para avançarmos na construção de soluções mais humanas e dignas”.
Apesar da velocidade comum às redes sociais, o rito legislativo é mais lento. Na Câmara, o próximo passo da PEC é ser apresentada oficialmente para, em seguida, ser analisada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e por uma comissão especial. Após, o texto segue para votação no plenário e, se for aprovado, seguirá para o Senado Federal.
Segundo a professora do departamento de Administração da UFF, Flávia Manuella Uchôa, empregados que atuam na escala 6×1 relatam diversos problemas relacionados à saúde física e mental. “Na saúde física, há relatos de dores associadas às longas jornadas, enquanto na saúde mental destacam-se estresse, esgotamento, ansiedade, pânico e burnout, além da falta de tempo para vida social, familiar e autocuidado”.
Conforme estabelecido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o trabalhador brasileiro possui uma carga horária máxima de 8 horas diárias, totalizando 44 horas semanais. Além disso, é garantido o direito a um dia de descanso na semana que pode ser fixo ou alternado, mas deve ocorrer a cada seis dias de trabalho. Esse regime é mais comum principalmente entre os trabalhadores das áreas de serviço e varejo.
Para o professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ivan Alemão, a importância da proposta é histórica e se relaciona com a luta universal pela redução da jornada de trabalho, mas ainda deve passar por ajustes técnicos e políticos.
“A Constituição de 1988 estipulou as 44 horas semanais, sendo seguida pela luta por 40h semanais por muitos sindicatos, que só conseguiram por meio de negociação coletiva. Mas nunca esse tema foi pautado de forma tão incisiva como agora. No texto, há algumas inconsistências de ordem técnica, como a relação entre cada tipo de jornada e a quantidade de horas trabalhadas. Também parecem ter contabilizado o horário de intervalo como parte da jornada, o que não é feito. Detalhes como esses já demonstram o quanto haverá discussão, não só no âmbito político, mas também técnico-jurídico, para que o projeto avance”.
Discussões sobre o fim da escala 6×1 no Brasil
Atualmente, Uchôa desenvolve o projeto “Impactos da escala 6×1 na vida das(os) trabalhadoras(es)”, vinculado ao Departamento de Administração da UFF. Em resultados parciais, a pesquisa aponta que os trabalhadores que atuam nessa escala 6×1 são, na maioria das vezes, jovens com ensino médio completo, solteiros, empregados nos setores de varejo e serviços, e com renda média de R$ 2.000. Para 66% dos participantes do estudo, essa escala impacta de forma extremamente negativa a vida pessoal e familiar.
Os objetivos principais da PEC proposta por Erika Hilton são acabar com a utilização da escala 6×1 e reduzir a jornada de trabalho semanal no Brasil, sem diminuição salarial para os trabalhadores. Além disso, um dos pontos mais debatidos da proposta é a adoção do modelo 4×3, ou seja, quatro dias de trabalho e três de folga. Segundo o professor de psicologia da UFF, Bruno Chapadeiro Ribeiro, testes mostram que o aumento do tempo livre – resultado do modelo proposto – tem sido destinado para consumo. “O efeito principal é aumentar o tempo livre. Apesar disso, experiências internacionais têm mostrado que esse tempo é destinado muito mais para o consumo do que para o descanso e cuidado da família”.
O especialista explica que a redução da carga horária laboral também é importante para reduzir o número de acidentes de trabalho. “O tempo livre tem sido considerado proporcional à uma maior qualidade de vida e bem-estar, porque quanto mais horas trabalhadas, mais chances de ocorrer acidentes de trabalho, devido ao grau de atenção, esforço e fadiga. É óbvio que para o empresário, a ideia de mais trabalho significa produção maior, ainda mais considerando que temos vivido em espaços de trabalho cada vez mais enxugados e reestruturados, ou seja, cada vez menos pessoas para dar conta de uma quantidade de trabalho alta”.
Entre as pessoas contrárias à redução da jornada, utiliza-se o argumento de que a redução da jornada de trabalho sem diminuição salarial causaria demissões, perdas econômicas para o Brasil e impacto financeiro nos pequenos negócios. Para a professora de Administração, a proposta não representa um problema para os pequenos negócios e que as grandes redes conseguem absorver os custos da redução de jornada. “Esse argumento é colocado de lado quando, em nome da competição econômica, os grandes negócios quebram os pequenos. O fim da escala 6×1 é um ‘problema’ de gestão da força de trabalho e um empecilho para aumento da taxa de lucro para grandes negócios, como as grandes redes de farmácia, que possuem a fatia de 40% do mercado brasileiro, com faturamento anual de mais de R$ 91 bilhões. A histeria de economistas sobre a quebra de empresas, que acompanha qualquer discussão fundamentada sobre melhores condições de vida e de trabalho, não é surpreendente, mas deve ser combatida em toda a sua capilaridade midiática”, explica Uchôa.
