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A inconsciência sobre a realidade dos negros: desafios da universidade pública frente à ameaça de extinção da Lei de cotas

No último sábado, 20 de novembro de 2021, mais um dia da Consciência Negra foi celebrado no país. Desde o ano de 2011, por meio da Lei 12.519, a data comemorativa foi instituída em âmbito nacional, em homenagem a Zumbi dos Palmares, um dos maiores líderes negros do Brasil, tendo se transformado posteriormente em feriado em algumas cidades e estados.

Nas universidades públicas, em particular, lugares onde parte substancial das lutas pela transformação da realidade de desigualdade e de racismo estrutural é sustentada, a data marca um momento de reconhecimento de conquistas e, ao mesmo tempo, da necessidade de seguir enfrentando as muitas resistências e obstáculos existentes em nossa sociedade.

A discussão que gira em torno do fortalecimento do mecanismo de ingresso nas universidades públicas via cotas, que constitui o “carro-chefe” das ações voltadas à reparação desse cenário de desigualdade no contexto do ensino, ainda segue em aberto. De forma crescente, são reduzidas as verbas destinadas à manutenção dessas ações nesses espaços. Para o ano de 2022, está prevista, inclusive, a revisão da discussão sobre a Lei de cotas em contexto nacional, e uma das possibilidades é a da sua extinção.

Segundo a professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Antropologia e colaboradora do Mestrado de Justiça e Segurança, Ana Paula Miranda, trata-se de um dos maiores desafios das universidades nesse momento. No que diz respeito à UFF, em particular, “seu papel na sustentação dessa defesa é a de demonstrar como essa ação das cotas, que é parte de uma política mais ampla de ações afirmativas, produz transformações objetivas na condição de vida dos sujeitos, o que é demonstrado por uma série de estudos”.

O reitor Antonio Claudio Lucas da Nóbrega destaca que a UFF possui um compromisso e uma missão, inquestionável, com a inclusão, com a maior representatividade de grupos historicamente excluídos e a diversificação do seu corpo acadêmico. “Sempre nos pautamos pela adoção de ações concretas em defesa das políticas de inclusão racial e avançamos em diversas frentes: comissão permanente de ações afirmativas étnico-raciais, inclusão de cotas raciais em programas institucionais e em concursos públicos para docentes, além de tantas outras iniciativas. Nossa gestão e toda a equipe segue comprometida em ampliar estas ações para que possamos contribuir para a redução das enormes desigualdades existentes em nossa sociedade’.

De acordo com dados fornecidos pela Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) da UFF, considerando-se a Lei de cotas no 12.711/12, no ano de 2013 a universidade tinha 615 alunos cotistas. No ano de 2021, teve 1856 ingressando, o que representou um aumento de mais de 200% no número de estudantes cotistas. Para a pró-reitora de Graduação e professora da Faculdade de Nutrição, Alexandra Anastácio, este incremento também vem atrelado ao aumento da oferta de vagas nos cursos de graduação.

“Enxergamos este crescimento como fruto de uma maior democratização do ensino superior, da ampliação das políticas de inclusão e assistência da UFF e políticas de formação acadêmica, tais como os programas institucionais de universalização em línguas estrangeiras, monitoria, iniciação científica e extensão. Estas ações são marcas da instituição, aliadas à ampliação das políticas afirmativas não só no ingresso de cursos de graduação, mas ao longo do percurso acadêmico, visando ao sucesso na graduação e ao avanço para a pós-graduação e em concursos públicos para técnicos administrativos e docentes”.

Além disso, a pró-reitora garante que a Universidade Federal Fluminense está engajada de forma ampla no processo de transformação da realidade no que diz respeito ao racismo estrutural. Dentre as estratégias desenvolvidas, Alexandra destaca: a promoção de ações de indução e acompanhamento das políticas afirmativas étnico-raciais da UFF; o desenvolvimento da Secretaria de Acessibilidade e Inclusão, que visa transformar a instituição em uma universidade inclusiva e cidadã; e a Política UFF Acessível, que visa monitorar e avaliar o plano de acessibilidade e inclusão da universidade.

A cota pode possibilitar uma inclusão social. Conhecemos vários casos de estudantes cujas vidas foram transformadas e, consequentemente, também suas famílias, porque são os primeiros desse núcleo a entrarem em uma universidade pública e conseguirem se formar. Isso representa um processo de transformação e inclusão social, mas que não dá conta de toda a realidade de desigualdade e racismo estrutural”, Ana Paula Miranda, professora do Departamento e do Programa de Pós-graduação em Antropologia e colaboradora do Mestrado de Justiça e Segurança.

