Mais de 700 milhões de pessoas são afetadas por ano devido ao desperdício de alimentos. Foto: Senado Notícias
Dados do Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos 2024, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), apontam que, por dia, o mundo desperdiça mais de um bilhão de refeições. Enquanto um terço da humanidade é afetado pela insegurança alimentar, mais de um bilhão de toneladas de alimentos foi perdido em 2022, o que contribui para a manutenção da fome no planeta. De todo o desperdício registrado, 60% ocorreu em âmbito doméstico, 28% em serviços de alimentação e 12% no varejo.
O descarte de alimentos também é um dos fatores que agrava a crise climática no planeta, como um dos grandes responsáveis pela emissão de gases tóxicos na atmosfera. Quando depositados em aterros sanitários, a decomposição dos alimentos produz gases de efeito estufa (GEE), principalmente o metano e o dióxido de carbono (CO₂). Estima-se que a emissão anual de gases resultantes desse processo é responsável por cerca de 8% das emissões anuais de GEE. Para comparação, se esse processo fosse um país, seria o terceiro maior emissor de gases poluentes, atrás apenas da China e dos Estados Unidos.
Liderado pela professora do Departamento de Engenharia de Agronegócios da Universidade Federal Fluminense (UFF), Aldara da Silva César, o projeto “Cantinho do Reúso” estuda os impactos econômicos, sociais e ambientais que ocorrem pela perda e pelo desperdício de alimentos em restaurantes e ambientes domésticos (PDA) e propõe ações para mitigar essa situação.
Apesar do crescimento do número de pesquisas sobre PDA, ainda existem poucos estudos sobre esse assunto na área de restaurantes. Em 2022, o projeto realizou a mensuração do desperdício de alimentos em uma rede de restaurantes industriais na região Sul Fluminense do Rio de Janeiro. Os estudos desenvolveram coletas mensais ao longo de nove meses, no horário de almoço, em 14 restaurantes, que oferecem cerca de 12 mil refeições por dia.
“Os resultados revelam um desperdício diário de 1.297 quilos (kg), dos quais 938 kg são sobras e 359 kg de desperdício de pratos, o equivalente a aproximadamente 1,6 mil refeições no padrão de cada restaurante, e causa um prejuízo superior a US$ 3,6 mil por dia para a empresa. Além disso, indicamos a criação de um manual que contém fluxogramas, descrições, detalhes das etapas dos processos e um protocolo de medição de desperdício”, explica a professora.
Diferente do ambiente doméstico, nos restaurantes o desperdício inclui duas situações: sobras e resíduos de pratos. As sobras equivalem aos alimentos preparados, mas não servidos, enquanto os resíduos de pratos são todos os alimentos que foram distribuídos, mas não consumidos. Nos ambientes comerciais, essa situação acontece por conta de erros na gestão de produção do estabelecimento e no comportamento do consumidor.
Atualmente, o projeto trabalha para propor ações de mitigação do desperdício de alimentos em um restaurante industrial da região Sul Fluminense. “O estudo será realizado em duas etapas, a primeira irá mensurar o desperdício no restaurante através de levantamento de dados e a segunda vai elaborar uma proposta de solução para o problema através da abordagem Design Science, que tem o objetivo de produzir ou alterar situações para alcançar melhores resultados em tratativas de problemas organizacionais”, aponta Aldara.
Índices de desperdício no Brasil
Apesar de serem termos semelhantes, a perda e o desperdício de alimentos possuem diferenças na definição que podem ser observadas através da desigualdade econômica e social entre as nações. Fenômeno mais comum em países em desenvolvimento, a perda é a redução de alimentos disponíveis para consumo humano, resultado de ineficiências nas cadeias produtivas, defeitos na logística e infraestrutura, tecnologias de produção obsoletas e incapacidades gerenciais ou técnicas. Já o desperdício é mais observado em países desenvolvidos e está relacionado ao rejeito de itens, causado principalmente pelo comportamento de consumidores e varejistas.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 30% dos alimentos produzidos no país são desperdiçados, o que coloca o país entre os dez maiores desperdiçadores do mundo. Estima-se, ainda, que R$ 1,3 bilhão em frutas, legumes e verduras vão para o lixo por ano em supermercados e, apesar de 27% das casas no país viverem em situação de insegurança alimentar, familiares brasileiros desperdiçam, em média, 128 kg de alimentos por ano. Na análise per capita, esse número chega a uma quantidade anual de aproximadamente 41 kg por pessoa.
Ainda que apresente um alto índice de perda de comida, situação comum para um país em desenvolvimento, o Brasil também exibe traços de comportamento frequentes em países desenvolvidos, ao desperdiçar alimentos na etapa de consumo. Aldara explica que um desses fatores é o desejo do chefe de família ser um bom provedor. “Quem chefia a família sente que precisa ser um bom provedor e quer comprar diversos produtos para a cesta básica em busca de agradar à família. Somado a isso, temos uma mania cultural de achar que é melhor sobrar do que faltar, então, muitas vezes, a pessoa compra alimentos em abundância que acabam não sendo consumidos”.