O movimento VAT surgiu em 2023, quando o fundador, Rick Azevedo, postou um vídeo na plataforma TikTok relatando as suas experiências atuando na escala 6×1 como balconista em uma farmácia. O conteúdo viralizou nas redes sociais e ele começou a fazer campanhas pelo fim da utilização dessa escala. A criação do movimento envolveu a realização do abaixo-assinado online “Por um Brasil que Vai Além do Trabalho”, que já ultrapassou 2,9 milhões de assinaturas.
Mundo discute redução de jornada
As discussões atuais sobre carga horária de trabalho e relações trabalhistas não são exclusivas ao Brasil. Países ao redor do mundo têm debatido sobre a redução de horas trabalhadas, a fim de melhorar a saúde mental dos trabalhadores. A Alemanha, por exemplo, testou a utilização de quatro dias de trabalho na semana ao longo de 2024. 73% das empresas participantes do teste sinalizaram que pretendem continuar com esse modelo. Os testes apontaram que as receitas das companhias se mantiveram, mesmo com um tempo menor de trabalho, o que demonstra um aumento na produtividade dos trabalhadores, acompanhado de índices positivos de saúde e bem-estar, resultado direto da redução de carga horária.
De acordo com Bruno, movimentos da juventude estão surgindo para ressignificar o trabalho na sociedade. “Estamos vendo diversos movimentos sociais espontâneos, como o Great Resignation nos Estados Unidos e Inglaterra, o Anti-work, o Joy of logging off. Então, a gente tem visto uma juventude que entendeu as promessas falaciosas do capitalismo que se você trabalhar e se esforçar muito, terá um lugar ao sol e estão tentando buscar uma ressignificação do trabalho, entendendo que a vida vai muito além do emprego. Essa é a proposta do movimento VAT de entender que perdemos muito tempo com o trabalho, às vezes sem sentido e meramente com o objetivo de se manter economicamente”.
O docente de psicologia pontua que a redução de jornada laboral é uma tendência mundial desde o século passado. “Estamos vendo uma tendência mundial de debater a redução da jornada laboral desde a implementação do estado de bem-estar social após a segunda guerra mundial. A França reduziu a jornada diária para 32 horas, pensando que a partir desse tempo livre o trabalhador consegue exercer outras atividades, e os próprios serviços de saúde e educação são organizados a partir do tempo livre das pessoas. A discussão no Brasil segue o fluxo mundial ocorrido em países como Finlândia, Inglaterra e Portugal, que já realizaram experiências de redução da jornada”.
Na contramão da tendência mundial, recentemente a Grécia aprovou a semana de trabalho de seis dias para determinados setores, além de aumentar a carga horária semanal para 48 horas máximas. A medida visa ao crescimento da produtividade e dos empregos no país, que sofre com falta de mão de obra qualificada e uma grave crise econômica. Enquanto isso, Alemanha, França e Itália – países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – apresentam jornadas de trabalho mais curtas, com uma média semanal abaixo de 37 horas.
China e Índia – países parceiros do Brasil no BRICS, grupo econômico dos principais países emergentes do mundo – se destacam globalmente pela alta carga horária de trabalho na semana. Em média, os trabalhadores dos países trabalham cerca de 48 horas semanais, ou seja, quatro horas a mais do que o máximo permitido pela legislação trabalhista brasileira. A escala 6×1 também é utilizada em países como Estados Unidos, México, China e Índia.
____
Ivan da Costa Alemão é professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui graduação em História pela UFF (1980), graduação em Direito pela UFF (1987), mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF (2001) e doutorado em Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, 2008)
Flávia Manuella Uchôa é professora adjunta no Departamento de Administração e no programa de Pós-Graduação em Administração da Universidade Federal Fluminense (UFF). Subcoordenadora do curso de MBA em Gestão de Recursos Humanos da Universidade Federal Fluminense. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE, 2011). Mestre (2016) e Doutora (2020) pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e do Trabalho na Universidade de São Paulo (USP).
Bruno Chapadeiro Ribeiro é professor de psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui graduação em Psicologia (2009) e mestrado em Ciências Sociais (2013) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2018) com período sanduíche na École des hautes études en sciences sociales (EHESS/Sorbonne) em Paris, França e pós-doutorado em Saúde Coletiva pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp).