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UFF de Campos desenvolve projeto em presídio feminino

A Coordenação do Curso de Psicologia/Laboratório de Estudos, Pesquisas e Práticas em Educação, Sexualidade e Psicanálise (Lepesp) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o presídio feminino Nilza da Silva Santos, ambos de Campos dos Goytacazes, firmaram uma parceria para proporcionar atividades ocupacionais e de escuta clínica, dinâmicas de grupo e oficinas diversas às internas, com início neste mês.

A iniciativa está vinculada ao projeto de pesquisa e extensão “Presídio, Subjetividade e Normalização”, coordenado pelos professores Francisco Estácio Neto e Gisele de Araújo Gouvêa Estácio, e integra alunos do curso de Psicologia. Segundo a professora Gisele de Araújo Gouvêa Estácio, como existem diversas possibilidades de oficinas, além do trabalho de escuta clínica e de dinâmicas de grupo, equipes serão selecionadas a partir da discussão conjunta com a direção do presídio, uma vez que cada atividade implica em cuidados e providências relacionadas à rotina interna do local. Atualmente são 350 internas.

De acordo com o professor Francisco Estácio Neto, por muitos anos a psicologia no Brasil esteve voltada para as classes média e alta em sua inserção na sociedade. Para ele, existe um esforço nacional do Conselho Federal de Psicologia e dos cursos de formação no país de levarem também os conhecimentos e benefícios da reflexão e prática psicológica para aquelas parcelas da população em situação de vulnerabilidade social.

“Nesse contexto, o projeto pretende atuar junto a essa população feminina que se encontra nos presídios e normalmente é abandonada pelo cônjuge, pela família e pela sociedade. A pesquisa visa possibilitar às mesmas, um apoio pessoal e subjetivo no sentido de buscar com elas um empoderamento de sua vidas como também fazer com que seus direitos básicos e sociais sejam devidamente consolidados”, ressalta Estácio Neto. Além disso, permite a promoção de atividades que proporcionem a reintegração das internas com as atividades do cotidiano visando a sua ressocialização.

Estácio Neto explica que a perspectiva teórica do grupo de pesquisa em relação a esta intervenção, além do viés solidário e humano, tem como pano de fundo uma discussão crítica acerca dos processos de normalização presentes na sociedade. O professor também critica a concentração da riqueza nas mãos de um pequeno e restrito grupo social, sem qualquer avaliação das consequências para o conjunto da população.

“Existe um processo social constante de captura de vontade, ou seja, da conformação das pessoas em geral na sociedade, ditas “normais”, para que aceitem esta situação injusta sem muita contestação. Aquilo que Foucault chama de produção de ‘corpos dóceis’ (obedientes) e ‘corpos úteis’ (somente voltados para o trabalho/utilidade). Dessa forma e nesse contexto, aqueles que em nossa sociedade, por alguma razão, não têm a sua subjetividade/vontade capturadas por estes processos de normalização, o Estado vem e captura os seus corpos e os colocam nas prisões, abrigos e manicômios. Nosso trabalho, em parceria com as internas, visa empoderar estas subjetividades, que além de terem sido destituídas de todo o seu valor social, têm também o seu corpo aprisionado, literalmente”, afirma Neto.

Prisões da vida real

A vida das mulheres no sistema prisional está sendo mais discutida nos últimos tempos devido à popularização da série americana “Orange Is The New Black”. Antes dela, outros seriados tinham como pano de fundo as prisões, como “Oz”, “Prison Break”, “Bad Girls”. Apesar de a ficção retratar o tema, muito pouco se conhece sobre a realidade das mulheres, ainda mais as brasileiras, sob regime de reclusão.

De acordo com Gisele, todos nós somos seres muito singulares e cada um de nós traz as marcas de nossa trajetória que, muitas vezes, vêm acompanhadas de idiossincrasias que proporcionam em algumas situações alegrias, superações e em outras muitas dores, fracassos e medos.

“Nesse sentido as histórias na “vida real” de cada uma dessas mulheres que se encontram em privação de liberdade muitas vezes não são tão parecidas com o que é retratado na ficção, justamente por estarmos falando de trajetórias bastante singulares. Existe toda uma complexidade a ser conhecida, entendida e compreendida dentro dessas unidades prisionais, razão desse projeto, para que assim possamos com a qualidade necessária contribuir para a reinserção de cada uma delas no convívio social”, argumenta a professora.

