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UFF Responde: Inteligência Artificial e mercado de trabalho

Cada vez mais presente, a Inteligência Artificial pode ser tanto benéfica quanto negativa para os trabalhadores no Brasil

A Inteligência Artificial (IA) é uma área da ciência da computação que tem como finalidade desenvolver sistemas computacionais que imitam o comportamento inteligente humano, tais como o raciocínio e o aprendizado, com objetivos diversos, como organizar dados, gerar imagens ou realizar funções simples. De maneira simplificada, ela é desenvolvida por meio de algoritmos computacionais que permitem manipular e fazer inferências e raciocínio lógico sobre informações de entrada.

No âmbito do trabalho, a IA assusta os profissionais que receiam serem “substituídos” pela praticidade e otimização de tempo, além de facilitar a “uberização” de alguns serviços, como de transporte particular e de entrega de alimentos. Contudo, ela também pode ser aplicada de forma benéfica, auxiliando os empregados em tarefas complexas que podem ser executadas de maneira mais eficiente. Neste UFF Responde, os especialistas da universidade Mariza Ferro e Paulo Cruz Terra explicam sobre a IA e a sua interferência na esfera do trabalho.

O que é a Inteligência Artificial?

Terra: De um modo bem simples, a Inteligência Artificial (IA) significa sistemas de computadores exercerem capacidades que antes eram atribuídas aos seres humanos, como aprender, ter percepção visual e tomar decisões. Isso significa dizer que o desenvolvimento da IA implica na criação de modelos que possibilitam que os computadores não só processem os dados, mas que aprendam com eles, e também resolvam problemas e tomem decisões.

Como ela funciona?

Terra: O desenvolvimento da IA remonta principalmente a década de 1950, com o cientista inglês Alan Turing, e a uma conferência em Dartmouth, em 1956, onde o termo foi utilizado pela primeira vez. O objetivo era criar máquinas que pudessem imitar ou ter uma inteligência próxima à humana.

Ferro: No caso do Aprendizado de Máquina, a sub-área mais famosa da IA, a partir de conjuntos de dados de entrada (informações que recebe), a IA infere como gerar resultados como previsões, classificações, recomendações ou novos conteúdos no caso das técnicas generativas. Essa é uma área de estudo aplicada em muitos domínios, como saúde, agricultura, clima e meio ambiente, economia e indústria. Ela se popularizou recentemente por ter disponibilizado ferramentas para o público como ChatGPT, Mid Journey, entre outras, mas até mesmo os spams descartados na sua caixa de e-mail são automaticamente selecionados por técnicas de IA há muito tempo.

Terra: Os bancos de informação são fundamentais para a IA, já que um dos procedimentos básicos é o processamento de dados, mais ainda por conta do Machine Learning (Aprendizado de Máquina), ou seja, como os computadores passam a aprender e aprimorar o seu desempenho. Esses bancos são alimentados até o momento por humanos.

Em quais situações é mais aplicada?

Terra: A IA está presente nos mais diversos aspectos do nosso cotidiano, desde as recomendações feitas pelos serviços de streaming acessados nas nossas TVs ou nos celulares até nas plataformas de delivery que pedimos a nossa refeição. Além disso, um uso que cresce cada vez mais é no setor de segurança, em que se tem, por exemplo, a tecnologia de reconhecimento facial.

Com a popularização da IA, surgem diversas ferramentas e plataformas, como o ChatGPT. Há motivos para se preocupar com essa “fama”?

Ferro: A preocupação não deve vir da sua popularização, mas sim da maneira que vem sendo desenvolvida e utilizada, muitas vezes sem responsabilidade e sem observar critérios éticos. As preocupações são infringir direitos humanos, como liberdade e igualdade, os problemas de estereótipo de gênero, raça ou sociais, manipular as pessoas pelas suas fraquezas psicológicas e o uso para influenciar nas decisões, como já vimos em processos eleitorais recentes.

Terra: A expansão cada vez mais intensa das IAs deve ser acompanhada de perto pelos governos, que devem também regulá-las. As IAs, assim como outras formas de tecnologia, não são neutras ou isentas, como alguns podem fazer crer, e estão ligadas a diversos interesses. Nesse sentido, é fundamental procurar entender as suas possibilidades, mas também garantir direitos da população que podem ser infringidos a partir de seu uso, um deles, por exemplo, é o direito à privacidade.

Abordando as relações profissionais, como essa tecnologia transforma o mercado de trabalho?

Terra: A introdução da IA nas relações de trabalho causou múltiplos efeitos, mas um crucial é a criação das plataformas digitais, que estão, por exemplo, nos aplicativos de delivery de mercadorias e no serviço de transporte de passageiros. Esse impacto é tão grande que se criou o termo “uberização”, ou “plataformização”, justamente para se referir aos efeitos da introdução da IA nas relações de trabalho, que impactam não só o setor de transporte, mas diversos outros, como o de saúde e de educação.

Ferro: Há uma previsão de que haja uma grande redução de postos de trabalho com enorme impacto nos países da América Latina. Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), 25% dos empregos podem ser impactados por automação com tecnologias de IA na América Latina, sendo que aproximadamente 30 milhões de empregos estariam em risco até 2026 no Brasil e mais da metade deles ameaçados em todos os municípios brasileiros até 2040. As profissões que serão mais impactadas são as que têm tarefas repetitivas e que necessitam de pouca instrução, mas também algumas atividades como Jornalismo e Marketing. Sistemas automatizados com IA poderão substituir algumas profissões, mas é preciso ter em mente que outras profissões serão criadas, necessitando provavelmente de maior grau de instrução.

Como essa tecnologia fragiliza as relações de trabalho?

