No próximo dia 29 de junho, a Universidade Federal Fluminense (UFF) entrega ao Quilombo de São José a reforma da casa que será sede da Associação da Comunidade Negra Remanescente, situada no município de Valença/RJ. A instalação, que contará com uma cozinha comunitária e com alojamento para visitantes, estava em estado precário e inutilizável. Com a reforma, o local agora serve como um espaço funcional para a comunidade, com equipamentos modernos na cozinha, além de quartos e elevador, a fim de contemplar a acessibilidade dos frequentadores.
“Estamos orgulhosos de entregar a nova sede da Associação da Comunidade Negra Remanescente do Quilombo de São José. Este projeto, uma prioridade da nossa gestão, reflete nosso esforço contínuo para promover a inclusão social e valorizar a cultura afro-brasileira. É um movimento constante da UFF em prol da excelência acadêmica e justiça social. Parabenizo as(os) docentes, estudantes, técnicos, toda a comunidade e nossa equipe de gestão pela dedicação e empenho que tornaram esta realização possível”, celebra o reitor da UFF Antonio Claudio Lucas da Nóbrega.
“A comunidade do Quilombo São José da Serra mantém e atualiza a relação que seus antepassados estabeleceram com o território há aproximadamente dois séculos. As memórias do tempo do cativeiro e da abolição da escravidão são atualizadas no presente na busca de melhores condições de vida para as novas gerações, com as lutas por educação, saúde, transporte, entre outras. Foi assim também com os mais de vinte anos de luta pela titulação do território e com os mais de dez anos de espera pela reforma da sede do Quilombo. Agora novos usos serão dados ao espaço que antes da titulação, em 2015, era interditado à comunidade por proprietário que se recusava a deixar as terras para a comunidade negra, mesmo que devidamente indenizado pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)”, conta a professora Elaine Monteiro, coordenadora da iniciativa na UFF.
“Além disso, o Quilombo São José da Serra está em uma região turisticamente explorada como “Vale do Café”, onde as atrações se concentram na visita a fazendas e na preservação da memória de seus barões. Espera-se que com a reforma da casa em um território quilombola onde vivem descendentes daquelas e daqueles que construíram a riqueza do Vale do Café e de seus casarões, o Quilombo esteja pronto para desenvolver projetos de turismo em que visitantes vão conhecer o modo de vida da comunidade”, acrescenta Monteiro.
A docente narra que, no ano de 2013, chegou à universidade uma emenda parlamentar do então deputado federal Jean Wyllys, destinada à melhoria da infraestrutura do Quilombo São José da Serra. “O deputado ficou impressionado com o discurso de Toninho Canecão, liderança do quilombo, sobre as comunidades quilombolas ao lhe entregar, em 2012, o Prêmio Orixalé de Direitos Humanos. Procurou a UFF para conhecer mais a história do Quilombo São José da Serra e desenvolveu uma relação de colaboração com a comunidade”.
O projeto arquitetônico foi implementado sob a fiscalização dos engenheiros da SAEP e contou com a participação direta da comunidade. “Os quilombolas e os jongueiros do Rio de Janeiro escolheram a UFF para sediar e coordenar o trabalho de salvaguarda do IPHAN do jongo. Essa relação estreita com diversos quilombos de jongueiros do estado, especialmente com São José da Serra, tem sido central para a organização e liderança das reuniões do Pontão de Cultura do Jongo”, celebra Martha Abreu, professora do Programa de Pós-Graduação em História da UFF e consultora do Pontão de Cultura do Jongo.
Casa do Quilombo de São José antes da Reforma. Créditos: Acervo pessoal
De acordo com Monteiro, a comunidade deverá iniciar essas atividades aos poucos, com a realização de pequenos projetos e de eventos, com o objetivo de gerar recursos para a manutenção do imóvel. “A equipe da SAEP produziu uma lista com todos os equipamentos e móveis necessários ao pleno funcionamento do espaço. Vencida essa etapa, espera-se que a casa também seja uma fonte de renda para a comunidade, para que quilombolas possam permanecer em seus territórios com trabalho autogerido pela comunidade e que também possam proporcionar oportunidades de estudo e de melhores condições de vida para as novas gerações”.
