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Superbactérias se tornam desafio para a saúde pública

O uso inadequado de antibióticos cria bactérias mais resistentes e dificulta o tratamento

As chamadas superbactérias são microrganismos que resistem a diversos tipos de antibióticos e dificultam, ou até impossibilitam, o tratamento de infecções que antes eram facilmente controladas. Apesar de ocorrer de forma natural, por meio de mutações ou pela transferência de genes entre diferentes bactérias, a resistência desenvolvida também é resultado do uso excessivo, ou inadequado, de antibióticos. 

Ao se desenvolverem, essas bactérias confrontam os tratamentos mais comuns da medicina moderna, ou seja, quando uma infecção é causada por uma superbactéria, os antibióticos tradicionais perdem ou reduzem a eficácia. Isso força os médicos a recorrerem a tratamentos mais complexos, caros e muitas vezes menos acessíveis, o que pode prolongar o tempo de hospitalização dos pacientes, aumentar os custos de tratamento e, em casos mais graves, levar à morte. Em estudo, a Organização Mundial da Saúde (OMS) chegou a classificar esta categoria de bactérias como uma das maiores ameaças à saúde pública global.

De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o uso inadequado de antibióticos em humanos e em animais de criação é apontado como um dos principais fatores para o surgimento dessas superbactérias. Além disso, em ambientes hospitalares, onde o uso de medicamentos de combate é intenso, a disseminação desses microrganismos é ainda mais preocupante. Ademais, infecções comunitárias também estão em um cenário frequente, o que potencializa a necessidade de controle e conscientização sobre o uso de medicamentos para a população geral.

Segundo o professor do Departamento de Patologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Thiago Chagas, a maioria dos mecanismos de suporte apresentados pelas bactérias são codificadas por um ou mais genes, que são transferidos por meio de diversas maneiras. “Esses genes podem ser passados de uma bactéria para outra de várias formas e podem estar localizados tanto no DNA principal da bactéria (cromossomo) quanto em outras partes menores, como os plasmídeos”, explica o especialista, que também aponta duas características para o desenvolvimento de resistência bacteriana: intrínseca ou adquirida.

“A resistência intrínseca faz parte das características naturais do microrganismo de um gênero ou espécie bacteriana, é como se fosse uma herança genética daquele gênero ou espécie, resultante da genética e fisiologia natural do microrganismo. A resistência adquirida ocorre quando uma bactéria que antes era vulnerável a um medicamento desenvolve novas maneiras de se proteger. Neste modelo, as bactérias adquirem novas características a partir de mutação genética, transferência de genes de outros organismos, ou ainda de uma associação de ambos”, acrescenta Chagas.

De acordo com o professor, os genes de tenacidade aos antibióticos podem ser mobilizados entre bactérias da mesma espécie e também entre espécies distintas, por meio de um processo chamado de transferência horizontal de genes. “Essa troca de informações genéticas envolve mecanismos específicos, como a transformação, em que a bactéria incorpora DNA do ambiente; a transdução, realizada por vírus bacteriófagos; e a conjugação, que ocorre de célula a célula. Esses processos são comuns na natureza e acontecem, por exemplo, quando o uso de antibióticos exerce uma pressão seletiva sobre as bactérias”.

Embora as bactérias sejam geralmente associadas a doenças, muitas delas desempenham um papel fundamental no corpo humano, especialmente na microbiota – conjunto de microrganismos que vivem em um ambiente particular. No caso humano, inclui a microbiota da pele, microbiota gastrointestinal e de outras áreas do organismo, que ajudam na digestão, protegem contra patógenos e regulam o sistema imunológico.

“Elas são essenciais para o equilíbrio das funções biológicas, ajudando, por exemplo, na digestão e na defesa contra patógenos. Quando ocorre um desequilíbrio nessa microbiota, isso pode afetar diretamente o bom funcionamento do corpo. Com isso, ao utilizarmos antibióticos para combater bactérias patogênicas, também podemos acabar eliminando bactérias benéficas da nossa microbiota. Quando isso acontece, as bactérias resistentes ganham vantagem, pois, com a eliminação das bactérias benéficas, elas encontram menos competição para se multiplicar, o que é intensificado pela pressão seletiva provocada pelo uso de antibiótico”, analisa o patologista. 

O especialista também destaca que o processo da transferência horizontal de genes pode ocorrer tanto entre bactérias da mesma espécie quanto entre espécies diferentes. “Isso significa que, se uma superbactéria estiver presente na microbiota, ela pode transferir seus genes de resistência para outras bactérias que normalmente não seriam resistentes. Dessa forma, uma bactéria sensível que faz parte da microbiota pode adquirir esses genes tenazes e, com isso, alterar a composição genética da microbiota. Este processo pode contribuir para o surgimento de doenças e infecções mais difíceis de tratar, já que as bactérias mais fortes podem se proliferar e se tornar dominantes em um ambiente que antes era equilibrado”, explicou o professor.

O que é o Recarbrio e quando é utilizado?

Em busca de reduzir os danos apontados, a Anvisa aprovou um novo tratamento para infecções causadas por bactérias super-resistentes, a partir do medicamento Recarbrio. Ele reúne três substâncias: imipenem, cilastatina e relebactam, que são indicados principalmente para casos em que as infecções não respondem aos tratamentos convencionais. 

De forma resumida, o imipenem destrói a parede celular das bactérias, o que leva à morte delas. No entanto, essa substância é eliminada rapidamente pelos rins. Para evitar isso, é incluída a cilastatina na fórmula, o que permite o antibiótico permanecer ativo por mais tempo no corpo do paciente. Por sua vez, o relebactam, tem a função de inibir a ação das enzimas que as bactérias produzem para resistir ao tratamento com antibióticos. Ao combinar essas três substâncias, o Recarbrio torna-se uma alternativa eficaz no combate a infecções resistentes.

“O Recarbrio é uma tentativa para enfrentar a ameaça progressiva da resistência das superbactérias, a todos os antibióticos da classe dos beta-lactâmicos (incluindo os carbapenêmicos) – ou comuns -,  sendo que muitas dessas bactérias são multirresistentes e apresentam resistência a outras classes de antibióticos, como as quinolonas, aminoglicosídeos e até as polimixinas”, explica o professor.

Apesar dessa alternativa, o número de opções terapêuticas continua limitado e depende do avanço de pesquisas para o desenvolvimento de novos antibióticos. Especialistas também alertam para a necessidade de reservar esses tratamentos para casos mais críticos, a fim de evitar o uso abusivo de medicamentos e promover o controle rigoroso sobre a prescrição de antibióticos. 

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Thiago Pavoni Gomes Chagas é Professor Adjunto e Subchefe do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde também atua como Vice-Coordenador do Curso de Especialização em Análises Clínicas. Faz parte do Laboratório de Epidemiologia Molecular e Biotecnologia (LEMB) do Laboratório Universitário Rodolpho Albino (LURA). Realizou estágio pós-doutoral na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2017-2018) e possui doutorado (2011-2015) e mestrado (2009-2011) em Ciências pelo Instituto Oswaldo Cruz/FIOCRUZ, com foco em Medicina Tropical. Além disso, possui especialização em Controle de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (UFF, 2016) e em Educação Básica com ênfase em Ensino de Biologia (UERJ, 2010-2011), além de formação em Ciências Biológicas (UERJ, 2004-2008). Suas principais pesquisas incluem bacteriologia e genética de microrganismos, com foco em resistência antimicrobiana, bactérias Gram-negativas, diversidade microbiana, genética bacteriana e tipagem molecular. 

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