A esporotricose é uma micose subcutânea e/ou sistêmica, ou seja, que infecta todo o organismo, causada pelo fungo Sporothrix brasiliensis. Trata-se de uma doença hiperendêmica, situação em que uma determinada condição de saúde está presente de forma persistente e em níveis muito elevados em uma população específica ou em uma determinada região geográfica.
Nesse sentido, a professora Andrea Baptista do Centro de Investigação de Microrganismos do Instituto Biomédico da Universidade Federal Fluminense (CIM-UFF) explica que a esporotricose recebe o título de “doença negligenciada”, pois as micoses, geralmente, são as enfermidades “que menos preocupam entre todas as doenças infecto-parasitárias” por serem encobertas por outras com maiores níveis de contágio e transmissão. A pesquisadora estuda sobre a transmissão do fungo por animais infectados e não infectados no estado do Rio de Janeiro. Os estudos do Centro já foram usados como referência para a Nota Técnica lançada pelo Ministério da Saúde em maio deste ano. Nas palavras da professora, a nota “aborda todos os aspectos: clínicos, epidemiológicos, terapêuticos e de notificação compulsória, e é a primeira ao nível nacional a abordar o assunto”.
Andrea explica ainda que se trata de uma doença comunitária, presente no mundo inteiro, mas, a partir do final do século XX, passou a ter maior expressão no Brasil com o surgimento de uma nova espécie do fungo no município de Belford Roxo, no Rio de Janeiro. “A partir da década de 1990, o Brasil se tornou, infelizmente, um modelo único de forma endêmica da doença. O país tem o maior número de casos no mundo dessa micose subcutânea, os primeiros começaram na Baixada Fluminense, com a proliferação excessiva de gatos domésticos e, a partir daí, ganharam a área metropolitana e depois o estado”, comenta. Atualmente, é possível encontrar casos em todo estado do Rio de Janeiro e em diferentes regiões do país, além de outros países da América Latina, como Chile, Peru e Panamá. Neste ano, foram noticiados os três primeiros casos do Sporothrix brasiliensis no Reino Unido.
Apesar de afetar outros vertebrados, os gatos são os principais infectados por serem os únicos incapazes de produzir uma resposta imunológica contra o fungo. Por essa razão, também são os únicos que podem transmitir a doença. Nos felinos, a esporotricose pode se manifestar nas formas cutânea fixa, disseminada e/ou sistêmica, sendo as últimas duas mais comuns. Já em humanos, a doença pode apresentar casos atípicos. “A forma mais comum se chama linfangite nodular ascendente, que forma um cordão de nódulos linfáticos: 75% dos pacientes apresentam esse tipo; outros têm uma forma que chamamos de cutâneo fixa, só no ponto de maior presença do fungo que se faz a lesão. Como muitos pacientes foram acometidos no Brasil, temos formas não típicas, como meningite — um processo inflamatório das meninges, membranas que revestem o encéfalo e a medula espinhal — e osteomielite — uma infecção óssea”, explica a professora.
Leveduras do fungo o fungo Sporothrix brasiliensis / Cortesia Zollo Pires de Camargo (EPM / Unifesp)
Além de investigar as características de agressividade do fungo e a resposta aos antifúngicos, o estudo levou a descoberta de que alguns animais acabam sendo infectados por mais de um tipo do mesmo Sporothrix brasiliensis. Como esclarece a professora, trata-se da mesma espécie de fungo, mas quando um gato é arranhado por outro felino contaminado, surge uma nova variação, chamada de cepa. Depois, outro gato, de outra região, com outra cepa do mesmo Sporothrix brasiliensis, infecta esse gato novamente. Ou seja, o gato contaminado duas vezes agora possui duas ‘variações’ do mesmo fungo no seu organismo.
A pesquisa também avaliou novas formas de tratamento para a esporotricose, descrevendo a ação de diferentes extratos vegetais de Ocotea pulchella, Ocotea notata, Myrciaria floribunda e Hypericum brasiliense contra o fungo sensível ao itraconazol, medicamento mais utilizado no tratamento da doença. A intenção dos estudiosos com essa análise é produzir novas pesquisas que possam determinar se há a possibilidade desses extratos funcionarem como antifúngicos alternativos contra a zoonose.
Outra descoberta interessante é que felinos saudáveis não transmitem a doença. “Pesquisamos uma população doente e outra saudável no estado do Rio e tentamos fazer uma varredura epidemiológica na época. Nosso objetivo era provar que o felino doméstico doente preocupa; já o gato saudável não transmite a esporotricose”. A professora reforça a importância da Nota Técnica nesse cenário para informar e dar visibilidade à doença, e também da relevância da pesquisa que baseou a nota: “É um ganho muito grande para o enfrentamento da doença, porque dá um guia de como combater a esporotricose e a UFF contribuiu para isso”.
Para além da pesquisa, o projeto contou com dois ambulatórios de referência para atendimento a humanos e felinos. O primeiro era responsável por 80% dos casos identificados de esporotricose humana em Niterói, atendendo e notificando os indivíduos contaminados, mas teve suas atividades encerradas em 2017. Já o segundo está em atividade e atende a toda comunidade, oferecendo diagnóstico clínico, acompanhamento terapêutico e diagnóstico laboratorial gratuito. O ambulatório está em diálogo com a Prefeitura do município na tentativa de oferecer tratamento de graça aos tutores sem condição financeira de comprar os medicamentos. “Temos buscado também campanhas para conscientização, porque é importante anunciar e criar formas mais simples de notificação. Se você não informa, não conhece e, se não conhece, não enfrenta”, avalia a pesquisadora.
Para mais informações, o ambulatório conta com perfis no Facebook e no Instagram com dicas para os tutores e por onde também é possível agendar um atendimento: https://www.facebook.com/profile.php?id=100063653839934 e https://www.instagram.com/projetoesporotricoseuff/.
Andrea Regina de Souza Baptista é vice-coordenadora do Programa de Pós-graduação em Microbiologia e Parasitologia Aplicadas e integra as organizações e comitês Working Group On Sporotrichosis, vinculado ao International Society for Human and Animal Mycoses (ISHAM), One Health Coalition e One Health Brasil.