Todas estas iniciativas contam com a participação de docentes, técnicos-administrativos e discentes em comissões permanentes designadas pelo reitor Antonio Claudio Lucas da Nóbrega e/ou grupos de trabalho, articulados com diferentes segmentos da universidade, a exemplo da Comissão Permanente de Ações Afirmativas Diversidade e Equidade, que atua articulando ações de combate ao racismo estrutural, diversidade e inclusão.

Alexandra também confere ênfase à implementação das políticas de ações afirmativas no programa de monitoria, que promoveu um aumento do número de estudantes cotistas. “Em 2019, eram 30% dos bolsistas e hoje eles são quase 50%. Outro destaque é que, no ano de 2021, tivemos grandes avanços, com a articulação e liderança da Reitoria para a aprovação da política de cotas nos concursos para o magistério superior e nos processos de seleção dos programas de pós-graduação, ambos aprovados no Conselho de Ensino Pesquisa e Extensão da UFF”.

Nesse contexto, a docente Ana Paula Miranda analisa, por fim, o quanto essas medidas, reconhecidamente eficazes em seus propósitos de fazer frente às desigualdades, são impactadas negativamente pelos seguidos cortes de verbas: “a universidade vive na pressão. No momento em que temos um corte financeiro como aconteceu, esses setores são muito mais afetados do que outros, porque os estudantes mais pobres certamente são pressionados a largar os estudos para poderem ajudar as suas famílias, considerando a realidade atual de crise. Essa ideia de avaliar novamente as cotas pensando a possibilidade da sua superação é na verdade uma estratégia de tentar solapá-la, porque ela começou a produzir resultados efetivos no contexto brasileiro”.

A origem histórica de implementação das cotas nas políticas nacionais

Para o professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (GAP e PPGA) e coordenador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (NUFEP) da UFF, Fábio Reis Mota, as políticas de cotas não constituem um recurso exatamente novo; pelo contrário, elas foram elaboradas e implementadas, pela primeira vez, no final do século XIX, na Índia, no contexto colonial. Na ocasião, a Coroa Britânica tinha o intuito de suplantar as desigualdades impostas, em particular, pelo próprio sistema imperial e pelas divisões de castas.

Posteriormente, nos Estados Unidos da América, no final da década de 50 do século XX, diante das pressões levantadas pelos movimentos ligados aos direitos civis, em especial o movimento negro, são expandidas e consolidadas legalmente as políticas de cotas. “O primeiro esforço formal foi feito por John Kennedy, em 1961, com medidas adotadas para a promoção de uma justiça distributiva devotada a observar as discriminações submetidas por coletivos, como os afroamericanos. Posteriormente, com o presidente Lindon Jonhson, a Civil Rights Act de 1964 celebrou a conformação de ações afirmativas mais amplas e sólidas com vistas a estabelecer uma igualdade substantiva entre grupos discriminados pelos seus pertencimentos identitários”.

Segundo o pesquisador, tais ações surgem dentro de um contexto de flagrante desigualdade de acesso aos bens materiais e simbólicos existentes entre as populações de brancos e negros nos EUA e em outros países. “Elas foram fundamentais não somente para celebrar uma ascensão social, mas sobretudo para explicitar as desigualdades forjadas pelo sistema escravagista que vigorou por séculos em países das Américas, do Caribe, da África, entre outros continentes”.

No que diz respeito ao Brasil, Fábio Reis enfatiza que, embora tenha sido um dos últimos países a abolir a escravidão no mundo e com uma população escravizada de quase cinco milhões de seres humanos em três séculos do regime da escravidão, houve muita relutância em incorporar tais medidas. “O racismo à brasileira, marcado pela ideologia da fábula das três raças, alicerçou uma falsa visão harmoniosa da convivência entre elas. Essa concepção míope inviabilizou que ações de rompimento com os alicerces das desigualdades raciais fossem levadas a cabo no país. Foi preciso muitos anos de luta dos movimentos sociais, em especial do movimento negro, e da elaboração de pesquisas nos domínios das Ciências Sociais, Sociais Aplicadas e Humanas para a ruptura com a ideologia dessa fábula”.

