O consumo de medicamentos sem orientação médica tem sido uma pauta recorrente neste período de pandemia. Dos analgésicos aos antitérmicos, o fenômeno da automedicação é muito mais comum do que pensamos e atinge cerca de 77% da população brasileira. Mas quais os riscos desse hábito para a nossa saúde?
Tendo em vista que no início deste mês comemorou-se o Dia Nacional do Uso Racional de Medicamentos, aproveitamos a data para trazer esse tema à tona por meio da entrevista realizada com Selma Castilho, pesquisadora e Diretora da Faculdade de Farmácia da UFF.
1) Dados recentes apontam o crescimento exponencial da compra de paracetamol, dipirona e vitamina C nos últimos meses. Quais são os riscos para o organismo quando existe o excesso de consumo destes tipos de medicamentos sem orientação médica?
Os medicamentos de venda livre são aqueles que podem ser comprados sem necessidade de prescrição médica. Eles se destinam ao alívio de sintomas e a tratar algumas condições clínicas mais simples e autolimitadas, como os de alívio de dores, sintomas de resfriados, mal estar estomacal etc. É preciso entender que, embora de venda livre, esses produtos, assim como qualquer medicamento, também têm potencial de provocar reações adversas e de interagir com outros medicamentos. Além disso, caso os sintomas não desapareçam nos primeiros dias, deve-se sempre buscar orientação de um médico.
O paracetamol, por exemplo, se usado em doses maiores que a recomendada ou por um período muito longo (superior a 10 dias), pode causar danos ao fígado. Já há estudos que mostram a relação do uso indevido do paracetamol com falência hepática. A dipirona, outro analgésico e antitérmico amplamente usado no Brasil, também tem efeitos adversos importantes, ligados à diminuição da quantidade de células do sangue, como glóbulos vermelhos, brancos e plaquetas. Também é associado a reações alérgicas importantes, inclusive erupções na pele (rash cutâneo) e choque anafilático. Por esta razão, em vários países, seu uso é restrito ao ambiente hospitalar ou mesmo proibido. A vitamina C, por sua vez, se consumida em doses elevadas pode provocar diarreias, dor abdominal e dor de cabeça. Também há relatos de que a ingestão excessiva desta vitamina pode estar relacionada ao desenvolvimento de cálculos renais.
Esses são alguns exemplos de efeitos adversos, mas há ainda o potencial de interação destes medicamentos com outros de que o indivíduo faça uso para tratamentos de doenças como hipertensão, diabetes entre outros.
2) A automedicação pode mascarar ou agravar alguma doença pré- existente? Em quais casos pode levar à intoxicação ou até à morte?
Sintomas como dor e febre, por exemplo, são sinais que tanto podem estar associados a situações autolimitadas e de menor gravidade como a situações clínicas mais complexas, que exigem a avaliação e orientação de um profissional de saúde. É por isso que se considera que o uso de medicamentos de venda livre deva ocorrer apenas em janelas de tempo reduzidas e que, caso estes sintomas não desapareçam, o médico seja procurado.
Assim, a automedicação por um período prolongado pode dificultar o diagnóstico de problemas que requerem outras estratégias de tratamento, agravando em algumas situações o quadro clínico do paciente. Também pode contribuir para reduzir a efetividade dos tratamentos em função de interação com outros medicamentos utilizados para tratar situações crônicas. Além disso, é preciso estar sempre atento às reações adversas e às contraindicações no uso destes produtos.
Vale também lembrar que os medicamentos estão entre as principais causas de intoxicação no Brasil e que os analgésicos, antitérmicos e antiinflamatórios estão entre as classes de medicamentos mais envolvidas. Então, é sempre bom buscar orientação sobre a forma correta de sua utilização com um médico ou um farmacêutico, evitando o uso de produtos por sugestão de amigos, vizinhos ou familiares. Igualmente importante é não deixar de informar ao médico se já estiver utilizando algum medicamento, mesmo que de venda livre.
3) Muitas pessoas têm em casa a famosa maletinha de remédios. Qual a forma mais recomendada para guardar esses remédios?
