Fora dos muros da universidade, crescem as discussões sobre temas feministas e raciais. Cada vez mais, a sociedade vem se conscientizando acerca da necessidade de repensar as estruturas discriminatórias que a compõem. A mobilização social causada pelo assassinato da vereadora e ex-aluna do mestrado em Administração Pública da UFF, Marielle Franco, importante liderança feminina e negra no estado do Rio de Janeiro, é um exemplo recente da necessidade de dar voz ao público negro e feminino, historicamente silenciado.
Tendo em vista a urgência de trazer essas discussões para o ambiente acadêmico, há três anos, um grupo de estudantes e professores da Faculdade de Direito da UFF criou o Grupo de Estudos Afrofeministas Anastácia Bantu, no qual está inserido o Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia – http://www.sdd.uff.br/index.php/projetos/anastacia-bantu/ -. Desde então, eles se reúnem para discutir questões relacionadas à raça e gênero. Inicialmente, segundo a professora e coordenadora, Carolina Câmara Pires dos Santos, somente mulheres participavam, em sua maioria graduandas do curso. Posteriormente, alunas da pós-graduação e um aluno do curso se juntaram ao projeto.
O Anastácia Bantu se tornou muito mais que um projeto de pesquisa. Ele é um espaço para troca de afeto e desenvolvimento da resistência contra o racismo, dentro e fora da academia”, Carolina Pires.
O principal foco do grupo é estudar práticas discriminatórias, partindo da perspectiva de mulheres negras. “A ideia é suscitar reflexões sobre problemáticas de gênero e raça, buscando enfrentar formas de opressão distintas, definidas em termos de classe, orientação sexual, etnia, raça, idade, estética, entre outras. Além disso, outro objetivo nosso é o combate o racismo institucional, ponderando soluções que tornem o ambiente acadêmico um espaço epistemológico plural e diverso”, explica a coordenadora.
Carolina, enquanto estudante do mestrado em Sociologia e Direito, identificou a ausência de disciplinas que tratassem sobre discriminação racial e de gênero. Influenciada pelo I Seminário Internacional sobre o Pensamento das Mulheres Negras da Diáspora Africana, realizado em dezembro de 2014, em Salvador-BA, elaborou uma proposta de projeto de pesquisa que fosse norteada a partir do pensamento desse universo feminino. Apresentou a ideia para as estudantes da graduação em Direito, que concordaram e colaboraram na construção, formando assim o coletivo de estudos.
“O Anastácia Bantu se tornou muito mais que um projeto de pesquisa. Ele é um espaço para troca de afeto e desenvolvimento da resistência contra o racismo, dentro e fora da academia”, destacou a coordenadora, ressaltando que o grupo compreende que a abolição da escravatura foi inconclusa e que nesse aspecto ainda há muito a ser feito.
Na entrevista a seguir, Carolina Pires, amplia o debate sobre questões relevantes discutidas pelo grupo:
Por que a escolha de Anastácia Bantu para nomear o grupo de pesquisa?
Há dois fatos de extrema importância histórica: era ela que organizava os movimentos de resistência dentro da senzala e articulava a fuga de outros escravos para os quilombos. Em represália à rebeldia, foi colocada uma mordaça de ferro em sua boca para impedi-la de falar e se comunicar com seu povo. Ainda assim, ela conseguia ajudar homens e mulheres escravizados a curar as feridas corporais provocadas pelos açoites e torturas por meio da sabedoria ancestral. Portanto, Anastácia foi considerada como um símbolo de luta contra a escravidão e posteriormente, uma santa milagreira pelo povo negro, embora sua história e sua própria existência tenham sido contestadas e silenciadas durante anos pela Igreja Católica e pela história hegemônica. Nesse contexto, o nome foi escolhido para homenagear essa liderança feminina, além de evidenciar sua origem africana e demonstrar que nós, mulheres negras inseridas no ambiente acadêmico do Direito, temos voz e que não permitiremos, em hipótese alguma, sermos silenciadas.
Quais as principais atividades e pesquisas desenvolvidas pelo projeto?
