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Desfile da Victoria’s Secret revive moda e padrões dos anos 2000

Transformações do mercado da moda trazem a reinterpretação dos ideais de beleza

A moda constantemente revisita períodos que marcaram gerações, e um dos retornos mais comentados – e criticados – é o das tendências dos anos 2000. Roupas icônicas como calças de cintura baixa, mini saias, “tops cropped” e o uso exagerado de brilhos voltam às ruas com uma estética de nostalgia. Além disso, reacende discussões sobre padrões de beleza que dominaram aquela época e, em muitos casos, promoveram ideais corporais contestados por serem excludentes e prejudiciais à saúde. 

A doutora em antropologia, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Modernidade da Universidade Federal Fluminense (NEMO/UFF) e especialista em moda, Solange Riva Mezabarba, atribui o resgate de tendências dos anos 2000 a “uma jogada de marketing para capturar a atenção da nova geração a partir de um ciclo de constante reinvenção de estéticas passadas com um toque contemporâneo”. Junto à volta dessas referências visuais, também emergem debates sobre como esses padrões de beleza impactam a autoestima e a saúde mental das pessoas, em especial das mulheres, que tradicionalmente enfrentam maior pressão para se encaixar em padrões corporais específicos.

Novo desfile Victoria’s Secret reacende polêmicas

O tradicional desfile da Victoria’s Secret, que não acontecia desde 2018, retornou em 2024 como um marco na história da moda. Lançado em 1995, o evento foi responsável por projetar algumas das maiores supermodelos do mundo, como as brasileiras Gisele Bündchen e Adriana Lima, que brilharam como “Angels”. Durante mais de duas décadas, o desfile consolidou um padrão de beleza focado em corpos altos e esguios, que influenciou a moda global, e agora acontece num cenário marcado por debates acerca das transformações da indústria e das demandas por mais inclusão e diversidade nas passarelas. 

As críticas crescentes sobre a falta de diversidade no desfile e o impacto que a promoção desse ideal estético único tinha sobre a autoestima das mulheres resultaram na queda das vendas da empresa e no fim do desfile. No ano passado, a Victoria’s Secret anunciou o retorno do desfile a partir do longa-metragem The Tour 23, com a promessa de uma abordagem mais inclusiva. Modelos de diferentes etnias, idades e plus size foram incluídas na passarela, numa tentativa de se adaptar às demandas do público por mais representatividade. 

Essa mudança, porém, não foi recebida como esperado. Nas redes sociais, muitos usuários expressaram frustração com o novo formato do desfile, associando a inclusão de modelos plus size à quebra da “fantasia” ao redor da marca. As críticas também incluem o fato da organização ter “cedido” à pressão social e abandonar os padrões antes estabelecidos. Por outro lado, a mudança de perfil foi vista, por uma parte do público, como uma tentativa superficial de seguir as tendências de diversidade, sem um compromisso genuíno com a causa. 

”As críticas a Victoria’s Secrets são dirigidas exatamente a esse conceito do corpo magro e das supermodelos ainda predominante na passarela da marca. Mesmo no caso das modelos plus size, há um formato específico de corpo gordo que é bem aceito pelas marcas. Então é como se eles mudassem, mas não mudaram tanto como deveriam. As redes sociais dão voz à diversidade e pressionam para que o modelo de publicidade, que trabalha com o ’aspiracional inalcançável’, redefina-se a partir da construção de referências mais diversas”, explica Mezabarba.

Esse debate, que ganhou novo fôlego com o desfile, ilustra uma tensão presente no mundo da moda, em que há o desafio de equilibrar nostalgia e inovação, sem perder de vista as mudanças sociais que exigem mais inclusão e diversidade. 

Modelos caminham na passarela do Victoria’s Secret Fashion Show 2024 | Reprodução: Photo by Kevin Mazur/Getty Images for Victoria’s Secret

Nostalgia ou volta da extrema pressão estética? 

O renascimento das tendências da primeira década deste século pode despertar sentimentos mistos. De um lado, há uma nostalgia entre aqueles que viveram essa época e agora podem revisitar as peças que marcaram seu estilo pessoal. Por outro lado, o retorno de uma estética tão focada na magreza gera preocupações sobre como isso pode influenciar negativamente a autoestima de mulheres jovens e adolescentes, um público historicamente mais vulnerável às imposições de padrões corporais. 

