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Atualidades UFF: Censo registra mais de 8 mil localidades quilombolas no país

Especialista da UFF analisa a distribuição geográfica, o analfabetismo e o acesso ao saneamento básico das comunidades quilombolas

 

Segundo dados do “Censo Demográfico 2022: Localidades Quilombolas”, divulgados na última sexta-feira (19), o Brasil possui 8.441 localidades quilombolas distribuídas pelo território nacional, associadas a 7.666 comunidades. A pesquisa revelou que as desigualdades sociais se acentuam ao olhar para a população dos quilombos, que possui índices de alfabetização e de acesso a serviços básicos, como saneamento básico, inferiores aos da população em geral.

Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Política Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), André Augusto Pereira Brandão aponta que o conceito de quilombola ou, mais precisamente, de remanescentes de quilombos, não é unívoco e permanece em disputa tanto no campo das ciências sociais, como no campo jurídico.

“De forma geral, pode-se dizer que as comunidades quilombolas são agrupamentos sociais com presença de população negra oriunda de processos sócio-históricos diversos como aglutinação de escravizados fugitivos de áreas de exploração agrícola ou de mineração, ocupação por populações negras libertas de áreas abandonadas pela exploração comercial ou de áreas adquiridas por processos de compra ou doações e por outras formas de ocupação de territórios e posterior resistência às iniciativas de expulsão. O importante como elemento definidor é a existência de uma contínua reprodução material e cultural daquele grupo social”, explica o professor.

Geografia das localidades

De acordo com o levantamento, a Região Nordeste reúne a maior quantidade de localidades quilombolas, com 5.386 (63,81%), associados a 4.948 comunidades, além de também possuir a maior população dessa comunidade tradicional, com 906.337 pessoas, aproximadamente 68% da total. As Regiões Sudeste e Norte vêm em seguida, com 1.245 (14,75%) e 1.228 (14,55%) localidades, já Sul e Centro-Oeste registram 304 (3,60%) e 278 (3,29%), respectivamente.

Em relação às Unidades Federativas, o Maranhão é o estado com maior número de locais quilombolas, com 2.025 (23,99%). Inclusive, dos 20 municípios que apresentam mais localidades, 11 estão no estado nordestino. “Fatores históricos explicam essa distribuição das comunidades quilombolas no Nordeste. Trata-se de uma região de grande extensão territorial, na qual no período colonial e em parte do período imperial a base da economia era o latifúndio baseado na monocultura com mão-de-obra escravizada. No entanto, encontramos comunidades quilombolas em todas as regiões do Brasil e em todos os biomas”, analisa Brandão.

Mapa das localidades quilombolas / Imagem: IBGE
#ParaTodosVerem Mapa do Brasil, com várias pigmentações amarelas indicando a presença de comunidades quilombolas, principalmente no nordeste, sudeste e sul do país.

As localidades quilombolas são definidas por lugares que contam com um aglomerado permanente de, no mínimo, 15 pessoas declaradas desse grupo, cujas moradias estejam, no máximo, a 200 metros de distância umas das outras. Para o levantamento do IBGE, as comunidades foram declaradas por cada informante durante as pesquisas que levaram ao Censo Demográfico 2022, podendo não estarem localizadas nos Territórios Quilombolas oficialmente delimitados pela Legislação. .

Educação

Em complemento aos dados divulgados em maio pelo “Censo da Alfabetização”, a pesquisa focada na população quilombola apresentou que a taxa de alfabetização entre pessoas desse grupo com 15 anos ou mais de idade (1.015.034), vivendo dentro e fora dos territórios delimitados, é de 81,01%, inferior à média nacional de 93,0%, para essa mesma faixa etária. Além disso, a taxa de analfabetismo (18,99%) é cerca de 2,7 vezes maior que a registrada entre a população geral (7,0%). Nos territórios oficialmente delimitados, a taxa de alfabetização foi ainda menor: 80,25%.

“O analfabetismo é explicado por dois fatores. Em primeiro lugar, pela vulnerabilidade social que torna mais complexo o usufruto da política de educação. Em segundo, pelo acesso restrito dessas populações às políticas públicas e sociais”, analisa o professor da UFF. Essas variáveis são ainda amplificadas pelo racismo e pela discriminação com os povos tradicionais. “Além disso, não é incomum que as comunidades quilombolas estejam em conflito com as elites econômicas e políticas locais, que cobiçam os territórios ancestrais ocupados por essa parte da população negra. Estes conflitos apontam, em muitos casos, para dificuldades de acesso de qualidade aos serviços públicos de provisão municipal, como as escolas de ensino fundamental, por exemplo. Isso explica em parte uma taxa de analfabetismo maior entre os moradores dos quilombos”, continua o docente.

