Atento aos impactos da circulação de fakes news nas eleições, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) defende a necessidade de uma regulamentação das redes sociais, para que as chamadas big techs (grandes empresas de tecnologia como a Meta) sejam responsabilizadas pela presença de conteúdos falsos nas plataformas. O objetivo da minuta é proibir a manipulação de vozes e imagens de conteúdo para divulgação de desinformação contra a transparência das eleições e de propaganda negativa contra candidatos e partidos. Mas a movimentação do tribunal não é isolada: em 2020 foi aprovado pelo Senado o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como PL das Fake News, que pretende instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Atualmente, o PL aguarda votação na Câmara dos Deputados.
A propagação de conteúdos falsos pode influenciar a escolha de representantes políticos do país, mas também pode destruir vidas de anônimos e famosos. É o caso da jovem Jéssica Vitória Canedo, que cometeu suicídio em dezembro de 2023 após sofrer linchamento virtual devido à circulação de notícias falsas sobre ela nas redes sociais. Para entender do que se trata, quais os desafios e impactos da regulamentação das plataformas, conversamos com o professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, Viktor Chagas, da Universidade Federal Fluminense (UFF), além de membro associado do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital.
Qual é o cenário de regulamentação das big techs no Brasil?
Não há, no momento, no Brasil, um projeto de regulamentação das big techs. O que existe é um projeto de responsabilização de plataformas de mídias sociais, como Meta, Google, ByteDance, e outras, que provêm serviços de redes sociais online ou de mensagens privadas, a partir da PL das Fake News. Trata-se de um esforço para garantir um ecossistema de comunicação mais sadio, democrático, plural, e não vicioso. Nesse sentido, não apenas usuários e grupos de interesse que atuam maliciosamente nessas redes, mas as próprias plataformas devem atender a algumas demandas, que geram um custo e um conjunto de obrigações, com as quais talvez essas big techs não estejam dispostas a arcar.
O que é o PL 2630/2020 e qual é a sua importância no combate à desinformação?
O PL 2630/2020 é um projeto de lei cujo principal escopo é a criação de medidas de combate à circulação de desinformação e discurso de ódio no ambiente digital. Trata-se de um projeto amplo, originalmente apresentado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania), e já aprovado no Senado Federal. Sua tramitação na Câmara, porém, gerou uma série de alterações para comportar interesses políticos múltiplos. O PL é muito abrangente e cobre desde o envio de mensagens por contas falsas e robôs à regulamentação da publicidade e da propaganda eleitoral. Passa ainda por normatizações sobre a remoção de conteúdos, suspensão de contas, a identificação de agentes políticos, a nomeação de representantes legais no país, e uma série de outros dispositivos. Acabou se tornando uma espécie de colcha de retalhos para costurar posições de grupos divergentes. Ainda sim, trata-se de um projeto importante, cujo debate junto à sociedade civil é urgente para garantir o fortalecimento da democracia.
Quais são os principais desafios?
Os principais desafios a esta regulamentação são de natureza política e econômica, muito mais do que tecnológica, como alegam algumas plataformas. Do ponto de vista técnico, algumas soluções implicam custos financeiros e de pessoal, mas por trás deste discurso, há uma recusa taxativa das empresas em negociar a regulamentação de uma atividade que, por ter surgido em ambiente legislativo descompromissado, acabou alcançando uma série de vantagens. Assim, a Uber, a AirBNB, o iFood, e várias outras, são beneficiadas pela ausência de um marco regulatório que as submetam, por exemplo, a cumprir obrigações trabalhistas junto a seus prestadores de serviço. Desse modo, elas podem simplesmente declarar não haver vínculo trabalhista, e, portanto, se desresponsabilizar. No caso das plataformas de mídias sociais, a situação é semelhante. A regulamentação implica em aceitar que a responsabilidade pela circulação de conteúdos danosos é compartilhada por usuário e plataforma, ou seja, ganham uma responsabilidade nova que antes não possuíam. Há múltiplos interesses em jogo. Grupos e partidos de extrema-direita, por exemplo, que notadamente foram os que mais se beneficiaram da ausência de regulamentação e da circulação de desinformação nos últimos anos, têm se posicionado contrários ao projeto.
O Projeto de Lei divide impressões: alguns o relacionam ao combate às fake news e outros a censura. Pode explicar a polêmica?
A ideia de que o projeto de lei visa a instituir a censura é uma falácia empregada por grupos extremistas de direita, no sentido de bloquear o debate público sobre o tema. O argumento é de que a simples normatização e responsabilização das plataformas e dos usuários poderia implicar vetos à liberdade de expressão. Porém, em todo e qualquer sistema democrático, as liberdades individuais, inclusive a de expressão, são regulamentadas. Ninguém pode proferir uma ofensa racista sem incorrer em crime, e o mesmo deve ocorrer no ambiente digital. Há quem diga que, se esses crimes já encontram previsão legal nos dispositivos jurídicos que temos, não haveria necessidade de uma nova lei. Entretanto, o ordenamento jurídico atual é insuficiente para determinar quais responsabilidades competem ao indivíduo e à plataforma. É nesse sentido que o projeto atua, como uma espécie de lei complementar, instituindo normas e sanções legais a agentes que antes se aproveitavam de uma certa ambiguidade nos dispositivos vigentes para criar insegurança jurídica.
Como outros países têm promovido ações quanto ao uso de IAs nas plataformas?