O Anastácia se transformou em um espaço de resistência e enfrentamento ao “epistemicídio”; ou seja, a negação ou morte do saber, da intelectualidade negra, considerando que as referências bibliográficas de intelectuais negros, independente do gênero, ainda são raras nos cursos oferecidos na faculdade. Então, nos dedicamos à leitura de uma bibliografia negra, pensada principalmente por mulheres negras, para potencializar nossas escritas e retirar a intelectualidade negra do anonimato acadêmico. O projeto surgiu com a finalidade apenas de pesquisa, mas dada a luta contra as diversas faces do racismo dentro do curso de Direito, necessitamos nos organizar também enquanto coletivo para promover articulações políticas que efetivem ações afirmativas e bem-estar de alunos e alunas negras em um ambiente majoritariamente branco.
A partir desse momento surgiram eventos de mobilização?
Sim! Promovemos o I Seminário Direito e Racismo da UFF, com o apoio do Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia, coordenado pelo professor Eder Fernandes, com a participação do Centro Acadêmico Evaristo da Veiga (CAEV) e do Coletivo de Estudantes Negros da UFF (CenUFF), que reúne todos os coletivos negros dos cursos da graduação e tem sido um grande parceiro nosso, estando sempre presente em nossas ações. Além da atuação dentro da universidade, promovemos cursos em espaços do movimento negro e rodas de conversas em escolas públicas e projetos sociais com o objetivo de estabelecer um diálogo com a juventude negra, falando sobre autoestima, combate ao racismo e acesso ao ensino superior.
Quantas pesquisas já foram desenvolvidas até agora e quantas estão em andamento?
As pesquisas do Anastácia estão atreladas aos nossos trabalhos acadêmicos dentro da graduação e pós-graduação. Os temas das nossas pesquisas são bem diversos: Direito à Moradia, Gênero e Raça; Sistema Prisional e Racismo; Criminologia e Racismo Institucional; Ações Afirmativas; Educação e Racismo; Nutrição no âmbito das comunidades quilombolas; Sexualidade e Racismo, etc. Enfim, são temas que acompanham nossas trajetórias e experiências pessoais e acadêmicas. Já foram realizadas duas defesas de dissertação: “Elekô – Mulheres Negras na Luta por Direito à Moradia na Cidade do Rio de Janeiro”, minha dissertação, que tratou sobre as relações de poder, discriminação racial, de gênero e classe no âmbito das remoções das favelas no Rio de Janeiro e “Olhar Insurgente sobre o Sistema Prisional”, da colega Clarissa Félix, que tratou sobre a seletividade do sistema prisional a partir da perspectiva racial. Atualmente, temos nove pesquisas em desenvolvimento, mas posso dizer que o questionamento que atravessa as investigações do Projeto Anastácia Bantu é: qual é o papel do Direito na perpetuação ou combate da discriminação racial e de gênero? Pois é a partir desta indagação que mergulhamos na bibliografia das intelectuais e ativistas negras, realizamos nossas reflexões e debates e, posteriormente, nos dedicamos a escrever nossos trabalhos acadêmicos.
Quantos pesquisadores participam do projeto?
Somos 11 pesquisadoras nas áreas de Sociologia, Comunicação, Direito, Segurança Pública, Arquitetura e Urbanismo, Direitos Humanos, Governança e Poder, Ciências Sociais, Educação, Assessoria Jurídica Popular e Direitos Humanos.
Em sua opinião, qual a importância desse grupo para a universidade e para o curso de direito?
As reflexões trazidas pelas intelectuais negras nos fazem pensar de maneira profunda, ampliam nossos horizontes nos debates e, desta maneira, nos orientam a destruir práticas racistas enraizadas e naturalizadas dentro do espaço universitário. Lélia González, Beatriz Nascimento, Neusa Santos, Kimberle Crenshaw, Audre Lorde, Patrícia Hill Collins, Angela Davis, Keisha Khan-Perry, Luciane Rocha, Thula Pires, Jurema Werneck, dentre tantas outras intelectuais, nos conduzem por meio das suas teorias a exercitar o enfrentamento dessa estrutura racista e sexista que nos oprime.
Pode dar um exemplo?
Sim. A presença e a organização de estudantes negras na faculdade de Direito, por exemplo, motivaram a vinda do professor Jacques D’Adesky, renomado intelectual negro, que hoje ministra aulas como professor visitante do Programa de Pós-Graduação e que nos auxilia, desde o I Direito e Racismo, nas reflexões sobre relações raciais no Brasil. A vinda dele é uma conquista, não somente pela representatividade no quadro de professores da pós-graduação, mas também pela qualidade dos seus artigos, livros e reflexões em sala de aula. Ele atualmente coordena uma pesquisa intitulada “Direito, Justiça e Pluralismo Étnico-Racial”, que envolve alunos do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD).