Quilombo de São José e UFF: encontro de saberes
A relação da UFF com o Quilombo de São José é longa e significativa, começando na década de 90 com a assinatura de um relatório para o INCRA sobre a história dessa comunidade negra que buscava a titulação de suas terras como remanescente de quilombo, conforme os direitos garantidos pela Constituição de 1988. A partir dessa pesquisa, em 2003, foram produzidos um livro e um filme intitulados “Memórias do Cativeiro” e, posteriormente, materiais audiovisuais e um acervo de memórias da escravidão, todos disponíveis online no Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI/UFF).
“Antônio do Nascimento Fernandes, conhecido como Toninho Canecão, falecido em 2022, era mestre e grande liderança política da comunidade. Toninho falou certa vez que nós, da universidade, não tínhamos noção da visibilidade que a pesquisa havia dado às lutas do Quilombo. Assim começou a parceria com o LABHOI, através da professora Ana Lugão, e de projetos de extensão como “Encontro de Jongueiros”; o Observatório Jovem, da Faculdade de Educação; o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, programa de ensino, pesquisa e extensão (PROEX e FEUFF); e o projeto “Encontro de Saberes” organizado pela Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD-UFF)”, conta Monteiro.
Nesse sentido, da mesma forma que a universidade colaborou com as lutas e conquistas do Quilombo São José da Serra, este foi fundamental na realização de atividades de ensino, pesquisa e extensão e ofereceu a possibilidade de novas epistemológicas para uma universidade que ainda guarda o peso da colonialidade do saber, do poder e do fazer. “A presença não só da universidade no Quilombo como deste na universidade gerou ainda novas formas de ensinar e de aprender”, acrescenta a pesquisadora.
Elaine Monteiro, que também coordena o Pontão de Cultura do Jongo, tem trabalhado na UFF desde os anos 2000 com jovens quilombolas, coordenando programas de salvaguarda do Jongo após a dança ser reconhecida como patrimônio cultural do Brasil. “O Jongo, forma de expressão que articula canto, dança e o toque dos tambores, patrimônio do Quilombo São José e do Brasil, manteve a comunidade unida e colaborou com todo o processo de resistência e com as lutas por direitos. Deu ainda visibilidade para a comunidade, para seus enfrentamentos e conquistas”.
“O Quilombo de São José é um símbolo vital da história da população escravizada no Vale do Paraíba, servindo como guardião das memórias e tradições afro-brasileiras. Seus moradores preservam e compartilham histórias sobre a escravidão, mantendo viva a herança de seus antepassados africanos e evidenciando as lutas pela liberdade e igualdade. Além disso, o quilombo é conhecido pela preservação e renovação do jongo. As festas de maio em homenagem aos pretos velhos são eventos significativos, preservando tradições culturais e servindo como plataformas de luta política, visibilidade e reivindicação de direitos”, acrescenta Martha Abreu.
A expectativa de Monteiro é que com a casa reformada, os visitantes sejam recebidos com conforto e com toda a generosidade e solidariedade que marcam um modo de vida pautado pelo sentimento de coletividade e inclusão. Abreu ressalta que a decisão sobre como utilizar a casa cabe à comunidade, mas certamente ela servirá como base para o desenvolvimento de diversos projetos coletivos. “Esperamos que a casa se torne um ponto de partida para a implementação de iniciativas que promovam o fortalecimento econômico e social do quilombo. Os próximos passos após a entrega da obra incluem a definição e implementação desses projetos, utilizando a casa como centro de atividades e ponto de apoio para a comunidade”, concluem.
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Elaine Monteiro coordena o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, programa de extensão, ensino e pesquisa desenvolvido com comunidades jongueiras e quilombolas da região sudeste que articula sujeitos e ações para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Integra o Laboratório de Educação e Patrimônio Cultural (LABOEP), o grupo de pesquisa Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI), o Laboratório de Imagem Documental em Educação (LIDE) e o grupo Encontro de Saberes da/na UFF.
Martha Campos Abreu é pesquisadora do CNPq. Especialista em História da Diáspora Africana nas Américas e no Brasil, desenvolvendo trabalhos sobre cultura popular, música negra, patrimônio cultural, pós-abolição, memória da escravidão e relações raciais, séculos XIX e XX – pesquisa e ensino de História. Realiza projetos ligados à História pública da escravidão. Coordena, com Hebe Mattos e Keila Grinberg, o projeto Passados Presentes: memória da escravidão no Brasil. É consultora do Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu e do Museu Casa do Pontal.