Em 2015, durante a Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, desenvolveram-se os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma agenda mundial composta por 17 objetivos e 169 metas a serem atingidas até 2030. No ODS 12.3, é estabelecido o propósito de “reduzir pela metade o desperdício de alimentos per capita mundial, nos níveis de varejo e do consumidor, e reduzir as perdas de alimentos ao longo das cadeias de produção e abastecimento, incluindo as perdas pós-colheita”. Estima-se que 890 milhões de pessoas não têm acesso à comida, o que evidencia o impacto social causado pela PDA, que também reflete na economia, pois representa um prejuízo em torno de US$ 940 bilhões. De acordo com projeções feitas no relatório divulgado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), a população mundial deve chegar a 8,9 bilhões de pessoas em 2050, quase três bilhões a mais do que atualmente. Para suprir essa demanda alimentícia, a produção global precisará se adequar e crescer, pelo menos, 70%.
Cadeia produtiva agroindustrial
A perda e o desperdício de alimentos podem acontecer por conta de múltiplos fatores ao longo de toda a cadeia produtiva agroindustrial (CPA) – conjunto de atividades envolvidas na produção, processamento e distribuição de alimentos até chegar ao consumidor final. A docente relata que alguns alimentos não seguem o padrão estético do mercado e, por isso, ficam no campo. “O desperdício ocorre durante ou imediatamente após a produção e colheita na fazenda. Os alimentos são deixados no campo devido a padrões de qualidade e queda acentuada no preço, então, por exemplo, para os produtos entrarem no mercado, precisam compor um padrão estético. Se um alimento não seguir esse padrão, fica no campo e gera desperdício.”
Estágios | Perdas e desperdício de alimentos | |
---|---|---|
Onde ocorrem | Por que ocorrem | |
Produção e colheita | Durante ou imediatamente após a produção, ou colheita na fazenda. | Alimentos são deixados em campo devido aos padrões de qualidade ou queda acentuada nos preços. |
Transporte e armazenagem | Perdas ocorridas após a produção. O alimento deixa a fazenda para manuseio, transporte e armazenamento. | Falta de instalações adequadas de armazenamento ou transporte (por exemplo, caminhões refrigerados). |
Processamento e embalagem | Perdas ocorridas durante o processamento industrial ou durante a embalagem. | Degradação; descarte; derramamento |
Distribuição e varejo | Durante a distribuição aos mercados, incluindo as perdas em mercados varejistas e atacadistas. | Variação da demanda por produtos perecíveis. |
Consumo | Perdas em residências ou em estabelecimentos de consumo, como restaurantes. | Confusão sobre as datas de validade dos alimentos; armazenamento inadequado; porções sobredimensionadas. |
Tabela de estágios de perdas e desperdício de alimentos durante a CPA. Fonte: Aldara da Silva César.
Para a professora, uma das ações necessárias é fomentar o mercado de alimentos que não seguem o padrão estético dos mercados. “Essa situação poderia ser mitigada através do fomento de canais de distribuição que pudessem receber produtos imperfeitos. Naturalmente, é um mercado que paga mais barato do que pagaria para produtos mais bonitos, mas os nutrientes são os mesmos daquele que está esteticamente mais agradável”.
A professora ainda destaca que a PDA pode ser combatida através da educação ambiental do consumidor “Podemos combater a PDA durante a cadeia produtiva agroindustrial com educação para o consumo e educação ambiental.Para isso, é preciso fazer com que o consumidor seja mais consciente. No restaurante podemos identificar aspectos que combatem o desperdício, observando fatores como posicionamento de identificação do menu e previsão da demanda, por exemplo”, explica Aldara.
Pirâmide invertida de hierarquia de recuperação dos alimentos reduz o impacto da PDA. Foto: Anvisa.
Para reduzir o desperdício de alimentos e o impacto ambiental, a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA) criou o processo de hierarquia de recuperação dos alimentos (HRA). Segundo a docente, por meio de ações pensadas durante a HRA, é possível reduzir o impacto da PDA no meio ambiente.
“Existe a possibilidade de diminuirmos o impacto da PDA através da existência da hierarquia de recuperação dos alimentos. A base maior da pirâmide fica em cima porque estamos trabalhando sempre na redução da fonte, na prevenção de desperdício, já a última base é o descarte no aterro sanitário ou incineração. É possível criar canais de redistribuição de alimentos, usá-los para fazer biodiesel, pensar em alimentar animais e realizar compostagem. Então, temos que pensar no aterro sanitário como a última opção. Por mais que o alimento não seja consumido, é possível, por meio da hierarquia do lixo, diminuir o impacto do desperdício alimentício no meio ambiente”, conclui Aldara.
_____
Aldara da Silva Cezar é professora associada do Departamento de Engenharia de Agronegócios da Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui graduação em Engenharia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e mestrado e doutorado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).