“A propaganda se consolida no século XX graças à mídia e aos novos meios de comunicação, que passam a disseminar, de maneira mais eficaz, um ideal romântico de estilo vida e começa a operar uma lógica de corpos e aparências ‘aspiracionais’, o vir a ser, o corpo considerado belo e desejado é aquele que está nas publicidades de roupas, shampoo, e outros bens. Nesse contexto, o ideal de juventude se consolida ao trazer, especialmente para as mulheres, uma busca incessante pela manutenção dos seus traços de juventude, entre eles, o corpo magro”, relaciona a doutora em antropologia.

O mercado da moda, historicamente, funciona em ciclos. As tendências retornam, normalmente reinterpretadas, mas ainda com as mesmas conotações visuais e propostas. Mesmo com a tentativa de incluir corpos mais diversos, a estética ainda carrega o peso de ideais corporais, o que fica evidente com o uso de métodos alternativos e extremos na busca pela magreza. 

“O surgimento de remédios como o Ozempic, um medicamento para diabetes que vem sendo usado para emagrecimento, vem trazendo de volta um ideal de corpo ‘super magro’, talvez até mais do que nos anos 2000.  E isso, claro, é também um dispositivo de clivagem social. Se, no início do século passado, as mulheres burguesas deveriam usar roupas que mostrassem que elas não precisavam movimentar o corpo (especialmente em trabalhos braçais), hoje o acesso a academias, boa alimentação e, agora, ao Ozempic, também sinalizam para as diferenças nas possibilidades de acesso”, comenta a pesquisadora do NEMO/UFF.

Embora o retorno das tendências dos anos 2000 traga um apelo visual e nostalgia, também é preciso considerar o impacto psicológico desse movimento, visto que a retomada desses padrões levanta questionamentos sobre até que ponto eles podem ser reeditados para atender a um público mais diverso e inclusivo. 

O impacto psicológico dos padrões de beleza: efeitos na autoestima

O resquício do crescimento de transtornos alimentares devido à pressão estética é perceptível até hoje. Esse padrão, promovido pela mídia e pelas passarelas, cria um ciclo de pressão estética que afeta diferentes gerações. Mesmo com tentativas de incluir mais diversidade em suas campanhas e desfiles, as marcas continuam a dar ênfase a corpos magros e longilíneos ainda permanece forte, especialmente nas redes sociais, onde influenciadoras e celebridades ajudam a perpetuar esses padrões. 

De acordo com a professora do Departamento de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFF, Bianca Novaes de Mello, a imposição de padrões de beleza afeta a autoestima, de forma que um imaginário do corpo ideal atravessa a auto-imagem que o indivíduo constrói de si. “Como o padrão de beleza é baseado em um ideal, gera-se uma distância irremediável do corpo real, o que afeta a saúde mental mesmo de corpos mais próximos de corpo ideal, como vemos nas distorções de auto-imagem presentes na anorexia e na bulimia”.

Além dos impactos físicos, como o surgimento de distúrbios alimentares, o retorno dessa estética também pode afetar a maneira como as pessoas percebem seus corpos de forma mais ampla. “A pressão estética serve a um sistema social que objetifica os corpos de modo a inseri-los como mercadorias das mais variadas promessas de fórmulas para a perfeição, como cirurgias, tratamentos estéticos, cosméticos e roupas. A falta de acesso a serviços de cuidado com a saúde mental também interfere na forma como esses padrões de beleza podem incidir na vida de cada um. Por isso mesmo, essa incidência pode ter efeitos distintos para as diferentes classes sociais”, esclarece Mello.

Ao trazer de volta essas tendências, a indústria da moda corre o risco de perpetuar esses ciclos de insegurança e insatisfação corporal, especialmente em um momento em que a diversidade corporal ainda está lutando para se firmar no mainstream. Para Mello,  “há ainda elementos conservadores em nossa sociedade que dão aval ao padrão de beleza vigente nos anos 2000: corpos magros, brancos e de traços finos. Por outro lado, as críticas às tentativas de inclusão provocam o efeito contrário, como no caso do desfile da Victoria’s Secret, em que muitos alertaram que as modelos que representavam a diversidade de corpos possuíam nelas inscrito algo do padrão imposto.“

A linha do tempo que mostra o padrão de beleza mudou muito ao longo da história. | Reprodução: Significados

Pressão estética enraizada pode ser âncora para controvérsias 

As críticas ao retorno da Victoria’s Secret também revelam uma certa controvérsia presente no debate sobre padrões de beleza e inclusão, pois a reação negativa de parte do público demonstra nostalgia pelo padrão de beleza que a marca promovia. Essa contradição reflete um problema na maneira como os padrões de beleza são construídos e perpetuados, mesmo com o avanço das discussões sobre diversidade. 

