Fisiologia, Patologia, Histologia, Oftalmologia… e Espiritualidade. Essas disciplinas, que podem parecer incompatíveis, à primeira vista, fazem parte de um mesmo currículo, na graduação de Medicina da UFF. Criada em 2017, como fruto de uma parceria entre o urologista e professor da UFF, Genilson Ribeiro, e seu colega médico, Sérgio Felipe, “Medicina e Espiritualidade” é parte de um esforço em incorporar na formação dos futuros médicos um olhar humanizado em relação ao paciente e à possibilidade de ressignificação da doença. De acordo com Genilson, coordenador do curso, “vivemos um momento em que o mais importante é o ter e não o ser. As relações humanas estão deterioradas e isso também se reflete na Medicina e na relação com o paciente. O que estamos procurando ensinar é o resgate dos valores ético-morais esquecidos e a espiritualização das relações humanas”.
Ausência de toque, relações mediadas por aparelhos, consultas rápidas e impessoais. Muitos são os elementos que compõem esse cenário descrito pelo professor, frequentemente vivenciado por quem visita consultórios médicos, onde a relação com o paciente se torna cada vez mais distante. A emoção, ponte através da qual o médico se conecta com ele e, também, instrumento fundamental de seu trabalho, sem o qual o diagnóstico se torna um ato puramente mecânico, é deixada cada vez mais à parte. Isso ocorre a despeito de o principal pré-requisito para um profissional de saúde, segundo Genilson, ser justamente a possibilidade de “se sensibilizar com a dor e com o sofrimento de um ser. Muitas vezes, a medicina convencional cartesiana-newtoniana se dedica apenas a tratar o efeito das doenças, ou seja, a sua manifestação física, esquecendo-se do binômio corpo-mente”.
Saúde é bem-estar físico, psíquico, social, ambiental, funcional e espiritual, e não necessariamente ausência de doença”, Genilson Ribeiro.
Nem sempre foi assim. Um passeio pela história da Medicina revela momentos em que o ser humano era enxergado sob uma perspectiva mais integral, tal como nos períodos mais remotos da civilização. Naquela época, explica ele, “a Medicina esteve envolvida no seu aspecto místico e era exercida pelos curandeiros e xamãs”. Também no período clássico, com a escola Hipocrática, o homem era entendido como uma unidade, sendo considerado saudável aquele que possuía um estado mental e físico em perfeito equilíbrio. Posteriormente, passou-se por “um momento de obscurantismo no período medieval, no qual a superstição, o charlatanismo e a ignorância foram responsáveis pelo período tenebroso que a Medicina passou. Somente com o renascimento e a contribuição de Descartes que modificou-se radicalmente o pensamento da época, afastando a ciência da religião e deixando esta última a cargo da Igreja”.
O desenvolvimento da Medicina tal qual a conhecemos hoje ocorreu apenas no século XIX, com o auxílio da Mecânica Newtoniana. Naquela época, “o ser humano se assemelhava a uma máquina e a influência da mente não era cogitada em nenhuma hipótese”, explica o professor. Atualmente, vive-se um novo paradigma, com o auxílio da Física Quântica, que estuda os fenômenos relativos às partículas atômicas e subatômicas; dos Campos Mórficos de Sheldrake, que questiona a visão mecanicista; e da Biologia da Crença de Lipiton, que se propõe a explicar como todas as células do corpo são influenciadas pelo pensamento. De acordo com Genilson, “não podemos afastar o efeito da mente sobre a gênese das doenças, tampouco a importância da vontade colocada a serviço da cura, conhecida popularmente como fé”.
Ao contrário do que se pode supor, esse enfoque proposto pela disciplina não propõe, como explica o coordenador, a “substituição de uma anamnese detalhada e o contato com o paciente através do exame físico. O que nós fazemos é estimular o estreitamento da relação médico-paciente, pois acreditamos que este seja o seu primeiro ‘medicamento’. Como entender o sofrimento de alguém e auxiliá-lo a se tratar se não nos sensibilizamos com sua dor?”. E esse exercício de contato inicia-se em sala de aula com a discussão, por exemplo, de alguns grandes males da sociedade contemporânea, tal como a depressão, que possui componentes químicos, mas também relacionais e subjetivos.
O professor reitera ainda que “há atualmente um aumento substancial dos casos de depressão e o aluno de Medicina está suscetível a desenvolver este quadro. Discutimos, em sala de aula, este fenômeno e buscamos encontrar soluções para o mesmo. Também tem aumentado consideravelmente os casos de suicídio no mundo e nós abordamos este tema, assim como muitos outros envolvendo emoções e sentimentos”. Paralelamente a isso, “enfatiza-se que os pacientes têm que aprender a desenvolver mecanismos interiores de ‘copping’ (enfrentamento) ou ressignificação do adoecimento, procurando o entendimento do sentido da doença na vida da pessoa. Isso está de acordo com a Carta de Otawa, pois a saúde é bem-estar físico, psíquico, social, ambiental, funcional e espiritual, e não necessariamente ausência de doença”, explica ele.
Sob essa perspectiva, portanto, o médico não é um mero técnico executor de procedimentos, mas um ser humano, dotado da capacidade de sentir, sensibilizar-se com a dor do outro e, por meio dela, encontrar um caminho para a cura, de forma singular e cuidadosa. A despeito de todos os avanços tecnológicos das últimas décadas no campo da Medicina, da sofisticação diagnóstica, terapêutica e medicamentosa, uma coisa é inegável: o afeto continua revolucionário.