Os projetos de regulação da inteligência artificial, mesmo em outros países, são ainda muito incipientes. Talvez uma das primeiras e mais incisivas iniciativas seja o acordo definido pela União Europeia, popularmente conhecido como Ato da Inteligência Artificial, um documento aprovado em dezembro do ano passado que determina responsabilidades às plataformas e aos indivíduos conforme os usos da IA. Segundo o Ato, há os usos de alto risco, como em exames médicos ou no recrutamento de empresas; e os que são definidos como inaceitáveis, como uso de câmeras de reconhecimento facial. De forma geral, as ações provenientes de acordos entre os países membros da União Europeia têm sido mais restritivas que aquelas em discussão no Brasil. O PL 2630, até a sua última versão em tramitação pública, não dispunha sobre os usos da IA, exceto no que se refere às sanções ao uso de bots maliciosos em plataformas de mídias sociais.
As notícias falsas não são um fenômeno novo. Quais são as influências das tecnologias digitais nessa dinâmica?
A disseminação de rumores ou boatos, de certa maneira, sempre existiu. O que muda e torna o fenômeno algo de urgente concernimento hoje é o seu modo de difusão. Nesse sentido, os meios de comunicação em massa são os protagonistas dessa questão. São eles que dão vazão a uma difusão veloz e de grande capilaridade e alcance mesmo a conteúdos sabidamente falsos.
Como evitar que a tecnologia seja utilizada para expandir a desinformação?
É preciso educar o cidadão. O letramento midiático e o letramento político são ferramentas essenciais para revertermos esse quadro. O grande problema é que, toda vez em que sugerimos que a educação é parte da solução, há uma tendência a se cultivar um horizonte de longo prazo, quando os problemas que enfrentamos hoje são de curtíssimo prazo. Além disso, fala-se muito em letramento midiático, em fornecer instrumentos ao indivíduo para que ele consiga discernir criticamente o que são informações falsas ou verdadeiras. Mas essa hipótese não soluciona o cenário em que este indivíduo compartilha uma informação falsa sabidamente porque compactua daquela visão. Estudos sustentam que esse é um dos principais fatores na disseminação de fake news. Não é que os indivíduos não saibam do que se trata e sejam enganados. Eles não apenas sabem, como concordam, e por isso compartilham. Assim, talvez não se trate de apostar todas as fichas na educação. Ela é importante, sem dúvida. Mas, a curto prazo, a solução é política. É preciso que os agentes e instituições políticas do campo democrático se reúnam e criem mecanismos para regular o mau uso dessas plataformas. Sem isso, estaremos sujeitos a uma gangorra que oscila conforme os desígnios de quem, naquele momento, se ocupa do poder.
O que é Deepfake e como elas podem impactar eleições?
Deepfake pode se referir a um tipo de conteúdo ou tecnologia que utiliza inteligência artificial ou técnicas de manipulação da imagem para criar arquivos falsos. Com ele, é possível, por exemplo, dublar de forma bastante verossímil uma determinada personalidade pública, inclusive com um padrão de voz que se assemelhe ao dela própria, fazendo a dar declarações que jamais deu. É um tipo de conteúdo bastante controverso que pode, sem dúvida, ser utilizado de forma absolutamente danosa, especialmente em um contexto eleitoral.
Como as redes sociais podem ser responsabilizadas pela circulação de conteúdos falsos e qual é a importância para garantir a integridade do processo eleitoral e a proteção da sociedade contra a desinformação?
Plataformas de mídias sociais podem ser responsabilizadas pela circulação de desinformação e discurso de ódio de diferentes maneiras. Mais importante do que as sanções em si, é o debate em torno do papel que essas plataformas desempenham. É importante para o público compreender que grande parte dos conteúdos acessados nessas plataformas é proveniente de sistemas de recomendação, baseados em algoritmos sociais. O grande problema é que não se trata apenas de um mecanismo técnico, mas de um dispositivo sóciotecnico, que, como outros similares, pode perfeitamente ser “hackeado”. Embora os sistemas de recomendação não sejam eles próprios o problema, o seu mau uso permite a atuação de grupos antidemocráticos. E, por favorecerem essa atuação e não apresentarem uma solução capaz de eliminar esses vieses, é que as plataformas devem ser responsabilizadas. Afinal, elas são o terreno ou as estradas por onde circulam esses conteúdos.
A desinformação e as notícias falsas são uma realidade incontornável?
De certo modo, sim. É preciso estarmos atentos e fortes para lidarmos com um cenário que não prescinde desses elementos. Mas, até certo ponto, o problema da desinformação está no alcance e na capilaridade que ela tem obtido. É isso que precisamos, antes de mais nada, enfrentar.
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Viktor Henrique Carneiro de Souza Chagas é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF). É bolsista de produtividade em pesquisa (PQ-2) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). É membro associado do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD). Foi bolsista CNPq de Pós-Doutorado Junior em Comunicação e Cultura pela UFBA. Doutor em História, Política e Bens Culturais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (Cpdoc-FGV), dedica-se a investigações na área da Comunicação Política, em especial na interface entre Internet e Culturas Políticas, Economia Política da Informação, e Jornalismo e Política. Em 2014, foi contemplado com o prêmio de melhor tese de doutorado pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), além de outros prêmios como pesquisador e orientador acadêmico. Foi secretário executivo da Associação Brasileira de Pesquisadores em Comunicação Política (Compolítica) na gestão 2019-2021 e é editor-chefe do periódico científico Revista Compolítica. É líder do grupo de pesquisa coLAB/UFF, e coordenador do projeto de extensão #MUSEUdeMEMES. Foi ainda coordenador do curso de graduação em Estudos de Mídia da UFF (2013-2017). E, anteriormente, membro (2006-2012) e coordenador (2009-2012) da equipe editorial do projeto Overmundo, e coordenador-em-exercício e coordenador editorial (2012-2013) do projeto Viva Favela.