“Nossa sociedade é predominantemente visual, o que afeta o modo como essas empresas operam na construção de um padrão de beleza que reflita seus valores. Essa será uma mudança lenta e ocorrerá no ritmo do capital. Caso haja adesão ao mercado, ela ocorrerá, principalmente quando consumidores forem incluídos, não só num projeto estético de diversidade, mas também no mercado consumidor”, realça a especialista em moda, Solange Mezabarba:

Por outro lado, a desconfiança do público sugere que a inclusão de modelos de diferentes tamanhos e etnias é uma tentativa superficial de adaptação às novas demandas do mercado, sem um verdadeiro comprometimento com a causa da diversidade. Esse tipo de “diversidade performática” tornou-se comum na indústria da moda, em que as marcas  buscam reparar anos de exclusão sem, de fato, promover uma mudança estrutural em sua abordagem.

“A moda é cíclica. Sempre que há saturação de determinados modelos, voltam-se aos escritórios de moda e design para gerar as ‘inovações’. No entanto, inovações podem ser limitadas por questões diversas. Assim, a moda sempre revive o que foi moda anteriormente, a chamada ‘releitura’, em que retoma-se um padrão ultrapassado, mas com nova ’roupagem’ e mesmo, novos nomes. A ideia do padrão hegemônico do corpo magro não parece ultrapassada, apesar das vozes da diversidade, ele segue sendo um referencial – até por questões relacionadas com a produção e o mercado. Por isso, acredita-se que o corpo magro feminino ainda será ‘moda’ por algum tempo”, analisa a doutora em antropologia.

O futuro da moda em meio a perspectivas e tecnologias

A moda busca equilibrar as tendências a partir do desafio de inovar e, hoje, transmitir a essência de uma indústria verdadeiramente inclusiva. Esse caminho aponta para um futuro que contrasta a tensão de um mercado que tenta se reinventar, mas que ainda enfrenta a resistência tanto de consumidores quanto de criadores de conteúdo que se apegam aos ideais de beleza estabelecidos. As novas tecnologias também surgem como ponto de inovação na indústria.

“O desfile de moda busca espetacularizar as roupas para gerar valor agregado, ou seja, para que haja adesão e fortalecimento da marca. No contexto atual, há um novo debate que ganha espaço a partir da inteligência artificial (IA) e os desfiles virtuais. Esses recursos ganharam  bastante relevância durante a pandemia. Pessoalmente, não creio que o desfile espetacularizado e com modelos vivas cedam lugar a imagens criadas por IA e outros recursos tão rapidamente. Assim como não vejo adesão à diversidade de um modo tão orgânico. Sempre haverá uma adaptação desses corpos a uma lógica de mercado – exatamente como as modelos plus size que possuem corpos gordos, mas num formato determinado”, conclui Mezabarba.

Stradivarius faz inovação impactante na moda com sua primeira coleção e campanha reinterpretada por uma IA | Reprodução: Stradivarius

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Solange Riva Mezabarba é Mestre e doutora em antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com estágio pós-doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris (EHESS). Suas linhas de pesquisa são o consumo, a moda, a imigração e o trabalho executivo feminino. Graduou-se pela UFF em comunicação social com habilitação em publicidade e propaganda. Atualmente, além de pesquisadora independente, é professora no Senai Cetiqt ministrando disciplinas afins (teoria da moda, sociologia da moda, cultura brasileira) no curso de design de moda. É membro do Núcleo de Estudos da Modernidade (NEMO/UFF). 

Bianca Novaes de Mello é Professora Adjunta do Departamento de Psicologia de Volta Redonda da Universidade Federal Fluminense. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002), mestrado em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2004) e doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2010).Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicanálise, atuando principalmente nos seguintes temas: psicanálise, linguagem, saúde mental e gênero.

 

Por Lívia Galvão
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