Terra: O efeito da uberização nas relações de trabalho é que as plataformas digitais surgem como intermediárias entre os trabalhadores e os consumidores. Assim, os trabalhadores são entendidos como trabalhando por conta própria, ou autônomos, e as plataformas não são vistas legalmente como patrões. A consequência direta é que o trabalho por meio das plataformas implica a ausência total de direitos trabalhistas. O que se discute, no entanto, é que as mesmas plataformas possuem meios de controle e punição dos trabalhadores, embora se isentem de garantia de qualquer direito. Além disso, as empresas das plataformas auferem lucros exorbitantes a partir do serviço dos trabalhadores.

O impacto da IA no mercado de trabalho que observamos hoje é uma intensificação da precarização das relações de trabalho, o que significa na prática um número cada vez maior de trabalhadores sem garantia de direitos básicos, como férias remuneradas ou auxílios em caso de saúde. O receio de algumas profissões desaparecerem ou serem substituídas por IAs é real. Hoje em dia, já é possível verificar que o trabalho de tradução pode ser feito por sistemas cada vez mais eficientes, substituindo assim a expertise dos tradutores, ou também o desenvolvimento de sistemas que já substituem os dubladores. Assim como nesses exemplos, muitas outras profissões correm o risco de serem substituídas por IAs em um futuro próximo.

Por outro lado, como ela pode ser aplicada de forma positiva para os trabalhadores?

Terra: A IA pode otimizar determinados processos de trabalho, tornando-os mais eficientes, o que significa que determinadas etapas dos processos de trabalho podem ser simplificadas com o uso da tecnologia.

O processamento de dados e análise dos mesmos, apontando possíveis soluções, pode auxiliar, por exemplo, nos processos de logística e gerenciamento de estoque, ou no controle de qualidade da produção de produtos. Contudo, reforço a importância de que essa otimização deve ser pensada em consonância com a garantia dos direitos dos trabalhadores.

Alguns estudos afirmam que o desenvolvimento da IA pode contribuir para a diminuição das jornadas de trabalho. Acredita que isso realmente será aplicado?

Terra: A ideia de que o desenvolvimento da IA irá contribuir para a diminuição das jornadas de trabalho se mostra bastante duvidosa quando olhamos para o impacto de outras tecnologias ao longo da nossa história. O mesmo se dizia, por exemplo, em relação à introdução da internet, mas o que verificamos é que ela não necessariamente trouxe uma jornada menor, mas, em muitos casos, a intensificou. Hoje, por meio da internet, temos acesso ao trabalho em qualquer lugar e a qualquer tempo. A otimização dos processos de trabalho que o uso da IA pode trazer se reverte, principalmente, no aumento de lucro dos empresários, mas não necessariamente numa melhoria de condições para os trabalhadores.

A exemplo da greve de roteiristas em Hollywood no ano passado, surgem outros movimentos a favor da limitação do uso da IA. Qual o impacto desses movimentos? Você acha que eles tendem a crescer cada vez mais?

Terra: A nossa história mostra que os trabalhadores muitas vezes buscaram meios de lutar pela garantia do trabalho e por direitos. O que estamos observando é um movimento em que os trabalhadores de diversas partes do mundo estão se manifestando sobre os impactos do uso da IA. No Brasil, por exemplo, temos a realização dos Breques dos Apps, que são as paralisações dos entregadores por aplicativo que demandam direitos. Mobilizações como essas são cruciais para mostrar a perspectiva dos trabalhadores sobre o processo em curso e também para pressionar as autoridades para que os direitos trabalhistas sejam garantidos. Em alguns países da Europa, como Espanha, Inglaterra e Portugal, os movimentos dos trabalhadores têm alcançado seus objetivos.

O projeto governamental de regulamentação das plataformas pode ser um meio de preservar as relações de trabalho frente aos avanços das IAs?

Terra: É fundamental que o governo pense em formas de regulamentar as IAs nos mais diversos aspectos, como o seu uso na segurança pública, por exemplo. No caso das relações de trabalho, a importância da regulação está na garantia de direitos básicos aos trabalhadores. Em diversos países da Europa, os governos reconheceram os direitos dos trabalhadores por plataforma, como na Inglaterra, cuja Suprema Corte, em 2021, observou que os motoristas de Uber não são trabalhadores autônomos e podem acessar os direitos trabalhistas, ou ainda a Espanha, que no mesmo ano considerou que os entregadores por meio de aplicativos devem ser legalmente considerados assalariados, tendo, portanto, os mesmos direitos. O Brasil deve, assim, se somar às discussões internacionais que buscam garantir direitos aos trabalhadores na nova ordem impactada pelo uso da IA.

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Mariza Ferro é professora do Instituto de Computação da Universidade Federal Fluminense (UFF) na área de Inteligência Artificial (IA), é coordenadora do Núcleo de Referência em IA Ética e Confiável e do Consórcio para Políticas Públicas em Inteligência Artificial Ética (EticALIA). Também é pesquisadora apoiada pelo Instituto Serrapilheira e membro da Sociedade Brasileira de Computação (SBC), atuando na Comissão de Educação para o biênio 2023-2025. Membro da Association for Computing Machinery (ACM). Membro da Comissão de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina UFF.

Paulo Cruz Terra é professor de História do Brasil República no Departamento de História, da Universidade Federal Fluminense (UFF), além de atuar no Programa de Pós-graduação em História da mesma instituição. É membro da diretoria da ANPUH, Seção Regional Rio de Janeiro, e da diretoria da Sociedade de Estudos do Oitocentos (SEO). É um dos editores da Série “Social History of Punishment and Labour Coercion”, da Amsterdam University Press. Também faz parte do Conselho Editorial da Série “Work Around the Globe: Historical Comparisons and Connections”, uma parceria da UCL do International Institute of Social History.

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