Gostaríamos que falasse um pouco sobre como é a convivência acadêmica entre alunos e professores com pensamentos e atitudes tão distintas.
Tem sido bem interessante perceber o quanto a comunidade acadêmica ainda não está preparada para receber e conviver com alunos e alunas negros. Muitos professores e administradores não sabem lidar com a nossa autonomia e com o fato de sermos os protagonistas da nossa própria história. Eles ficam extremamente incomodados com a nossa altivez, o nosso domínio sobre os temas raciais, as denúncias de práticas racistas naturalizadas. Não viemos para o espaço acadêmico para dar continuidade ao mito da democracia racial, para fazer pacto de mediocridade e nos subjugar ao modus operandi da hegemonia branca. Estamos aqui para falar por nós mesmas, construir métodos de pesquisa que não nos use como objetos, que representem nossas lutas de maneira digna. Portanto, a presença do Anastácia Bantu e de outros coletivos negros fortalece o combate à violência gerada pelas microagressões raciais no dia-a-dia do campus. Especificamente no Direito, temos questionado o papel da estrutura jurídica na perpetuação do racismo e da discriminação de gênero na sociedade e apontamos que esse modelo jurídico proposto, desde sua origem, nunca nos representou. Assim, exigimos a manutenção das conquistas pautadas por aqueles e aquelas que nos antecederam e, por fim, nos lançamos em novos desafios para alcançar, de fato, a paridade de direitos.Fora dos muros da universidade, crescem as discussões sobre temas feministas e raciais. Cada vez mais, a sociedade vem se conscientizando acerca da necessidade de repensar as estruturas discriminatórias que a compõem. A mobilização social causada pelo assassinato da vereadora e ex-aluna do mestrado em Administração Pública da UFF, Marielle Franco, importante liderança feminina e negra no estado do Rio de Janeiro, é um exemplo recente da necessidade de dar voz ao público negro e feminino, que historicamente vem sendo silenciado.
Tendo em vista a urgência de trazer essas discussões para o ambiente acadêmico, há três anos, um grupo de estudantes e professores da Faculdade de Direito da UFF criou o Grupo de Estudos Afrofeministas Anastácia Bantu, no qual está inserido o Grupo de Pesquisa Sexualidade, Direito e Democracia – http://www.sdd.uff.br/index.php/projetos/anastacia-bantu/ -. Desde então, eles se reúnem para discutir questões relacionadas à raça e gênero. Inicialmente, segundo a professora e coordenadora, Carolina Câmara Pires dos Santos, somente mulheres participavam, em sua maioria graduandas do curso. Posteriormente, alunas da pós-graduação e um aluno do curso se juntaram ao projeto.
O principal foco do grupo é estudar práticas discriminatórias, partindo da perspectiva de mulheres negras. “A ideia é suscitar reflexões sobre problemáticas de gênero e raça, buscando enfrentar formas de opressão distintas, definidas em termos de classe, orientação sexual, etnia, raça, idade, estética, entre outras. Além disso, outro objetivo nosso é o combate o racismo institucional, ponderando soluções que tornem o ambiente acadêmico um espaço epistemológico plural e diverso”, explica a coordenadora.
Carolina, enquanto estudante do mestrado em Sociologia e Direito, identificou a ausência de disciplinas que tratassem sobre discriminação racial e de gênero. Influenciada pelo I Seminário Internacional sobre o Pensamento das Mulheres Negras da Diáspora Africana, realizado em dezembro de 2014, em Salvador-BA, elaborou uma proposta de projeto de pesquisa que fosse norteada a partir do pensamento desse universo feminino. Apresentou a ideia para as estudantes da graduação em Direito, que concordaram e colaboraram na construção, formando assim o coletivo de estudos.
“O Anastácia Bantu se tornou muito mais que um projeto de pesquisa. Ele é um espaço para troca de afeto e desenvolvimento da resistência contra o racismo, dentro e fora da academia”, destacou a coordenadora, ressaltando que o grupo compreende que a abolição da escravatura foi inconclusa e que nesse aspecto ainda há muito a ser feito.