O professor conclui constatando que o Brasil é uma nação “banhada na desigualdade”. Desse modo, ele afirma, “as políticas de cotas dirigidas aos afrobrasileiros e aos estudantes de escolas públicas são medidas importantes para enfrentar o fantasma da desigualdade que assola nossa história”.

As cotas como parte de uma discussão que precisa ser ampliada

Na visão de Ana Paula Miranda, ao mesmo tempo que é importante reconhecer a eficácia das cotas e assegurar a continuidade do funcionamento delas em contexto nacional, é necessário chamar a atenção para a limitação desse recurso frente à complexidade do cenário de desigualdades. “A cota pode possibilitar uma inclusão social. Conhecemos vários casos de estudantes cujas vidas foram transformadas e, consequentemente, também suas famílias, porque são os primeiros desse núcleo a entrarem em uma universidade pública e conseguirem se formar. Isso representa um processo de transformação e inclusão social, mas que não dá conta de toda a realidade de desigualdade e racismo estrutural”.

A professora explica que se “trata de uma medida muito importante, que produz efeitos muito significativos, mas esperar que apenas essa medida transforme a desigualdade e o racismo estrutural é ingênuo. Para que se promova uma transformação, o ideal é que houvesse uma verba especificamente destinada a esse fim, que assegurasse que todos os alunos cotistas fossem bolsistas. Entrou, é cotista e é bolsista. Dessa forma, se conseguiria suprir as deficiências que esse estudante traz em razão da sua condição de exclusão”.

O racismo à brasileira, marcado pela ideologia da fábula das três raças, alicerçou uma falsa visão harmoniosa da convivência entre elas. Essa concepção míope inviabilizou que ações de rompimento com os alicerces das desigualdades raciais fossem levadas a cabo no país”, Fábio Reis Mota, professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e coordenador do Núcleo Fluminense de Estudos e Pesquisa (NUFEP) da UFF.

Já a pró-reitora Alexandra Anastácio ressalta que a adoção de cotas constitui uma ferramenta relevante de inclusão social e combate ao racismo estrutural; porém, não pode ser a única estratégia disponível. “Precisamos incorporar a diversidade, a inclusão social e o combate ao racismo na formação acadêmica e produção de conhecimento científico. Observamos um número maior de dissertações, teses, projetos de ensino, pesquisa e extensão que abordam as questões étnico-raciais, as necessidades das pessoas com deficiência, a desigualdade de gênero e renda, entre outros temas. Hoje o estudante cotista não é somente objeto de pesquisa, mas sujeito ativo na busca da reorientação da produção do conhecimento na academia. O projeto pedagógico dos cursos dialoga com o projeto de sociedade que queremos. Ao desenvolvermos um projeto que seja inclusivo, podemos promover a construção de uma sociedade mais justa e igualitária”.

Mesmo diante desse cenário complexo e de muitas resistências, Ana Paula Miranda destaca que a Universidade Federal Fluminense tem tido gestões que reforçam a necessidade dessa discussão e tentam produzir políticas de promoção e inclusão. “Parabenizo a universidade pelo esforço e por estar lutando para construir políticas, mantendo essa posição de defesa e isso é uma coisa difícil, num momento de tantos negacionismos e retrocessos. A universidade tem sido muito corajosa de se manter lutando, mas diria que ainda há muito o que se fazer. Há muitas questões que precisam ser enfrentadas e transformadas nesse universo.

O Seminário Ações Afirmativas da UFF e a defesa da Lei de cotas

Como convite para seguir nessa discussão, aprofundando-a, a Universidade Federal Fluminense promove no dia 29 e 30 de novembro o seminário Ações Afirmativas na UFF e a defesa da Lei de cotas: passado, presente e futuro. Esta iniciativa é fruto da atuação da Comissão Permanente de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da UFF, instituída pela Portaria do Reitor no 67.126, de 31 de julho de 2020, e alterada pela Portaria no 68.268, de 8 de setembro de 2021, que tem como objetivo promover ações de indução e acompanhamento das políticas de ações afirmativas étnico-raciais no âmbito da instituição, atuando como fórum permanente de formação, discussão e fomento destas ações.

Neste evento, a proposta é a de revisitar e sistematizar o histórico das ações afirmativas na UFF de forma contextualizada com o principal objetivo de ampliar o canal de diálogo, promover o letramento racial em nossa instituição, e contribuir para a melhoria das políticas afirmativas e a defesa da Lei de cotas. Inscreva-se e participe: https://www.youtube.com/watch?v=w81TR7RgbRI

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