Brandão ainda aponta outro fator social que contribui para os resultados negativos: o acesso insuficiente à educação nas comunidades, geralmente restrito ao ensino fundamental, que causa o deslocamento dos jovens na sequência da trajetória educacional. “Este fenômeno acaba concentrando nas comunidades um percentual maior de pessoas com idade mais elevada e que não se inseriram de forma mais consistente nas redes de escolarização que só nas últimas décadas sofreram algum grau de generalização, ainda que com qualidade e estrutura inadequada”.

Gráfico comparativo das taxas de alfabetização e analfabetismo / Imagem: IBGE
#ParaTodosVerem Quatro gráficos em coluna, divididos entre cores azul e amarelo, em que a taxa de analfabetismo está representada na cor amarela e a de alfabetização na cor azul. Em resumo, a comunidade quilombola apresenta quase três vezes mais a taxa de analfabetismo

Considerando o recorte de gênero, a pesquisa apresenta que a taxa de alfabetização (82,89%) entre as mulheres é superior à dos homens (79,11%) e também é maior que a observada entre a população total do país — para as mulheres, a taxa de alfabetização é de 93,48%, enquanto para os homens, 92,49%.

Refletindo desigualdades geográficas entre os territórios brasileiros, as taxas de alfabetização mais elevadas da população quilombola foram registradas nas Regiões Sul (89,96%), Norte (87,45%) e Centro-Oeste (86,56%), enquanto Nordeste (78,40%) e Sudeste (85,23%) tiveram as menores. O Sudeste, região que costuma apresentar os melhores indicadores sociais, registrou a maior diferença entre as taxas de alfabetização das populações quilombola e total residente no país (96,08%).

Dificuldade de acesso a serviços básicos

Mais um aspecto abordado pelo Censo Quilombola foi o acesso ao saneamento básico. Conforme o estudo, 90,02% dos quilombolas moradores dos Territórios Quilombolas oficialmente delimitados lidam com alguma dificuldade em relação ao abastecimento de água, ao descarte do esgoto ou à coleta de lixo. Quase um terço também relatou conviver com a precariedade dos três serviços simultaneamente.

Os dados ainda demonstram que apenas 33,61% dos moradores das comunidades utilizavam a rede geral de distribuição como forma principal de abastecimento; outros 31,85% fazem uso de poços profundos ou artesianos e 10,48% de poços rasos, freáticos ou cacimba. Quanto ao acesso à água, 66,71% dos moradores em Territórios Quilombolas responderam que a recebem de forma encanada em casa, apartamento ou habitação, enquanto para 18,21% esse serviço não era oferecido. Na população brasileira em geral, essa porcentagem cai para 12,97%.

Gráfico das formas de abastecimento de água da população / Imagem: IBGE
#ParaTodosVerem São oito formas de abastecimento de água em que cada item são comparados com três colunas comparando a população total do país com pessoas quilombolas e pessoas quilombolas em territórios quilombolas.

Os últimos dados da pesquisa abordam a presença ou falta de banheiro nas residências. Evidenciando a situação das populações quilombolas quanto a um saneamento básico de qualidade: 24,77% não tinham banheiro de uso exclusivo do domicílio; 12,99% tinham apenas “sanitário ou buraco para dejeções, inclusive os localizados no terreno” e 6,24% “não tinham banheiro ou sanitário”. Para a maioria dos moradores em territórios oficialmente delimitados (59,45%), o principal tipo de esgotamento sanitário era “fossa rudimentar ou buraco”.

Na avaliação do professor da UFF, os resultados apontam para uma intensa vulnerabilidade. “Isso fica expresso na baixa inserção dessas populações nos circuitos econômicos e no acesso às políticas públicas e sociais em particular”. O docente relembra estudos anteriores realizados sobre a população quilombola, ao destacar que as pesquisas amostrais nacionais de 2006, 2008 e 2011, coordenadas no âmbito do DATAUFF e com apoio do Governo Federal, “já apontavam para esses resultados, inclusive chamavam a atenção para a tragédia da insegurança alimentar nesse segmento da população”. “As comunidades quilombolas, além do enfrentamento das desigualdades que se abatem sobre a população trabalhadora pobre, seja rural ou urbana, ainda enfrentam o racismo cotidiano que limita avassaladoramente o acesso a bens públicos e a participação paritária no conjunto da sociedade”, conclui.

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André Augusto Pereira Brandão possui graduação em Ciências Sociais e mestrado em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), atuando no Programa de Estudos Pós-graduados em Política Social. Tem experiência na área de Sociologia e Antropologia, com ênfase em avaliação de políticas sociais, produzindo, principalmente, nos seguintes temas: relações raciais, populações quilombolas, populações tradicionais e sistemas produtivos da agricultura familiar.

 

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