Os medicamentos devem ser mantidos em locais secos e frescos, específicos para este objetivo, protegidos inclusive da incidência direta da luz. É importante que estejam fora do alcance de crianças e animais. Também não é conveniente que os medicamentos sejam guardados próximos aos produtos de limpeza, perfumes ou alimentos, pois isto pode comprometer a qualidade dos produtos.
Caso o medicamento precise ser armazenado em geladeira, não deve ficar na porta ou próximo do congelador, para não correr o risco de congelamento e perderem seu efeito. Para evitar erros ou trocas, é aconselhável que os medicamentos sejam armazenados separadamente para cada usuário. Outro cuidado que deve ser tomado é só manusear medicamentos em lugares claros e que sempre se leia o nome do produto antes de usá-lo. Também é interessante manter a receita junto aos medicamentos para tirar dúvidas.
Caso se opte por usar porta comprimidos, é preciso que os mesmos estejam sempre limpos e secos. De preferência, estes porta comprimidos devem ser organizados com os medicamentos que serão usados em 24 horas. Igualmente importante é lavar as mãos sempre que for manusear qualquer medicamento. Medicamentos armazenados em locais impróprios (cozinhas e banheiros, por exemplo) podem perder sua eficácia, ou mesmo dar origem a subprodutos nocivos à saúde. Por isso, caso se perceba qualquer mudança na cor, odor, manchas ou fissuras nos medicamentos, é aconselhável consultar um médico ou um farmacêutico antes de utilizá-lo..
4) Existe alguma comprovação de que a automedicação com remédios genéricos pode trazer consequências mais graves para a saúde? Quais as diferenças entre os remédios genéricos e os de referência?
Não há nenhum estudo que mostre que há maior risco na automedicação com genéricos do que com medicamentos de referência. Um medicamento de referência é o primeiro medicamento registrado com um determinado princípio ativo. Para isso, o fabricante precisa comprovar cientificamente que o produto tem eficácia, segurança e qualidade. Na embalagem sempre há o nome que a empresa inventou para o produto (nome fantasia), o nome do princípio ativo e o da empresa que produz aquele medicamento, que estará protegido por patente por alguns anos. Quando o período da patente acaba, outras empresas passam a poder produzir medicamentos com o mesmo princípio ativo. Nesse momento, poderá haver dois tipos de registro: medicamentos similares e medicamentos genéricos.
O similar terá o mesmo princípio ativo, na mesma concentração e via de administração do medicamento de referência. Também precisará comprovar que é bioequivalente e tem a biodisponibilidade do medicamento de referência. No entanto, podem ter diferenças no tamanho, cor, sabor, prazo de validade, embalagem, rotulagem etc. Nestes casos, a empresa poderá optar em adotar um nome comercial (nome fantasia) diferente para o produto.
Os medicamentos genéricos, por outro lado, são uma cópia idêntica dos medicamentos de referência (também chamados de medicamentos de marca), o que faz com que seja possível tomar o remédio genérico no lugar do de referência e vice-versa, com toda segurança. Os genéricos terão uma tarja amarela na sua embalagem, com a letra G e, logo abaixo do nome do princípio ativo, a frase “Medicamento genérico — Lei 9.787/99”.
Não há, portanto, motivo para se temer a qualidade dos medicamentos genéricos em função do seu preço ser, usualmente, inferior. Eles passam pelos mesmos testes de qualidade que os medicamentos de referência. A principal razão da redução do seu custo está no fato de que não há tantos gastos com propagandas, nem custos de pesquisa para o desenvolvimento do produto novo.
5) Quando comprar um remédio de referência e um genérico?
A decisão pela compra de um medicamento de referência ou um genérico é do consumidor. No entanto, em algumas situações, o médico pode manifestar preferência por um ou outro e, nesse caso, o usuário pode conversar com seu médico para entender essa opção. Na farmácia, qualquer dúvida pode ser tirada com o farmacêutico, para que o consumidor se sinta confortável para decidir sobre o uso do genérico ou do medicamento de referência.