Vestir-se de branco no ano novo, pular sete ondas, deixar flores no mar: esses costumes típicos do Brasil foram incorporados a partir da cultura das religiões de matriz africana, trazidas pelo povo negro escravizado no Brasil. Apesar disso, frequentemente a associação entre esses comportamentos e as crenças afro-brasileiras são perdidas ou apagadas. Para além disso, os ataques às crenças de matriz africana em conflitos de natureza étnico-religiosa que envolvem outros credos são uma constante. Legislações como o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), no entanto, buscam proteger as religiões afro-brasileiras, reivindicando, por exemplo, o direito à liberdade de crença e o livre exercício desses cultos religiosos.
Na Universidade Federal Fluminense (UFF), as ciências sociais contam com a extensa pesquisa sobre a intersecção entre raça e crença da professora Ana Paula Miranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA). A docente trabalha com a temática da intolerância religiosa desde 2008, quando conheceu um grupo ativista da causa no Rio de Janeiro. “Com o grupo, percebi, já naquela época, questões como a expulsão de terreiros do Morro do Dendê, Ilha do Governador, por ordem de traficantes evangélicos da região. Desde então, estudo esse assunto nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas e Sergipe. Importante falar que a abordagem da Antropologia com a qual trabalho explora a dimensão contrastiva, uma perspectiva importante para pensar a realidade de modo relativizado”, conta.
Toda a discussão sobre o estado laico é marcada pelo equívoco teórico em achar que existe um modelo único de laicidade – Ana Paula Miranda
Intolerância x racismo religioso: atravessamentos de raça e crença
Ana Paula aponta que o termo racismo religioso surge no movimento negro brasileiro, muito influenciado por discussões raciais internacionais, em especial estadunidenses. “Esse termo se opõe à ideia de intolerância religiosa em dois sentidos: o primeiro destaca que a intolerância religiosa pode ser aplicada a qualquer grupo religioso vítima de discriminação. Já os casos de racismo religioso atingem especificamente os terreiros de matriz africana, como os de candomblé e umbanda, por conta de suas tradições e práticas. Do ponto de vista político, a intolerância religiosa tem um segundo problema, quando se fala em reivindicação de direitos, pois tolerar um grupo é simplesmente suportá-lo e isso não dá garantia alguma de respeito. Em síntese, a ideia de diferenciar racismo religioso de intolerância religiosa passa pela necessidade de demarcar ações racistas que atingem os adeptos e praticantes das tradições de matriz africana”, explica.
Por outro lado, segundo a pesquisadora, nenhum Estado é neutro em termos religiosos. “Toda a discussão sobre o estado laico é marcada pelo equívoco teórico em achar que existe um modelo único de laicidade. Existem várias maneiras de o Estado delimitar as fronteiras entre religião e política. No caso brasileiro, historicamente, a forma como essas relações se dão estão associadas à presença da religião no espaço público do país, marcado fortemente por características religiosas. Porém, o que observamos é que essas características seguem muito influenciadas, quase de forma hegemônica, pela tradição católica. Temos muitas praças e ruas com nomes de santos católicos, por exemplo. A entrada dos evangélicos não muda o ordenamento desse contexto, já que as igrejas protestantes também passaram a ocupar os centros dos espaços públicos”.
O racismo religioso é um crime essencialmente político – Ana Paula Miranda
No caso da presença das religiões de matriz africana, a maneira como ocupam o espaço público é diferenciada. “O espaço visado é o da natureza, que é, em si, sagrada para essas tradições. A praia, o lago, o mangue e a floresta já são símbolos da cultura das religiões afro-brasileiras. Isso se aplica também à cidade, onde, por exemplo, a encruzilhada é associada ao Orixá Exú”, ressalta a docente.
Combate ao racismo religioso: Estado mediador de conflitos?
Para Ana Paula, à medida que a relação da sociedade com as religiões se explicita de forma específica no Brasil, a intervenção do Estado deveria operar na garantia de direitos e liberdade para todas as crenças. “O debate do racismo religioso reafirma a necessidade de engajamento na pauta do reconhecimento de direitos, afinal, a Constituição da República Federativa do Brasil deixa determinado que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Na prática, sabe-se que não é isso que acontece, já que é evidente o privilégio das tradições cristãs e os impedimentos e restrições aos cultos não cristãos”, pontua.
