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Pesquisa de mestranda da UFF revela o caráter democrático do Museu Nacional

No dia 31 de agosto de 2018, a jornalista Fernanda Guedes, até então estudante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (PPGCOM-UFF), defendia a sua dissertação de mestrado no Museu Nacional sobre o consumo da cultura por parte de grupos populares. Fernanda observou em sua pesquisa, de caráter inovador da área de Comunicação, que grande parte do público da instituição era originário dessa camada social e, mais do que isso, representava, para a maioria dessas pessoas, sua única experiência em instituições museológicas. Dois dias depois, no entanto, e por uma “infeliz coincidência”, segundo ela, um incêndio de grandes proporções destruiu o museu, o maior de história natural do Brasil, com mais de 20 mil itens, modificando para sempre a vida dessas pessoas, assim como a de muitos brasileiros e pesquisadores do mundo.

Sem saber, a aluna fazia uma bela homenagem a esse que era também considerado um dos maiores museus de Antropologia da América Latina, reunindo até então múmias egípcias, as coleções de arqueologia brasileira e de etnologia indígena, os afrescos de Pompeia, o trono de Daomé, o crânio de Luzia, entre muitos outros tesouros. Com um trabalho de “inspiração etnográfica”, em sintonia com a identidade do museu, ela investigou, mais especificamente, o modo como era realizada a apropriação de bens culturais e como o uso de aparelhos celulares interferia no roteiro de visitação, observando, com isso, uma transição no modo como os visitantes interagiam com as exposições.

frente ao ocorrido, o estudo de Fernanda ganhou uma relevância maior ainda, pois acabou se tornando um fortíssimo documento relacionado a uma das instituições mais emblemáticas do Brasil”, Carla Barros.

Segundo Fernanda, que realizou sua pesquisa aproveitando também as experiências que teve com a instituição durante os quinze anos em que atuou nela, como estagiária, prestadora de serviço e, finalmente, como parte do quadro de servidores, “no início da década de 2000 não era tão comum que as pessoas fizessem fotos durante a visita”. Esse fato, comenta a jornalista, foi se modificando nos anos seguintes, “primeiro com o uso das câmeras digitais e, em seguida, com o surgimento dos celulares com essa função”. Para ela, “a melhoria da qualidade das imagens produzidas por esses aparelhos, a popularização do acesso móvel à internet e o engajamento em sites de redes sociais criaram uma mudança sem precedentes”. Uma coisa passou a ser incontestável: o hábito da fotografia tornou-se predominante dentro das salas de visitação.

Na opinião da professora do PPGCOM que orientou a pesquisa, Carla Barros, “frente ao ocorrido, o estudo de Fernanda ganhou uma relevância maior ainda, pois acabou se tornando um fortíssimo documento relacionado a uma das instituições mais emblemáticas do Brasil”. Além disso, ela ressalta que a pesquisa deu uma “contribuição realmente muito importante para a compreensão de práticas de grupos sociais ainda muito invisíveis, constituindo-se em um estudo que não só revela todo o simbolismo da instituição na vida de seus visitantes, como contribui para manter o Museu Nacional sempre vivo e pulsante nas nossas memórias”.

Fernanda, que se debruçou sobre como as histórias do museu impactavam as dos seus visitantes, suas vidas e relações, é apenas uma dentre muitos de seus funcionários – divididos entre 89 docentes, 215 técnicos, quase 500 alunos e 100 terceirizados – que enriquecia ainda mais toda a história que existia, e ainda existe, por lá. Uma história viva, que misturava as preciosidades culturais do lugar às experiências das pessoas que por ele passavam ou se demoravam.

Carolina Pimenta, estudante de Letras (Libras) e bolsista no período entre 2014 e 2015, é um exemplo dessa diversidade. Para ela, a única surda a trabalhar no espaço na época, o museu “representava tudo o que não sabia antes. Tinha cada história, cada objeto, cada coisa valiosa dentro dele que fazia a gente se inspirar, encontrar a identidade da gente. Eram nossos pedaços de vida. Nosso pequeno manual de para onde vamos seguir. Era uma ciência viva e abrigava nossos registros. Pelo menos, vou ter a oportunidade de contar as histórias e mostrar as coisas que guardei na minha casa sobre o museu para minha filha, futuros filhos e netos”.

Stella Savelli, também funcionária do museu até junho do ano passado, trabalhou no espaço apenas três anos antes de se aposentar, período suficiente para se encantar com o lugar e reavivar memórias de sua infância: “mesmo que por pouco tempo, pude me aproximar dessa instituição que permanecia forte nas minhas lembranças de criança. Desenvolver projetos ali e poder conhecê-lo mais de perto só me fez consolidar todas essas lembranças, além de permitir deixar parte de meu trabalho, ínfimo que fosse, mas de uma importância enorme para minha carreira”.

Mas o museu, conta Stella, não era apenas parte da sua história, mas “do Brasil, da humanidade, aliás, do mundo”. Carolina engrossa o coro: “era um palácio da Monarquia, a nossa história de Brasil”. “Como perder tudo isso?”, interroga-se, atônita, Stella. Para ela, o que ocorreu “é bastante simbólico em relação ao que estamos enfrentando nesses tempos. Percebo que temos um longo caminho a percorrer e a palavra de ordem para mim é resistência”.

Reunindo os três pilares fundamentais de uma universidade pública, o ensino, a pesquisa e a extensão, o museu continua de pé: já reiniciou as aulas dos cursos de pós-graduação e muitos de seus pesquisadores voltaram a campo para retomar os trabalhos com alunos e colaboradores. O próximo passo é ocupar a Quinta da Boa Vista com atividades para o público. Outro dado importante, como informa Fernanda Guedes, é que, mesmo com o incêndio, “cerca de 1,7 milhões de itens ainda fazem parte de nossas coleções, pois se encontravam em uma edificação anexa ao Palácio e em prédios localizados em outra região dentro da Quinta. Este acervo se divide nas áreas de Botânica, Vertebrados, Invertebrados, Arqueologia e na Biblioteca central. São itens que continuam a fazer parte do museu, uma referência no cenário mundial”. Além disso, para alegria dos seus funcionários e visitantes, na última sexta-feira, dia 19 de outubro, a direção do museu informou que 80% dos fragmentos do fóssil humano mais antigo do Brasil foram identificados: trata-se de Luzia.

As boas notícias não param por aí. Fernanda também destaca que “diversas instituições, brasileiras e internacionais, manifestaram interesse em nos doar peças”, explica. Tais doações também têm chegado por meio de uma campanha para arrecadação de fundos, com o intuito de apoiar a continuidade de algumas de suas atividades. A Benfeitoria, plataforma de mobilização de recursos para projetos de impacto cultural, social, econômico e ambiental, tem sido uma das responsáveis por essa tarefa, tendo reunido até o momento a quantia de aproximadamente sessenta mil reais. https://benfeitoria.com/museunacional

Segundo a jornalista, que vive nesse momento a dor de ter testemunhado sua segunda casa ser tomada pelas chamas e também a luta de pessoas empenhadas para sua reconstrução, a sociedade merece a retomada das atividades do espaço: “o museu sempre foi uma instituição dinâmica e em movimento. E agora não é diferente. O Museu Nacional Vive!”.

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