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Professores da UFF analisam o fenômeno sistêmico da desigualdade social no Brasil

O princípio da igualdade, garantido pela constituição brasileira, prevê a todos os cidadãos o direito ao tratamento isonômico perante a legislação, vedando diferenciações arbitrárias. Raça, gênero, credo religioso, orientação política, nenhum desses parâmetros deveria distinguir os indivíduos. Entretanto, na medida em que as relações construídas em sociedade definem que tipo de pessoa terá acesso a determinados direitos, os contrastes sociais se estabelecem.

Como pesquisadores da temática, os docentes da Faculdade de Economia Fernando Mattos e Fábio Waltenberg afirmam que muitas são as desigualdades que atingem o Brasil e todas elas estão interligadas. “Esse é um dos problemas públicos brasileiros mais sérios, exercendo efeitos danosos sobre o tecido social do país em diversas dimensões. As mais alarmantes são as que afetam mais dramática e explicitamente o cotidiano, a qualidade de vida material e psíquica das pessoas. A disparidade no acesso à saúde e à educação são realmente preocupantes. A violência também é um parâmetro que atinge de forma diferente os diversos segmentos da sociedade”, relatam.

Segundo Fernando, esse desequilíbrio se manifesta no país principalmente no acesso aos bens e aos serviços públicos. “Em nações desenvolvidas, uma parcela expressiva da renda das famílias provém de transferências originadas pelo Estado de bem-estar social. Uma marca típica de países subdesenvolvidos, como o nosso, é ter quase 80% da renda familiar total brasileira ancorada em rendimentos provenientes do trabalho. Além disso, muitos serviços básicos para a vida cotidiana das pessoas, como transporte, água e luz, são caros, o que acentua a desigualdade social”.

Para Fábio, o estado de bem-estar teria a função de corrigir algumas dessas distorções causadas pelo funcionamento da economia de mercado, e também proporcionar oportunidades aos cidadãos. “O investimento social e a tributação são os dois pilares que sustentam esse conceito. No Brasil, desde a constituição de 1988, o estado de bem-estar social tem tido atuação importante no investimento social, provendo educação, saúde, previdência, entre outras formas de transferência de renda ou prestação de serviços. Porém, a atuação, no meio desta década, tem estagnado ou regredido dependendo da área”, acrescenta.

Já sobre a tributação brasileira, o professor Fernando afirma que é a questão política e econômica que está na raiz dos problemas sociais. “No Brasil, os ricos pagam, proporcionalmente, muito menos impostos do que os pobres e a classe média assalariada. A distorção é ainda agravada pela enorme disparidade de salários e rendimentos e acontece em decorrência de fatores históricos que deram origem a um mercado de trabalho fragmentado, com grande peso da informalidade, incapaz de criar postos formais de emprego para a população”.

Esses fatores históricos se reportam ao processo de industrialização no país. “Entre 1930 e 1980, a industrialização brasileira foi significativa, porém as desigualdades não foram corrigidas. O mercado de trabalho gerou milhões de bons postos, mas ainda em quantidade insuficiente para absorver toda a população economicamente ativa. A ausência de reforma agrária gerou uma migração caótica para as cidades, que se urbanizaram muito rapidamente, sem ter tempo ou condições para criar uma infraestrutura adequada”, explicam os docentes da UFF.

Nos últimos anos, por conta da recessão econômica, Fernando Mattos pontua que a desindustrialização tornou-se um fenômeno crônico no Brasil. “Essa crise tem potencial de ampliar injustiças sociais de todos os tipos. Ressaltando que a concentração da renda e riquezas representam uma ameaça ao sistema democrático, e que isso reforça novos ciclos de ampliação da desigualdade, ainda é difícil ver saídas para esse quadro. É preciso pesquisar profundamente esse processo em um país como o nosso, de democracia frágil, dimensão continental e grande população”.

COVID-19 e a desigualdade brasileira

Diante da pandemia mundial do novo coronavírus, os docentes relatam que medidas governamentais contribuíram na redução da desigualdade em termos de renda pessoal dos cidadãos. “O Programa de Auxílio Emergencial tem sido robusto. O auxílio atendeu até agosto cerca de 30% da população. Foram transferidos cerca de cinquenta bilhões para as famílias brasileiras. Isso representa, em cinco meses, o equivalente ao total gasto com o Bolsa Família em oito anos. Entretanto é preciso deixar claro as condições em que essa redução acontece. O auxílio é temporário, portanto, essa atenuação da desigualdade também”, esclarece Fernando.

Em diversas outras esferas, porém, a pandemia aprofundou a desigualdade. “A taxa de mortalidade da COVID-19 foi muito maior entre negros do que entre brancos. As mulheres ficaram muito mais sobrecarregadas do que os homens para dar conta das tarefas domésticas e do cuidado com filhos, e ainda sofreram mais com violência doméstica. Crianças de famílias ricas tiveram mais acesso que as pobres a uma educação de boa qualidade nesse período de aulas remotas. Trabalhadores em posições mais elevadas tiveram menor queda de renda que os da base da distribuição de renda. A lista é longa” ressalta Fábio Waltenberg.

Segundo, Fernando Mattos o mercado de trabalho também teve uma grande defasagem. “Aqui como em todos os países do mundo, o nível de ocupação caiu significativamente. A taxa de aumento do desemprego só não foi maior porque um contingente enorme de trabalhadores deixou de procurar uma ocupação e isso, tecnicamente, não os coloca nos indicadores de trabalho como desempregados mas como inativos. O que está evidente é a subutilização da oferta de mão de obra, quer seja porque as pessoas estão trabalhando menos horas do que o habitual, porque estão desempregadas ou porque desistiram de procurar emprego”.

Ao acabar o período de isolamento, os pesquisadores acreditam que os programas assistenciais serão reduzido e as pessoas voltarão a procurar trabalho, mas muitos não irão encontrar. “Parte das dificuldades desse mercado ainda estão submersas. Se a economia não tiver voltado ao nível anterior à pandemia – que já era lento – há um risco de uma nova onda de demissões em massa. Outra questão é que mesmo depois da chegada da vacina muitos hábitos sociais e de consumo que foram alterados vão permanecer, e isso de alguma forma vai afetar diversas atividades laborais. Tendo em vista esses fatores e o processo de desindustrialização que está em curso no Brasil, a tendência é que a desigualdade gerada pelo mercado de trabalho aumente no pós-pandemia”, alertam os economistas.

Fernando e Fábio concluem salientando que a produção de conhecimento multidisciplinar sobre o tema é fundamental. “Se levarmos em conta que em qualquer cidade brasileira, o número de assassinatos pode ser centenas de vezes maior em bairros pobres do que em bairros nobres, é preciso observar como se reproduzem essas discrepâncias. Também não podemos esquecer das causas das desigualdades de gênero e de etnias, que são fenômenos com raízes culturais e comportamentais complexas que precisamos saber combater e evitar. A compreensão da desigualdade deve nos interessar como ponto focal para orientar uma nova agenda de desenvolvimento. Deve haver um esforço coletivo para interpretar esses fatos para o bem de todos, não apenas das pessoas mais atingidas por eles”.

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