Do ponto de vista histórico, a perseguição às tradições africanas não é fenômeno recente, já que ocorre desde o começo do período da escravidão forçada da população negra. “Por isso, o candomblé, por exemplo, é uma religião brasileira. Não existe candomblé na África, já que lá as regiões têm distintas dinastias, que formam os reinos dos orixás, e são origem de diversas etnias africanas. Os africanos trazidos para o Brasil tiveram de se reestruturar e conviver entre si, na prática de suas crenças, o que acabou gerando um culto à ancestralidade unificado, reunindo o que em África eram cultos étnicos específicos de cada ancestral”, explica Ana Paula.
Segundo a pesquisadora, desde 1881 as constituições brasileiras falam da possibilidade de liberdade de expressão de múltiplas crenças, mas esse segue não sendo um direito garantido às religiões de matriz africana. “Por exemplo, se uma pessoa está internada em um hospital, é um direito constitucional que ela tenha apoio religioso. Padres e pastores conseguem entrar com facilidade nos hospitais, mas em nossas pesquisas temos inúmeros relatos de pais e mães de santo que não conseguem dar suporte espiritual aos consulentes e filhos dos terreiros”.
De acordo com a estudiosa, o grande conflito da perseguição às religiões de matriz africana acontece em relação a grupos cristãos que não concordam com as práticas dessas tradições. “Isso não significa que esses grupos podem visar o extermínio dessas práticas; entretanto, parece ser esse o objetivo. Em nossas pesquisas, observamos alguns grupos evangélicos que não só ficam incomodados com a existência da crença que eles desaprovam, mas agem para que elas sejam destruídas. O Supremo Tribunal Federal se posicionou sobre o tema defendendo que a liberdade de expressão religiosa tem um limite no caso da ofensa ao outro. Ou seja, o pastor tem direito de pregar desde que não propague a destruição de outros grupos de fé”, explica Ana Paula.
Um obstáculo nesse debate está na interpretação que os operadores de justiça e segurança possuem em relação ao crime de racismo. Segundo a docente, há uma tendência a individualizar os casos, já que na leitura de muitos juristas esses crimes sempre são lidos como isolados. “Isso impede o reconhecimento da dimensão política dos crimes de discriminação, que, nesse contexto, são reconhecidos internacionalmente como crimes de ódio. A natureza política do crime de ódio, nesse caso, explicita que, quando há violação do direito à liberdade religiosa de alguém, também há quebra do direito político de expressão do credo do indivíduo. Considerando isso, o racismo religioso é um crime essencialmente político; portanto, é obrigação do Estado impedir e coibir ataques a essas manifestações religiosas”, enfatiza Ana Paula.
Caminhos de Xangô: documentário reflete sobre a laicidade do Estado frente à perseguição aos terreiros
Com doze minutos de duração, o documentário curta-metragem “Os caminhos de Xangô – a resistência das religiões afro-brasileiras” é resultado do projeto de pesquisa “Diversidades e intolerâncias: análise de processos de mobilizações e de políticas públicas em conflitos de natureza religiosa, étnico-racial e de gênero”, coordenado pela professora Ana Paula Miranda. Esse trabalho é fruto de um projeto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) cujo objetivo era debater conflitos de natureza étnico-religiosa.
O curta tenta responder o que permaneceu e o que mudou no processo de perseguição às tradições afro-brasileiras, já que esse movimento de intolerância acontece há tanto tempo. “O que permanece é a estratégia da demonização. Desde sempre, há uma tentativa de buscar a referência de ‘demônio’ das tradições judaico-cristãs e aplicá-la onde esse conceito não existe nem nunca existiu. A diferença hoje tem a ver com as estratégias de ataques aos terreiros. Se antes tínhamos os grupos católicos e o Estado perseguindo terreiros, hoje ainda há o Estado como agente dessa perseguição, só que de maneira velada e não oficial. Na realidade atual, os ataques de extremistas evangélicos também foram incluídos nessas estratégias de perseguição”, conta a pesquisadora.
Os caminhos de Xangô no título do curta têm a ver com a ideia de que esse é um orixá associado a uma justiça que não seja cega. “O questionamento do documentário gira em torno do mito da justiça que privilegia um grupo e ataca outro. O filme também traz uma síntese do que foi um dos maiores massacres a terreiros da história do Brasil, conhecido como quebra de Xangô, que ocorreu em Alagoas. O objetivo da narrativa do documentário é que o povo de terreiro repense sua história, mas também visamos o uso pedagógico do material, a fim de provocar questionamentos sobre que laicidade é essa que ocorre no Brasil, que garante a existência de diferentes grupos religiosos, desde que sejam cristãos”, conclui Ana Paula.