Para muitas pessoas, os jogos eletrônicos em geral são temas de interesse apenas de crianças e jovens por apresentarem exclusivamente finalidade lúdica. Mas, ao contrário do que diz o senso comum, o mundo do entretenimento digital mudou bastante nos últimos anos, sendo hoje um meio capaz de unir uma série de outros benefícios além da simples diversão, indo desde formas de treinamento e capacitação profissional até mecanismos de inclusão e melhoria da qualidade de vida de pessoas com necessidades especiais. Na UFF, um centro de pesquisa que tem se destacado na área de jogos de realidade virtual é o UFF Media Lab, coordenado há quase 10 anos pelo professor do Instituto de Computação, Esteban Clua.
O Media Lab tem o objetivo de desenvolver novas tecnologias e pesquisas na área de mídias digitais, principalmente através de jogos, realidade virtual e combinações de cenários interativos. Ao longo desses anos, o grupo se tornou também um centro de pesquisa, demonstrando sua relevância do ponto de vista acadêmico. Para Esteban, uma das razões para esse papel de destaque do laboratório é a facilidade de aplicação prática dos estudos. “É um processo natural, dentro de uma área onde a pesquisa não é puramente teórica, mas que se aplica a diversas esferas. É muito importante termos um espaço que reúna todas essas pessoas, pesquisas e equipamentos”, explica.
O centro de pesquisas é formado por seis professores, todos do Instituto de Computação da UFF, além de alunos da graduação, mestrado e doutorado do curso. No total, cerca de 30 pessoas fazem parte do projeto, que também conta com o apoio financeiro de empresas privadas e órgãos públicos de fomento à educação e pesquisa. Entre eles, estão Capes, CNPq, Faperj, além do BNDES e da Petrobras, um dos maiores parceiros.
Para o integrante da equipe e aluno de mestrado Wesley Oliveira, o ambiente do Media Lab permite aos alunos de graduação e pós-graduação trabalharem juntos, contribuindo para a troca de conhecimento e aumento na qualidade dos projetos desenvolvidos. Em uma indústria que movimenta R$ 550 bilhões ao ano, Wesley também destaca o papel dos estudos realizados pelo laboratório. “A indústria tem cada vez mais utilizado sistemas de realidade virtual para criar simuladores e ambientes colaborativos à distância. Em um futuro próximo, esses sistemas que estudamos podem ser mais interessantes por possibilitarem a visualização do real e virtual ao mesmo tempo”, afirma.
“Se esse ambiente prazeroso e de entretenimento é capaz de trazer junto uma série de outros benefícios, como inclusão, aprendizado, educação… Por que não?”, Esteban Clua.
Atualmente, o Media Lab concentra esforços para investir em pesquisas da chamada realidade virtual pervasiva, ou aumentada. A proposta é levar o jogador para uma experiência de imersão total, simulando situações reais em um cenário totalmente interativo. Dentro do laboratório, uma bicicleta composta por um capacete especial transporta o jogador de uma realidade material para outra dimensão, onde ele é capaz de sentir e interagir com objetos reais, em um mundo virtual. “Essa experiência nos traz uma série de questões relacionadas à percepção do mundo. Por isso, a equipe está utilizando muito a Inteligência Artificial (IA) para tentar reconhecer as coisas do mundo real e trazê-las para o mundo virtual”, avalia Esteban.
Segundo o pesquisador, a IA é um processo automatizado de reconhecimento de padrões, parte relevante do sistema cognitivo. “Se, por exemplo, uma pessoa está enxergando uma fisionomia e tudo que está ao redor, é porque ela está reconhecendo padrões, e isso gera um processo de conhecimento.” Transferindo essa lógica para as máquinas, o resultado impressiona, com mecanismos capazes de realizar feitos humanamente impensáveis. “Nós treinamos uma base de dados de 100 mil imagens médicas, e em algumas horas a máquina já aprendeu os padrões dessas 100 mil imagens, algo que para a vida toda de um médico seria impossível”, ressalta.
Esteban enfatiza que existe um quesito em que as máquinas ainda não têm capacidade de superar o homem: o processo criativo. “A Inteligência Artificial funciona a partir da repetição de padrões e, embora a recorrência muitas vezes leve à capacidade de criação, não podemos igualá-la à nossa competência”, reforça.
Num momento de plena inovação da IA, é impossível para o professor não pensar em futuros desempenhos desses sistemas. Para ele, esse horizonte é altamente promissor e está muito próximo. “Ainda não enxergamos direito, assim como foi com a internet há duas décadas, mas a revolução atual é a IA. Certamente daqui a 10 anos teremos uma série de processos automatizados, feitos com muito mais precisão do que um ser humano é capaz”.
Jecripe: um game voltado para a inclusão social
Um dos principais trabalhos desenvolvidos pelo grupo foi o Jecripe – Jogos de Estímulos Criados para Pessoas Especiais -, o primeiro game voltado para crianças com Síndrome de Down, com o propósito de trabalhar estímulos de percepção, linguagem e coordenação motora. Produzido em 2009, com recursos da Secretaria de Cultura do Estado, o jogo hoje é traduzido em cinco línguas. “Nesse momento, o Jecripe ganhou vida própria, inclusive com o coordenador geral do projeto, o André Brandão, ex-aluno de doutorado, sendo responsável por levá-lo adiante para a Universidade Federal do ABC, em São Paulo, como uma das linhas de pesquisa dele. Esse projeto abriu para nós um horizonte muito interessante, porque ainda temos desenvolvido diversas pesquisas no âmbito da acessibilidade e games focados nesse perfil de usuários”, destaca o coordenador.
No Jecripe, um fato curioso e inédito até então nos jogos digitais é o personagem principal, o Betinho, ser portador de Síndrome de Down. Indicado para crianças em idade pré-escolar, de 3 a 7 anos, o game, segundo André Brandão, possui um valor social muito grande, porque, além de servir como forma de integrar e naturalizar crianças com essa condição, também devolve para a sociedade o investimento em universidades públicas. Além disso, o jogo, disponível gratuitamente, recebeu o Prêmio de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e o do II Encontro de Tecnologia Cidadã.
Depois do sucesso com o Jecripe, novas versões do jogo foram desenvolvidas no laboratório, como o Jecripe 2, destinado a pessoas com outros tipos de necessidades especiais, e o ParaJecripe, ligado às paraolimpíadas. Com o objetivo de valorizar os atletas e os esportes adaptados, os jogadores podem escolher entre as modalidades de natação, atletismo ou tênis e competir com os próprios atletas brasileiros no game. No salto à distância, representado pela Verônica Hipólito; na corrida, por Terezinha Guilhermina e o guia Rafael Lazarini e na natação com o lendário campeão Clodoaldo Silva.
Esteban Clua ressalta que o UFF Media Lab se propõe a repensar o papel dos games e do mundo digital para a sociedade, contribuindo para romper com as barreiras antes impostas pelo senso comum. “No momento em que todo mundo estava começando a usar a internet, ninguém fazia ideia de tudo o que faríamos 20 anos depois. Se esse ambiente prazeroso e de entretenimento é capaz de trazer junto uma série de outros benefícios, como inclusão, aprendizado, educação… Por que não?”, conclui.