Gisele enfatiza a importância de se realizar um projeto que integra a sociedade civil, a UFF e o sistema penitenciário. “A universidade tem um papel fundamental nesse processo, uma vez que a sua premissa de indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão nos obriga e mais que tudo, nos convida e motiva, para sempre estarmos em sintonia com as necessidades da sociedade. Neste caso, em especial, com estas mulheres que se encontram em regime de detenção”, destaca Gisele.

Para os estudantes, se torna um experiência muito especial para lidar com a diferença e ainda construir uma compreensão de toda a complexidade que envolve a construção subjetiva de cada sujeito, do sofrimento e da injustiça social”, ressalta Estácio Neto

Aluna do quarto período do curso de Psicologia de Campos, Jéssica Borowsky, destaca que o tema é interessante de ser abordado pela mídia e pela arte, porém alerta como é preocupante o caráter de “romantização” que se cria a partir disso. Para ela, a realidade das mulheres nos presídios brasileiros está muito distante do que é apresentado em uma série americana, não só pelo contexto do país ou da ausência de uniformes laranjas e pelo espaço físico precário em que estão encarceradas, mas também pelas vivências dessas mulheres.

“A maioria das internas vem das periferias, tem baixo nível de escolaridade e é formada por mulheres negras. Ao longo de sua socialização já sofreram com o preconceito e se encontram em uma situação ainda mais segregada e de sofrimento. É preciso discutir e enxergar a vida delas em prisões de forma empática, com maior proximidade de suas realidades, para além das telas buscando conhecer o que vivenciam diariamente em suas celas e o motivo de estarem em tal situação”, afirma a estudante de Psicologia.

Durante o estudo teórico do projeto, um dos pontos que chamou a atenção de Jéssica foi o alto índice de presas por transportar drogas para seus parceiros presos ou por realizarem pequenos furtos para manter suas famílias, uma vez que muitas delas possuem filhos e são responsáveis pelo seu sustento.

“A precária situação em que mulheres grávidas encontram-se nos presídios, assim como a privação do contato com o filho e da amamentação, a ausência de visitas íntimas que são asseguradas aos detentos masculinos, o abandono por parte dos parceiros e familiares, a falta de artigos de limpeza e higiene pessoal, como o improviso de absorventes feitos pelas presidiárias são fatos que refletem a desigualdade social, racial e de gênero no país e que a sociedade de forma geral desconhece, quando não ignora”, enumera Jéssica.

A vida reclusa das internas faz com que muitas sintam falta de pessoas da sociedade que se preocupem com elas. A partir do momento em que os alunos participantes no projeto de extensão aparecem para ajudar, elas querem participar, obter resultados e se esforçar para aproveitar as oportunidades que serão oferecidas. Diante de tais constatações, Estácio Neto afirma que o projeto é importante para a formação acadêmica dos envolvidos.

“Para os estudantes, se torna um experiência muito especial para lidar com a diferença e ainda construir uma compreensão de toda a complexidade que envolve a construção subjetiva de cada sujeito, do sofrimento e da injustiça social que produz um empobrecimento de tantas vidas que são marcadas e impossibilitadas de cumprir o potencial presente em todos nós, como nos lembra Aristóteles. Constitui, também, um espaço para se compreender que ninguém tem uma natureza única e eterna. Apesar de nossos erros e fracassos sempre há uma possibilidade de se levantar e têm muitos outros territórios de existências para além daqueles que nos impedem de viver a plenitude de nossas vidas”, ressalta o professor.

De acordo com Jéssica, o contato com a realidade das mulheres no presídio, as oficinas e a escuta clínica desenvolvidas pelo projeto promovem um exercício prático de empatia fundamental para a profissão, como também para o seu desenvolvimento pessoal. “O olhar e a atitude empática, a compreensão da realidade e os sentimentos de outras pessoas em circunstâncias diversificadas não são apreendidos apenas em leituras acadêmicas ou dentro dos muros das universidades. Projetos como este contribuem para que as pessoas assistidas possam ter uma nova visão e perspectiva sobre suas próprias vidas”, conclui.

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